quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Fala de Sant'Anna Dionísio quando, de Leonardo Coimbra o corpo é dado à terra no cemitério da Lapa, no Porto, a 4 de Janeiro de 1936.

Pode ouvir o duo de harpas da amiga Andreia Marques e da Cláudia Cardeal,  enquanto lê o excelente discurso.  https://www.youtube.com/watch?v=WJ75Qgorf1E

 O discurso de Sant'Anna Dionísio  "momentos antes do corpo de Leonardo Coimbra ser abandonado a terra", no cemitério da Lapa, no Porto, a 4 de Janeiro de 1936, apenas com 53 anos, diante de centenas das "milhares de pessoas que acompanharam o orador poeta ao cemitério", tal como descreverá, com aspectos transfigurantes Teixeira de Pascoaes, no In Memoriam de Leonardo, foi transcrito por ele (parcialmente) na  sua obra Leonardo Coimbra. Contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, 1936, reimpressa em 1985 com uma adenda (que gravamos e está no blogue), é de tal modo evocador, despertante e perene que resolvemos transcrevê-lo, sublinhando as partes mais valiosas para não alongar o texto com comentários (breves e entre [  ]), a fim de poder circular pelos meios digitais de comunicação, dado a obra não se encontrar facilmente nos alfarrabistas. Demos graças a Sant'Anna Dionísio, um dos alunos, amigos, discípulos e companheiros que mais compreenderam, amaram e testemunharam Leonardo Coimbra, 1883-1936, mas espírito imortal! Muita luz e amor divinos neles! 

«Leonardo Coimbra  não é um homem que desaparece: o poder radiante do seu espírito, longe de diminuir e desvanecer-se com a morte, aumentará com o seu afastamento, pelo dobar do tempo. Ele ficará como uma força tão viva como  o de Antero. E se aqui falamos de Antero de Quental é porque, para definir o espírito de Leonardo Coimbra por um espírito que nos possa servir de referência, não se encontra outro, entre nós, além do de Antero, como termo de confronto. Um e outro foram os que, em toda a história espiritual portuguesa, testemunharam o mais alto grau de sinceridade, de constância diligente, na procura da solução do que mais importa ao homem. Ouso porém dizer que se, por certos aspectos, o valor de Antero, (sobretudo o valor ético da sua existência concreta de homem convivente), não padece confronto com nenhum outro, por outros aspectos, Leonardo Coimbra foi superior a todos, incluindo o próprio-filosófico dos Sonetos e das Tendências. Sem dúvida, Antero deixou uma obra artística mais perfeita; deixou uma imagem de ser convivente mais severa e vigilante; deixou um clima moral, que Leonardo Coimbra de modo algum [algo exagerado, porque conheceu ao vivo a ironia e causticidade de Leonardo] transmite; - mas Leonardo Coimbra deixa na sua obra duas realidades que sobrelevam visivelmente a de Antero: a consciencialização especulativa de uma cultura muito mais ampla e informada e uma acção mais eficaz no despertar dos interesses, entre os que participaram no seu convívio, pelos problemas fundamentais. De facto, Antero de Quental não deixou por morte, continuadores [embora tivesse deixado muitos seguidores do seu idealismo e da sua poesia, poetas]. Leonardo Coimbra, deixa-os. Continuadores - de quê? - dir-se-á. Da sua concepção da vida? da sua questão religiosa? das suas ideias políticas? da sua maneira de ser? de pensar? Não se trata de nenhuma continuação desse género. [O que irá Sant'Anna dizer: do fogo da demanda, da aspiração à verdade e à justiça?]. Nem ele teve, cremos, nunca a pretensão de preparar continuadores. O seu ensino sempre foi demasiado livre e despreocupado de espírito de magistratura para que nele se descobrisse algum dia a intenção de fazer discípulos no sentido estrito da palavra. A sua influência como mestre exerceu-se acima de tudo, não como captação, mas como perturbação, estímulo; por esse aspecto Leonardo Coimbra foi um professor único. Nunca, entre nós, de facto, existiu um professor no seu género; queremos dizer, tão influente no destino intelectual dos que tiveram a sorte de sofrerem em cheio, a influência do seu ensino sui generis. E contudo nós não queremos deixar de reconhecer que temos tido alguns notáveis professores na existência secular do nosso ensino universitário. Mas os catedráticos notáveis são, em regra, ou os professores que expõem bem, ou os ascetas da «preparação», ou os que investigam infatigavelmente na sua pequena célula [ou cela], ou os que animam com solicitude os investigadores novos na fase dolorosa do emparedamento espiritual, que se chama usualmente, «especialização»; por vezes mesmo, o professor notável é ainda menos que isso: é simplesmente o professor que cumpre. Leonardo Coimbra não estava dentro de nenhuma destas classes de professores. O seu ensino era específico: era o ensino de um homem que sacode espíritos, que agita latentes propensões e inquietudes, que remove tudo por dentro. Ele era tipicamente um professor removedor [um acharya ou guru, removedor das ilusões, ignorâncias, trevas]. Todos os homens novos que passaram a seu lado como alunos ou como simples conviventes reconheceram unanimemente o misterioso poder desse indefinível influxo da sua inteligência viva, inquieta, terrivelmente ágil e perturbante. 

Leonardo Coimbra, tendo no canto esquerdo Sant'Anna Dionísio, nos seus momentos mais felizes: rodeado das alminhas portuenses alunas e conviventes que receberam os seus influxos espirituais, anímicos, éticos e culturais.

O segredo da fecundidade, mesmo póstuma, desse instituto de Cultura, a Faculdade de Letras do Porto [1919-1931], (que enquanto incipiente laboração, foi uma das mais puras fontes de alegria íntima de Leonardo Coimbra, e, quando extinta, uma das suas mais profundas fontes de dor) deve ir buscar-se à acção deste estranho catalizador de interesses espirituais. Foi ele que sacudiu, pode dizer-se, todos os homens novos que aí estudaram e hoje principiam a dizer o que têm a dizer. [Sant'Anna Dionísio, Agostinho da Silva, Delfim Santos, Álvaro Ribeiro, etc.] Os próprios professores que ele agregou como cooperadores [tal Ângelo Ribeiro, Teixeira Rego, Newton de Macedo, Luís Cardim, Hernâni Cidade, Magalhães Basto, Mendes Correia, Lúcio Pinheiro dos Santos, etc.] dessa escola de humanidades (à qual se irá fazendo cada vez mais justiça depois de tantas malquerenças) foram incontestavelmente tocados pela radiação da sua cultura.
É por este ângulo que mais tarde se a
preciará principalmente este homem, admirando-se a sua influência concreta e convivente, olhando-o, enfim, como um verdadeiro caso socrático; porque de facto, um dos dons mais característicos deste homem foi o dom do conversador ateniense: a dialéctica perturbante, o estímulo directo e concreto das inteligências meias dormentes pela técnica espontânea da contradição, pela ironia, pelo fingimento da mordacidade a encobrir a mais profunda sinceridade de procura do que mais importa ao homem, a compreensão de tudo e de si próprio.
Com isto não queremos fazer supor que a obra de
Leonardo Coimbra, como pensador, fique apenas sob a forma de refracção tradicional - e que será pelos que vierem depois dele que se poderá ter a verdadeira medida do seu espírito. O reconhecimento de que a sua personalidade total tinha as suas melhores ocasiões de revelação no acto concreto da comunicação das ideias, de pessoa para pessoa, não significa que as ideias depostas na sua obra escrita, estejam destinadas a serem tidas como as raspaduras literárias de um pensador essencialmente oral. De modo algum. Apesar de todas as suas desigualdades a obra literária de Leonardo Coimbra é o testemunho mais notável que possuímos de pensamento preocupado com o essencial. De resto, nessa obra, sob o ponto de vista artístico, há coisas belas que são únicas na nossa língua. Há nela imagens inesquecíveis, delicadezas descritivas de verdadeiro poeta, intuições súbitas, prodigiosas de poder iluminante. Mas, sobretudo, o que nessa obra interessará sempre é a inteligência extraordinariamente ágil e cultivada que nela se exprime. A Alegria, a Dor e a Graça, a Razão Experimental, o Pensamento Filosófico de Antero, o diálogo Do Amor e da Morte - bastariam para dar a Leonardo Coimbra, em qualquer país, a perenidade de um grande escritor de ideias.

Como todos os grandes homens Leonardo Coimbra foi um homem deslocado do seu tempo. Foi um homem inactual. Por isso teve o drama íntimo (e confrangedor para aqueles que o adivinhavam) de se sentir capaz de uma certa missão que não pode cumprir como queria: a missão do homem pensante, a missão do homem destinado a pensar e a fazer pensar [e a meditar, contemplar, silenciar].
                                           
Na realidade foi um verdadeiro delito colectiv
o a vida forçada de professor do ensino secundário de Leonardo Coimbra. Um dia se evocará essa condenação como um dos exemplos mais gritantes de incompreensão crassa dos poderes públicos quanto aos deveres de solicitude que todo o homem superior tacitamente requer.
Um homem como Leonardo Coimbra não era,
claramente, um mestre que se devesse coagir a queimar o melhor da sua existência a ensinar desenho e álgebra elementar a crianças. Leonardo Coimbra era um mestre talhado para despertar adolescentes, para tornar largos e humanos os interesses espirituais dos homens novos, e para estimular mesmo homens na maturidade. A sua vastíssima cultura científica, a sua profunda e rápida visão dos problemas, a formação especulativa do seu espírito [melhor, da sua mente], e por cima disso tudo, os dons dialécticos admiráveis que ele possuía, faziam dele um paradigma único, que nunca mais talvez teremos tão completo [e Fernando Pessoa reconheceu-o também], do professor universitário removedor. O seu lugar era, pois, em um instituto de altos estudos ou em uma faculdade de ciências, como agente de ligação e metodólogo; ou em uma escola de humanidades, como mestre livre de conferências; ou em alguma coisa deste género. A tacanhez do meio porém não permitiu que se visse esta oportunidade única de quebrar o quadro escolástico e especializante [e farisaico e invejoso] do nosso ensino superior.

  Ao fim e ao cabo, Leonardo Coimbra aceitou essa incompreensão do seu valor - mas, como em todas as personalidades inactuais, essa aceitação não se fez sem amargura. O seu sarcasmo foi uma das expressões digamos pudicas dessa resignação. Há que reflectir sobre esse complexo da resignação para se compreender as suas anedóticas reacções. Porque, intimamente - quero afoitamente levantar esta presunção, Leonardo Coimbra era um homem profundamento sério; simplesmente, essa seriedade foi gravemente lesada pelo modo inconsiderado e grosseiro com que o meio o tratou. Daí o seu expediente de defesa: o humorismo. Daí as quadras de surda abominação e indiferença mordente. No fundo, Leonardo Coimbra era excessivamente acompanhado da consciência do seu valor para não compreender que a sua obra ficava muito aquém do que ele poderia ter feito [e muito fez, publicou e irradiou pela palavra entusiástica removente, iluminante].
                                        
Um dia, indo ao seu lado, ao longo de uma rua, disse-nos ele [certamente amargurado com mais alguma],  de repente, depois de um longo silêncio: - «Qualquer dia dou por írrito [sem valor ou efeito] e nulo tudo o que tenho feito e começo de novo» [Que coragem...] Na realidade, Leonardo Coimbra não podia começar de novo [tantas tinham sido as maravilhas sentidas, pensadas, intuídas comunicadas]. Porque nunca se começa senão uma vez. Temos por isso que nos contentar com essa obra que ele queria dar como írrita e nula. Ela ficará, - apesar de tudo -, como um testemunho suficiente da inteligência mais fulgurante e mais culta que até hoje tivemos.
Leonardo Coimbra, este homem trágica e prematuramente morto de quem me despeço, em nome dos seus antigos alunos, com a comoção de quem abraça um irmão que parte para um continente de insondáveis mistérios - Leonardo Coimbra viverá por essa obra truncada, por esta obra que ele realizou em tristes circunstâncias em que no nosso país se trabalha espiritualmente.»

Que, no "continente de insondáveis mistérios", resplendam como espíritos unidos no íntimo a Deus e continuem a inspirar dinamicamente a Tradição espiritual da língua e alma portuguesa...

Pintura de Bô Yin Râ, dos mundos espirituais elevados.

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