terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Leonardo Coimbra: sua personalidade e seus problemas, por Sant'Anna Dionísio. O clima anímico de Leonardo e Antero...

Leonardo Coimbra (1883-1936), foi certamente no século XX um dos  maiores génios portugueses, destacando-se enquanto escritor, filósofo, professor, político, orador e ser religioso e espiritual embora a sua personalidade irreverente, irónica, livre e poética não fosse  apreciada por alguns, porque lhes fazia sombra,  que o atacaram por diversos modos. Teve contudo um impacto grande nos que o conheciam, ouviam ou liam, e sobretudo numa série de alunos e depois discípulos que germinaram sob a água e o fogo por ele lançado nas suas almas e que souberam apreciá-lo, e se fosse o caso criticamente mesmo, ou defendê-lo. Entre eles um se destacou, José Augusto Sant'anna Dionísio (1902-1991, licenciado em Filologia Românica e depois em Ciências Filosóficas), que chegou a ser com Leonardo Coimbra co-director da revista A Águia, para muitos  a mais influente e rica no século XXI. Foi mesmo dos primeiros, após a inesperada e trágica morte de Leonardo a atrever-se a mantê-lo vivo interrogando-se sobre a sua vida, personalidade e morte, que ocorrera nesse fatídico ou, no dizer de Teixeira de Pascoaes, diabólico, dia 2 de Janeiro de 1936, sendo mesmo quem discursou a 4 de Janeiro "no cemitério da Lapa, momentos antes do corpo de Leonardo Coimbra ser abandonado à Terra."

                                                

A 15 de Fevereiro, a mês e meio da morte de Leonardo, Sant´Anna Dionísio palestrava em Vila Real, onde era professor liceal (de 1935 a 1940), e o texto foi ampliado e rectificado para uma leitura na Casa da Imprensa e do Livro, no Porto, realizada, certamente com comovida assistência, a 31 de Março de 1936. Publicada ainda em 1936 em livro, Leonardo Coimbra. Contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, a obra sairá de novo à luz em 1983, com uma pequena (cinco páginas) mas intensa adenda, impressa sob a chancela da Lello & Irmão, Porto, num in-8º de 125 páginas, valiosas e pouco  estudadas. 

Ora como na década de oitenta me dei muito com Sant'Anna Dionísio, visitando-o em sua casa ao Campo Lindo, no Porto, e saindo com ele e Dalila Pereira da Costa algumas vezes, ao conservar o livro que me ofereceu com dedicatória, e que li e anotei, resolvi partilhar alguns extractos, seja pela excelente prosa, argúcia e sensibilidade de Sant'Anna Dionísio, seja para destacar melhor o valor de Leonardo Coimbra, tanto mais que o livrinho precioso e hoje quase ignorado foi pioneiro e profético, pois Sant' Anna Dionísio escreveu no prefácio  que «a sua contribuição para o estudo de Leonardo Coimbra não é mais do que o primeiro sinal de uma obra de reparação que será levada a cabo por um grupo de homens novos ligados à memória do pensador e professor pelo sentimento de que ele, além de ser um dos mais poderosos valores espirituais portugueses de qualquer época, foi o mais forte removedor das latentes propensões intelectuais [e espirituais] deles.»

Começa então Sant'Anna por justificar o «tentar exprimir uma preocupação de indagação que vive em nós há muito. Referimo-nos à preocupação que sempre existiu acessa na nossa intimidade, desde que o nosso espírito se cruzou com o de Leonardo Coimbra, de querer saber quem era, na sua mais profunda autenticidade, esse Homem; quais as ideias que, na realidade, eram fundamentais na sua maneira de ver as coisas; quais os motivos mais íntimos e sérios das suas reacções e viragens; qual em suma a sua verdadeira personalidade [e centelha espiritual central de si.]

Entra em seguida, com a sua magnífica linguagem, numa descrição dos aspectos mais notórios de Leonardo: como homem total, génio, convivente, professor, tribuno, escritor, pensador, filósofo e político, e a dado momento faz um desenho pessoal:  «Estruturalmente, Leonardo Coimbra, eis a primeira impressão pessoal -, parece-nos dever definir-se como um homem de temperamento fáustico. Os dois traços fundamentais, idiossincrásicos, da sua pessoa, eram o que nós supomos ser a característica essencial do homem deste tipo: o universalismo e a inquietação; ou, por outros dizeres: a aspiração de compreender, pela intuição convertível em conhecimento, as questões mais dramáticas da Existência. pondo ao serviço desse esforço todas as formas de saber e inquirir: as experiências científicas e as experiências afectivas, a indagação objectiva da Natureza e as técnicas tradicionais (ainda as mais acusadas de superstição), de comunicação com os Espíritos das coisas; a filosofia, a ciência, a medicina, a teologia, a magia! Leonardo Coimbra foi essencialmente um homem deste padrão. Por natureza, foi um homem que aspirou à compreensão inteira e íntima do Essencial; não porém,a compreensão integral e inefável que é dada pelos espasmos [êxtases, visões tocantes] da contemplação, - mas a compreensão aproximativa (digamos assim, se é lícito) que é possível vislumbrar pelo esforço porfiado da reflexão informada», continuando depois a desenvolver a ideia de que Leonardo «não era um homem temperamentalmente nascido para a fixação definitiva num modo de ver a Vida», nomeadamente religioso, mas sim o do exercício do pensamento especulativo livre. 

E assim, depois de nos revelar que Leonardo Coimbra, «na véspera mesma do desastre que o vitimou, estivesse para escrever  um estudo que seria a apologia dum livro [de Kierkegaard], traduzido para a nossa língua por sua indicação calorosa, e ao qual os franceses puseram o título estranho de Tratado do Desespero? - Na realidade, Leonardo Coimbra   foi um espírito que nasceu, pode dizer-se, para aspirar atingir uma verdade absoluta - mas, no fundo, ele viveu sempre no desespero surdo de sentir que não poderia esperar atingir essa verdade como, de modo veemente, desejava: pelo pensamento livre. A feição interrogativa, característica da sua dialéctica, não é senão uma expressão dessa desesperança subjacente - e toda a sua obra esforçada de crítica, de reflexão, não é senão uma prova de que ele desejava acima de tudo resolver os seus problemas pela meditação».

Considera pois Sant'Anna que Leonardo era um homem fáustico, que privilegiava a meditação discursiva, a especulação metafísica, a interrogação, a curiosidade insaciável do saber,  mais do que a adesão a um credo religioso ou a uma prática contemplativa,  e que portanto a aura e ambiente que irradiava não era a do religioso, pois  «o sinal mais significativo pelo qual se identifica o homem religioso é o clima moral, que o seu procedimento impecavelmente equânime irradia, Ora Leonardo Coimbra de modo nenhum foi uma individualidade equânime no modo de ser; e sobretudo de conviver. O que fez, verdadeiramente e sempre, perturbante a sua convivência foi a facilidade com que passava da seriedade mais profunda para a reação caustica, (libertina mesmo); e vice-versa. Por isso não irradiou nada que sugira esse clima - ao contrário, por exemplo, de Antero de Quental que, em vida, e desde cedo, foi cercado de um verdadeiro respeito profano de santidade, - não mercê da tranquilidade interior que, segundo as melhores presunções, o poeta-filósofo nunca atingiu, mas da constância da sua seriedade convivente. O clima que Leonardo Coimbra criou, e esse, sem dúvida, (ou pelo menos como se verá decerto no futuro) mais estimulante e largo que o de Antero, foi o clima intelectual, especulativo; sob esse aspecto não houve ainda entre nós quem o superasse; porque ninguém foi, de facto, entre nós, tão profundamente instruído acerca dos problemas essenciais e ao mesmo tempo tão decisivo na abertura de caminhos para certos sectores da vida espiritual, pouco menos que inexistentes para nós. Se fosse possível fazer a colheita inteira da sua actividade de agitador, como removedor de ideias, como conferencista, como orador político, como professor, como conversador de ocasião, - e adicionar a esta produção esparsa e imensa as controvérsias obscuras, e algumas de grande importância, que por vezes as suas orações e palestras suscitaram -, ter-se-ia seguramente o documento mais notável, no ponto de vista de cultura, de toda a história espiritual portuguesa (...)».  Anote-se que neste aspecto, já nos últimos anos, Pinharanda Gomes, secundado por Paulo Samuel conseguiram fazer um levantamento da obra leonardina bastante razoável e publicá-lo na editorial Verbo e na Fundação Lusíada.

Desenvolve em seguida melhor a caracterização de Leonardo como um pensador por imagens e depois por dialéctica conceptual, mas que dotado de sensibilidade grande e menor vontade disciplinadora, face a um meio adverso, enveredou ora pelo humorismo e a causticidade, ora por grandes elevações de horizontes que não eram bem compreendidos pelos seus ouvintes, já que Leonardo dotado de uma sede e capacidade insaciável de saber dominava o conhecimento até nas suas últimas descobertas científicas e punha já então em causa o determinismo materialista ("o abuso da óptica determinista, mecanista e entrópica"), realçando o valor da consciência, do pensamento livre, do fluir do espírito ("uma óptica da contingencialidade e da espontaneidade ascensional") para se poder captar a essência ou intimo das coisas e seres, embora o mistério da morte fosse para ele, mesmo tendo-o investigado até pelo espiritismo e o esoterismo, algo que o angustiaria ou deprimiria, pesem momentos de grande exaltação e crença na imortalidade e em Deus.

Sant'Anna Dionísio realçará muito a amplidão de horizontes a que a inteligência de Leonardo se aventurava, chegando a afirmar que, «se somente os homens que vivem de um modo constante, nos seus momentos de mais elevada intimidade, na preocupação da procura dum ângulo de inteligibilização global de todas as coisas, são filósofos, Leonardo Coimbra, foi depois de Antero, o único homem que mereceu, entre nós, o nome de filósofo.»

Muito importantes são as páginas consagradas ao mistério do sentido da morte em si, na demanda filosófica e espiritual de Leonardo e por fim na sua vida, já que este sofrera a morte do seu primeiro filho e reagira bem escrevendo a Luta pela Imortalidade, onde relatava as experiência metapsíquicas em que participara, e concluía afirmando a sua luta consciencial pela imortalidade, mas ainda sem certezas. E  por a morte  ser «o facto mais brutal e absurdo da Natureza», e de estarmos todos à mercê dela, lhe teria nascido uma certa angústia e desespero, já que era um ser convivente e de amor, «na sua mais grossa raiz temperamental era, em suma, um homem preso a esta margem».

Sant'Anna Dionísio considerará assim circunstancial e provavelmente não definitiva a conversão ao catolicismo de Leonardo: face à insuficiência da filosofia, recorria  à fé num Deus e numa religião para fugir do medo que sentia de novo por o seu 2º filho, muito doente, poder morrer. Não fora uma conversão transformadora, o pensamento indagador e livre que o caracterizava não aguentaria muito tempo num corpo doutrinário que o limitaria certamente, pois embora houvesse nele desde há muito «uma tendência acentuada para a aceitação formal do cristianismo como atitude de convivente e como concepção», isso não o impedia de confessar que nunca conseguira "sentir a realidade ontológica do pecado", ou de dizer que "se fosse católico, seria um católico anarquista", ou, à hora da morte, confessar que "nunca fizera mal a ninguém". 

Podemos resumir (a excelente obra)  e concluir dizendo que Leonardo Coimbra era de certo modo um mestre, um génio (e logo malquisto)  no abarcar e transmitir compreensivel e removedoramente a universalidade do conhecimento e um espírito tão poderoso na independência ética, reflexão, afirmação e diálogo livre, que não se deixaria amordaçar por qualquer sistema de crenças. Mas creio, ao contrário de Sant'Anna Dionísio, que ele até conseguiria permanecer no seio da Igreja Católica, exercendo equilibradamente o "lume rebelde da inquietação" e o da "reflexão livre" e agindo nela como um Fiel ou Cavaleiro do Amor, aprofundando até, com sua vastíssima inteligência e cultura, o que ele afirmara no prefácio à Luta pela Imortalidade, conter o Criacionismo, o seu primeiro livro:«era uma síntese filosófica sobre o mundo como uma sociedade de seres espirituais imperecíveis.»

«Ao Pedro Mota, ao seu espírito tranquilo e ávido de transmigração anímica, terrena e astral, oferece como singela expressão de discreta simpatia este opúsculo consagrado ao perdurável problema de uma "conversão religiosa". Porto, 21-V-1984, J. Sant'Anna Dionísio».~~ Brevemente abordaremos a conversão e morte de Leonardo, vistas por Teixeira de Pascoaes e Sant'Anna Dionísio. Muita luz e amor divinos neles!


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