terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Um diálogo com Sant'Anna Dionísio: elos da tradição espiritual portuguesa, brasileira e russa, realizado no final da década de oitenta.

   Sant'Anna Dionísio (1902-1991), na sala onde trabalhava e dialogava, junto aos seus livros. Fotografia da RTP.
Transcrição dum apontamento manuscrito em folha solta, não datado mas dos finais da década de 80, quando ensinava Yoga e Meditação no Porto, no centro alternativo e restaurante Suribachi (ainda hoje valioso), e visitava Sant'Anna Dionísio com muita regularidade. Nessa vez fui com três alunas. Principais acrescentos contextualizadores entre [...], e reproduz-se o texto manuscrito.

«Para Sant'Anna Dionísio, na [ou para os principais escritores do movimento da] Renascença [Portuguesa] não havia grandes mestres. Eram eles próprios. É claro que Antero de Quental e Sampaio Bruno  tinham sido e eram figuras importantes. E se o segundo era um pensador mas também um homem público de [tertúlias] de cafés, de Antero de Quental, ainda que nos deixasse, aqui e acolá indicações [duma maior espiritualidade], eram  fragmentos e quase que disfarçados, pois a época não era propícia. Por outro lado das suas próprias meditações há poucos registos [a não ser nas suas cartas, sonetos e em alguns dos contributos para o seu In-Memoriam]. E aí é que estariam os maiores testemunhos da sua originalidade e pensamento profundo.

Pergunto-lhe qual dos escritores que conheceu teria tido mais esse aprofundamento e sugere-me que um deles seria o brasileiro Raimundo de Farias Brito (1862-1917). Entre [os dois grandes mestres russos] Dostoievski e Tolstoi, respondeu-me que o primeiro seria o mais espiritual, e que os russos sempre tiveram almas impressionantes.

Quanto à evolução do movimento da Renascença Portuguesa e dos seus escritores, lamentou-se que entre Lisboa, Porto e Coimbra, na altura, bem como agora, sempre houve muita separação, e que essa falta de entente, prejudicou sempre os movimentos.

Tal como eu, vindo de tempos a tempos ao Porto, para estar com Santana e Dalila [Pereira da Costa],  alunos e alunas, uns poucos deles mais interessados [para além das aulas, nos meus ensinamentos culturais e espirituais, mas não os acompanhando tanto como seria desejável.] Ontem levando a Manuela, a Petit (Gabriela Mariz) e a Teresa até a casa dele, reavivando-lhe ou satisfazendo-lhe um pouco a nostalgia e talvez o ambiente das tertúlias antigas [nomeadamente as mais extraordinárias sob o magistério de Leonardo Coimbra]. Será ele próprio que nos convidará a descer e ver os quadros e os livros do andar de baixo da sua casa [algo que raramente deve ter feito] e que nos diz [com a sua seriedade  profunda e grave], que aqueles momentos contam, que são sugestivos, que deles se podem extrair ideias [impulsos, aspirações]. Que se deveriam realizar de tempos a tempos tais encontros e fazer daquele local um centro. Que se deveria criar mesmo um centro de estudos. Mas está quase com 90 anos [Porto, 23 de Fevereiro de 1902 — Porto, 5 de Maio de 1991] e talvez as possibilidades de concretização sejam já muito escassas, pese a extrema lucidez com que funciona ainda o seu cérebro quase todo o dia.

Mas retomando as suas apreciações sobre os vários escritores [e os que manifestaram mais a espiritualidade], concordará que Teixeira de Pascoaes foi o mais pagão. Era um livre pensador e muito independente. Já quanto a Leonardo Coimbra, [que tanto estudou e ama], confessa que ele quando fora ao enterro de Teixeira Rego (1881-1934), ao dizer a frase " Este homem enganou-se", fazia-o também como católico [pois aderira mais ao Catolicismo, mas talvez também por ser menos mirífico nas hipóteses esotéricas, que contudo conhecia, pois estudava e praticava, e em alguns livros partilhou, tal na Luta pela Imortalidade], já que Teixeira Rego acreditava em transformações espirituais, que este mundo era muito mais do que se via e que a própria humanidade havia de chegar lá [a esse estado de maior justiça económica e alimentar, gnose e  harmonia planetária].

Álvaro Ribeiro [1905-1981] era algo ensimesmado consigo próprio, mas aqui e acolá nos seus livros fazia alusões [ao espiritual].

[Relembro-me que me disse que] Antero de Quental sofreu bastante no tempo de espera até que a morte chegasse, depois de ter disparado sobre si próprio. Foi também uma morte misteriosa [tal como a de Leonardo Coimbra, sobre a qual Sant'Anna tanto meditou e escreveu, embora a de Leonardo tenha chegado involuntária num acidente de automóvel, na Lixa, poucos dias depois de se ter convertido, embora sempre tivesse sido um ser crístico, um espiritual profundo, publicamente pelas mãos do beato Padre Cruz.]

S. Francisco de Assis e Antero de Quental. Sobre cada um deles escreveu Leonardo Coimbra: para o santo canonizado um livrinho de espiritualidade e para o outro "santo" tragicamente abnegado, sobre a sua elevada filosofia.

Assistiu ao discurso de Leonardo Coimbra no Jardim da Estrela [aquando da inauguração da estátua a Antero de Quental, a 18 de Maio de 1929, e que gerou como habitualmente grande levitação ou entusiasmo nos ouvintes]. Leonardo era sempre formidável, falava de dentro, de improviso. Era um orador...

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, jovens flamejantes, idealistas.

Os livros de Teixeira de Pascoaes eram [além das suas pesquisas] também fruto dum diálogo consigo próprio. Eram os livros dum homem só.

No Agostinho da Silva falta qualquer coisa, mas está ainda forte.

O Teixeira Rego e o Sampaio Bruno eram fortes e avantajados, mas discretos.

 ----    Escrevo estas memórias agora sobre um pouco de relva num jardim portuense. Pelo fim da coluna vertebral entra algo da força do fogo latente no interior da terra, que é aspirada pelo Fogo Solar e se funde dentro de nós no fogo do Espírito Santo.

Falo desta minha teoria do Espírito Santo como iniciação, como continuação da obra dos Mistérios [gregos] que ele conhece [e sobre os quais escreveu] e ele acha bem.

[No verso da folha:] O que é preciso é continuar, diz em relação aos que só publicaram um livro...»..., pois era um estimulador da escrita e, como dizia, da publicação de obras importantes, significativas.

E assim sobreviveram boiando no papel, com tantas limitações e omissões, umas leves palavras, imagens e ideias de um dos diálogos, sempre tão ricos e variados, com Sant'Anna Dionísio, e nos quais com frequência revisitávamos os escritores que ele conhecera pessoalmente ou mais amara, e sobre os quais escrevera, caso de Pitágoras, Sócrates, Platão, Antero de Quental, Leonardo Coimbra, Teixeira Pascoaes, ou ainda os seus confrades na aventura da Renascença Portuguesa e da sua inolvidável revista A Águia, publicada entre 1910 e 1932 e da qual Sant'Anna Dionísio veio a ser, com Leonardo Coimbra, o último director.

Partilho, agora já no séc. XXI, estas anotações fugazes para alguns seres que ainda valorizam o memorialismo invocador e comungante de alguns elos e forças da Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa dos séc. XIX e XX. Que saibamo-la continuar criativa e luminosamente!

Na época, Sant'Anna Dionísio, Dalila Pereira da Costa e Pedro Teixeira da Mota, diante do portal da bela e iniciática (conforme os seus capitéis) igreja românica de S. Pedro de Rates, Vila do Conde, numa das nossas peregrinações organizadas pela Dalila. Fotografia pelo senhor Acácio, feitor nas terras do Douro e condutor. Lux-Amor Dei!

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