Das suas obras abordamos neste texto do blogue brevemente, e porque o acabámos de ler, o Livro do Mundo, uma obra pequena e condensada acerca do que se considerava ser o Mundo, em grego Cosmos, em parte baseado no conhecimento científico da época, em especial de Aristóteles, Platão e talvez de Plínio. Há quem pense que a obra seja mais uma tradução dum texto da escola peripatética de Aristóteles, tal como o livro da Doutrina de Platão, seria a partir dum manual do platonismo. Cremos que há certamente também muito do seu génio nos dois escritos.
Ao abordar a fonte fundadora do mundo, a Divindade e os seus deuses, Apuleio adopta uma posição bastante eclética, citando extractos de vários autores, observando-se uma discordância quanto ao não se dever falar da Divindade, que Platão advertira (enquanto não se saberia Dela), talvez na linha do silêncio da tradição acroamática (oral) de Pitágoras, que não autorizava os seus auditores sequer a fazerem perguntas nos primeiros anos do discipulado, o que entre nós foi destacado por Sant'Anna Dionísio no seu Enigmas Helénicos, impresso na Seara Nova, em 1969.
Algumas partes da obra são bem substanciais, tais as que tratam de Deus, dos Deuses e dos daimons ou espíritos intermediários, e em menor escala as das caracterizações e designações dos planetas, estrelas, cinco elementos, partes da terra, ventos, fenómenos atmosféricos e subterrâneos.
O mundo é reconhecido como um cosmos ou todo ornado e belo, uma comunidade ou sociedade, mas não há nas descrições grandes intuições da sua pluridimensionalidade, embora haja indicações da prática do caminho espiritual, pouco há directamente dos mistérios iniciáticos do Egipto e da Grécia, e menos ainda da magia e superstições, o que por exemplo apresenta bastante noutras obras, tal as Metamorfoses, o De Ísis e Osíris, o Burro de Ouro (onde o Deus supremo é Ísis), ou ainda da hierarquia de espíritos ou daimons, como tenta no Do Deus de Sócrates. Contudo, as analogias, metáforas e compreensões da Divindade, dos Deuses e da alma que apresenta, sendo bem variadas e profundas, têm um certo cunho pessoal, dizendo por exemplo, "eu vi", ou mesmo uma origem vivencial iniciática, ao referir por mais de uma vez o olho espiritual. É natural que alguns dos primeiros padres da Igreja que o leram e o referem, tal S. Agostinho, se tenham servido do que escreveu.
Deve-se realçar a definição inicial de filosofia, como base da demanda do conhecimento mesmo pela ciência, a valorização do olho espiritual ou divino, ou da alma, nas suas capacidades de voar longe pelo pensamento, bem como a consequente capacidade de desprendimento face ao menos importante e essencial, desapego que se ganha seja num conhecimento maior da terra e do mundo (e por isso se viajava e peregrinava...) seja nos estados místicos ou expandidos da consciência, sintomaticamente algo que vários estudiosos das experiências religiosas de alteração da consciência, desde William James, vieram a destacar.
São valiosas as apresentações da necessidade da Divindade ter os seus agentes intermediários, seja deuses seja daimons, para exercer a sua providência. Também a caracterização do elemento éter, que mais do que ígneo considera estar em constante movimento de rotação, é valiosa e parece-nos próxima da noção de prana e de certo modo do akasa dos indianos. Aliás todo o parágrafo dedicado aos elementos é substancial e iremos traduzi-lo e transcrevê-lo.
A propósito da Divindade, na qual distingue o seu dinamismo omnipresente da sua essência inacessível e que considera estar situada na parte mais elevada do Universo, no Olimpo, onde nada de negativo penetra, relembra Apuleio como oramos a Ela levantando as mãos e as vozes ao céu, e como a Divindade é a fonte, origem e fim de tudo, exemplificando com várias orações de um hino órfico.
Transcrevemos algumas das partes mais valiosas do De Mundo, e amanhã ainda acrescentaremos outras. Utilizamos como texto base a edição bilingue das obras completas de Pétrone, Apulée, Aulu-Gelle, traduzidas por M. Nisard e dadas à luz pelo prestigiado livreiro impressor parisiense Firmin Didot em 1875.
Incipit ou início:
«Sempre me pareceu, ó Faustino, que a filosofia, a considerar e a examinar com atenção, tem por objecto a procura da verdade, a prossecução das virtudes e a participação das coisas divinas, e isto sobretudo porque ela se aplica à interpretação da natureza.
Quando encontraram a filosofia, ela serve-lhes de guia, ela esclarece-lhes as suas descobertas. Eles ousaram então viajar em espírito nas praias do céu, e percorreram essas rotas que eles viam com a luz da sabedoria e o único olhar da reflexão.
Assim, quando a natureza nos tinha separado por um intervalo imenso deste mundo longínquo, o pensamento, atravessando as distâncias no seu desabrochar rápido, elevou-se até ele. A alma, com o seu golpe de olho divino, reconheceu facilmente e compreendeu os princípios aos quais todo o mundo deve a sua origem; e transmitiu o conhecimento a outros; ela fez como os profetas, que cheios da majestade divina, revelam ao resto dos homens o que um benefício celeste lhes permite ver.»
«O mundo inteiro consta de uma sociedade do céu e da terra, e de todos os que participam dela. Ou seja, o mundo é uma ordem ornamentada, dirigida por Deus, custodiada rectamente pelos deuses, tendo como eixo cardeal sólido e imóvel a terra, onde se geram e vivem todo o tipo de animais.»
«O próprio céu, as estrelas que se encontram nele e todo o sistema de astros, chamam-se éter, não porque, como alguns pensam, porque queima e está inflamado, mas porque está sempre numa rotação rápida. o éter não é um dos elementos que todo o mundo conhece, pois ele é bem diferente; e se pela enumeração que se faz ele é o quinto, pelo seu nível, pela sua natureza divina e inalterável, ele é o primeiro.»
«Os elementos estão unidos por laços mútuos; há como que cinco nós que os ligam a todos; e tal é ordem que preside à sua afinidade, que o elemento mais pesado se combina com o mais leve. A terra contem a água no seu seio e a água, segundo alguns, sustenta a terra. O ar é produzido da água e o fogo forma-se do ar condensado. O éter e os seus fogos são inflamados pelo sopro do Deus imortal; iluminados por este centro divino, eles iluminam a abóbada do mundo com os seus fogos resplandecentes. É por isso que os deuses superiores ocupam essa regiões superiores.»
«Contrariamente ao que diz Platão, penso que é melhor falar de Deus, mesmo dum modo imperfeito de que não falar. É uma opinião já muito antiga, profundamente gravada no coração dos homens, que há um Deus que presidiu ao nascimento de todas as coisas, um Deus que vela pela conservação e o renovamento de tudo o que criou, e que nenhuma coisa está tão fortemente organizada que possa viver dela própria e sem o socorro de Deus. Imbuídos desta opinião, os poetas chegaram a dizer que tudo está cheio de Jove, Júpiter, e que a sua presença não se revela somente ao pensamento, mas ainda aos olhos, às orelhas, a tudo o que é capaz de sentir. O que está perfeitamente dito se quer-se fazer conhecer a potência divina, mas não se queremos falar da essência mesma de Deus.»
«Cremos que Deus retém a sua alta majestade e reside em si mesmo no alto, mas dispensou por todas as orbes do mundo potestades, que habitam o sol e a lua e todo o céu. Elas velam pela saúde e salvação de todos os habitantes da terra, mas não têm necessidade de um grande numero de servidores, como a nossa raça indigente, para realizarem os seus trabalhos.»
«De igual modo que, nos coros, o maestro da orquestra entoa o hino e a multidão de homens e mulheres, com as suas vozes graves ou penetrantes, compõe uma harmonia completa, de igual modo a razão divina estabelece a harmonia no meio de tanta diversidade.»
«Ora o rei e pai de todas as coisas, que só vemos pelo olho da inteligência e da meditação, estabeleceu leis fixas para todo o mundo: deu-lhe astros como luminárias e povoou-o de todas as espécies, umas visíveis, outras ocultas, e fê-lo mover-se de uma só impulsão.»
«Tal como um exército inteiro obedece a um só chefe que marcha à cabeça e exerce o comando supremo, assim se passa com a organização das coisas divinas e humanas; todas obedecem a um só mestre, cada uma delas tem as suas leis particulares, e Providência, que vela sobre o conjunto, está escondida a todos os olhos, excepto aos da inteligência. Este mistério do qual o Todo Poderoso está rodeado não o impede de agir tal como a nós de o conceber. Para entender este princípio, eis uma comparação que nos servirá de exemplo, ainda que imperfeita: a alma humana não é visível, e contudo somos obrigados a confessar que ela preside aos actos mais notáveis do corpo. A forma e a substância da alma não caiem sob os nossos olhares, mas compreendemos, pela importância da sua acção, qual é a sua natureza e de que potência ela está dotada. É o génio dela que provê as necessidades do ser humano. (...) É preciso ser-se muito injusto na apreciação dos factos, para se negar que uma potência análoga à da alma pertence a Deus, este Ser Supremo cuja essência é sublime e a vida imortal, este pai das virtudes, e a própria virtude!»
«É assim que Deus vela pela salvação do mundo, religando entre si as partes do mundo pela sua força divina. Onde habita? Não habita perto das regiões da terra, nem no meio dos ares móveis; ele ocupa o cimo do mundo, que os gregos chamam com razão o céu (Ouranos), porque ele é a última parte de toda a altura; pela mesma razão chamam-lhe Olimpo, porque está abrigado de todas as tempestades e de todos as alterações. com efeito, o Olimpo jamais foi obscurecido pelas nuvens, entristecido pelos frios e as neves, agitado pelos ventos ou fustigado pelas chuvas. É o que fez dizer a um poeta:"O Olimpo, a morada imortal que os deuses habitam, nunca é agitado pelos ventos, nem molhado pela chuva, nem coberto pelas nuvens, e não há nuvens que obscureçam o seu ar sempre puro."
Donde a opinião e ideia comum entre os seres humanos e confirmada por observações, afirmar que Deus está no mais alto do Cosmos. Donde o modo de orar seja o de pedir com as mãos estendidas para o céu, como diz um poeta romano: "Aspice hoc sublime candens, quem invocant omnes Jovem", "Olha esse resplendor sublime que todos invocamcomo Jove, Jupiter."»
«Deus é essa lei que mantém a equidade, e que não tem necessidade de qualquer reforma, nem de qualquer mudança. De igual modo o mundo inteiro é dirigido pela providência imutável do seu autor, e vivificado por este princípio que anima todas as naturezas, todas as espécies e todos os géneros. (...) Não há que um só Deus, mas é chamado por diversos nomes, por causa dos seus numerosos atributos que parecem-no multiplicar: como Protector toma o nome de Júpiter (da palavra juvare, ajudar, gratificar); como princípio de vida, os Gregos chamam-no com razão Zeus; chamam-no também Saturno, como filho do Tempo, ou seja como ser sem começo nem fim. É também o deus da tempestade, do raio, da chuva, da serenidade; outros chamam-no o deus que fertiliza, o guardião da cidade, o deus hospitaleiro, o deus Amigo. Dá-se lhe por fim o nome de todas as nobres funções. Ele é tanto o deus dos combates, como Triunfador, o Conquistador, o Porta-troféus, Encontramos na velha linguagem romana, e na dos haruspícios, uma imensidade de outras designações análogas a elas.»
«Deus, como diz uma velha sentença e como o sustenta a razão, é o princípio, fim e meio de tudo, e penetra e dá lustre a todas as coisas e diz-se que vibra rapidissimamente sobre o universo. Ao seu lado, caminha sempre e em toda a parte a Necessidade vingadora; ela pune os que se afastam da lei sagrada, mas protege o futuro de quem, desde a sua mais tenra infância, desde o berço, o realiza, o respeita, dá-se todo a ele e confia.»
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