Pode ouvir o duo de harpas da amiga Andreia Marques e da Cláudia Cardeal, enquanto lê o excelente discurso. https://www.youtube.com/watch?v=WJ75Qgorf1E |
O discurso de Sant'Anna Dionísio "momentos antes do corpo de Leonardo Coimbra ser abandonado a terra", no cemitério da Lapa, no Porto, a 4 de Janeiro de 1936, apenas com 53 anos, diante de centenas das "milhares de pessoas que acompanharam o orador poeta ao cemitério", tal como descreverá, com aspectos transfigurantes Teixeira de Pascoaes, no In Memoriam de Leonardo, foi transcrito por ele (parcialmente) na sua obra Leonardo Coimbra. Contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, 1936, reimpressa em 1985 com uma adenda (que gravamos e está no blogue), é de tal modo evocador, despertante e perene que resolvemos transcrevê-lo, sublinhando as partes mais valiosas para não alongar o texto com comentários (breves e entre [ ]), a fim de poder circular pelos meios digitais de comunicação, dado a obra não se encontrar facilmente nos alfarrabistas. Demos graças a Sant'Anna Dionísio, um dos alunos, amigos, discípulos e companheiros que mais compreenderam, amaram e testemunharam Leonardo Coimbra, 1883-1936, mas espírito imortal! Muita luz e amor divinos neles!
O segredo da fecundidade, mesmo póstuma, desse instituto de Cultura, a Faculdade de Letras do Porto [1919-1931], (que enquanto incipiente laboração, foi uma das mais puras fontes de alegria íntima de Leonardo Coimbra, e, quando extinta, uma das suas mais profundas fontes de dor) deve ir buscar-se à acção deste estranho catalizador de interesses espirituais. Foi ele que sacudiu, pode dizer-se, todos os homens novos que aí estudaram e hoje principiam a dizer o que têm a dizer. [Sant'Anna Dionísio, Agostinho da Silva, Delfim Santos, Álvaro Ribeiro, etc.] Os próprios professores que ele agregou como cooperadores [tal Ângelo Ribeiro, Teixeira Rego, Newton de Macedo, Luís Cardim, Hernâni Cidade, Magalhães Basto, Mendes Correia, Lúcio Pinheiro dos Santos, etc.] dessa escola de humanidades (à qual se irá fazendo cada vez mais justiça depois de tantas malquerenças) foram incontestavelmente tocados pela radiação da sua cultura.
É por este ângulo que mais tarde se apreciará principalmente este homem, admirando-se a sua influência concreta e convivente, olhando-o, enfim, como um verdadeiro caso socrático; porque de facto, um dos dons mais característicos deste homem foi o dom do conversador ateniense: a dialéctica perturbante, o estímulo directo e concreto das inteligências meias dormentes pela técnica espontânea da contradição, pela ironia, pelo fingimento da mordacidade a encobrir a mais profunda sinceridade de procura do que mais importa ao homem, a compreensão de tudo e de si próprio.
Com isto não queremos fazer supor que a obra de Leonardo Coimbra, como pensador, fique apenas sob a forma de refracção tradicional - e que será pelos que vierem depois dele que se poderá ter a verdadeira medida do seu espírito. O reconhecimento de que a sua personalidade total tinha as suas melhores ocasiões de revelação no acto concreto da comunicação das ideias, de pessoa para pessoa, não significa que as ideias depostas na sua obra escrita, estejam destinadas a serem tidas como as raspaduras literárias de um pensador essencialmente oral. De modo algum. Apesar de todas as suas desigualdades a obra literária de Leonardo Coimbra é o testemunho mais notável que possuímos de pensamento preocupado com o essencial. De resto, nessa obra, sob o ponto de vista artístico, há coisas belas que são únicas na nossa língua. Há nela imagens inesquecíveis, delicadezas descritivas de verdadeiro poeta, intuições súbitas, prodigiosas de poder iluminante. Mas, sobretudo, o que nessa obra interessará sempre é a inteligência extraordinariamente ágil e cultivada que nela se exprime. A Alegria, a Dor e a Graça, a Razão Experimental, o Pensamento Filosófico de Antero, o diálogo Do Amor e da Morte - bastariam para dar a Leonardo Coimbra, em qualquer país, a perenidade de um grande escritor de ideias.
Como todos os grandes homens Leonardo Coimbra foi um homem deslocado do seu tempo. Foi um homem inactual. Por isso teve o drama íntimo (e confrangedor para aqueles que o adivinhavam) de se sentir capaz de uma certa missão que não pode cumprir como queria: a missão do homem pensante, a missão do homem destinado a pensar e a fazer pensar [e a meditar, contemplar, silenciar].
Na realidade foi um verdadeiro delito colectivo a vida forçada de professor do ensino secundário de Leonardo Coimbra. Um dia se evocará essa condenação como um dos exemplos mais gritantes de incompreensão crassa dos poderes públicos quanto aos deveres de solicitude que todo o homem superior tacitamente requer.
Um homem como Leonardo Coimbra não era, claramente, um mestre que se devesse coagir a queimar o melhor da sua existência a ensinar desenho e álgebra elementar a crianças. Leonardo Coimbra era um mestre talhado para despertar adolescentes, para tornar largos e humanos os interesses espirituais dos homens novos, e para estimular mesmo homens na maturidade. A sua vastíssima cultura científica, a sua profunda e rápida visão dos problemas, a formação especulativa do seu espírito [melhor, da sua mente], e por cima disso tudo, os dons dialécticos admiráveis que ele possuía, faziam dele um paradigma único, que nunca mais talvez teremos tão completo [e Fernando Pessoa reconheceu-o também], do professor universitário removedor. O seu lugar era, pois, em um instituto de altos estudos ou em uma faculdade de ciências, como agente de ligação e metodólogo; ou em uma escola de humanidades, como mestre livre de conferências; ou em alguma coisa deste género. A tacanhez do meio porém não permitiu que se visse esta oportunidade única de quebrar o quadro escolástico e especializante [e farisaico e invejoso] do nosso ensino superior.
Ao fim e ao cabo, Leonardo Coimbra aceitou essa incompreensão do seu valor - mas, como em todas as personalidades inactuais, essa aceitação não se fez sem amargura. O seu sarcasmo foi uma das expressões digamos pudicas dessa resignação. Há que reflectir sobre esse complexo da resignação para se compreender as suas anedóticas reacções. Porque, intimamente - quero afoitamente levantar esta presunção, Leonardo Coimbra era um homem profundamento sério; simplesmente, essa seriedade foi gravemente lesada pelo modo inconsiderado e grosseiro com que o meio o tratou. Daí o seu expediente de defesa: o humorismo. Daí as quadras de surda abominação e indiferença mordente. No fundo, Leonardo Coimbra era excessivamente acompanhado da consciência do seu valor para não compreender que a sua obra ficava muito aquém do que ele poderia ter feito [e muito fez, publicou e irradiou pela palavra entusiástica removente, iluminante].
Que, no "continente de insondáveis mistérios", resplendam como espíritos unidos no íntimo a Deus e continuem a inspirar dinamicamente a Tradição espiritual da língua e alma portuguesa...
Pintura de Bô Yin Râ, dos mundos espirituais elevados. |
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