quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus Contemporâneos: Santos Graça, Paulo de Castro (Francisco de Barros Capachuz), Álvaro Ribeiro, Eduardo Dias Ribeiro Padrão e Manuel Couto Viana.

Nos Testemunhos dos seus Contemporâneos, de Leonardo Coimbra, após o  contributo de Eudoro de Sousa encontramos o 21º, de António dos Santos Graça (1882-1956), um notável etnógrafo e jornalista poveiro, intitulado Leonardo Coimbra, professor do Liceu da Pova do Varzim, que narra essa fase da vida de Leonardo, de 1912 a 1913, com  pormenores emocionantes e que bem patenteiam a força anímica luminosa do grande orador e pedagogo. Foi o caso de ao ser nomeado para professor do liceu, o que gerou receios dos mais conservadores, entre os quais o médico Caetano de Oliveira, que pedira a Santos Graça que tentasse evitar a entrada desse perigoso "anarquista e destruidor de crenças" no meio calminho ou conservador da Póvoa. Nada de mais ilusória tal fama e a breve trecho Leonardo tornara-se querido de toda a gens poveira, sobretudo após um discurso no Teatro Garrett, com fins de beneficência, em que «a cada momento a plateia levantava-se num aplauso entusiástico, jamais visto na terra.»
Dirá
ainda este notável etnógrafo dos barcos (e sua simbólica) e  pescadores da Póvoa do Varzim: «Como professor, teve sempre a estima e a mais alta consideração pelos alunos. A Bondade era uma das pautas do seu carácter e onde se mostrava realmente uma pessoa  superior. O cuidado pelos humildes e desvalidos enchia-lhe a alma. (...) Era, sem dúvida, um amigo dedicado ao seu amigo. Alma aberta e leal, que ao abandonar a nossa terra deixou em todos nós, em cada poveiro, um amigo que muito lhe queria.
Não admira, pois, que a sua morte dramáti
ca e brutal caísse nessa terra poveira como um raio que fulminou os nossos corações, já cheios de saudade pelo Mestre querido da nossa juventude.»

O 22º contributo, enviado de S. Paulo, em Junho de 1948, do jornalista Paulo de Castro, pseudónimo de Francisco de Barros Capachuz (1911-1993), notável democrata e lutador anti-fascista em Portugal e no estrangeiro, preso e deportado por mais de uma vez, e exilado no Brasil desde 1946,  sob o título de Evocação, consegue fazer sentir a genialidade   desafiante, desconcertante e trágica de Leonardo. Todo o artigo é valioso, e é com dificuldade que seleccionamos: «(...) Ia caminhando até à avenida dos Aliados, depois até um café onde ficava na companhia de seus alunos e alguns operários, vindos para o interrogar, contrariar ou agradecer um pouco da espiritualidade que se desprendia do seu diálogo ágil e encantador.
Leonardo Coimbra foi um desses homens a quem vulgarmente se chama de temperamento trágico. Ele imprimia a tudo o que o rodeava um sentido de transcendente inquietação, de nervosismo visceral, de pânico metafísico. Foi como Antero, um homem de tipo faustico, mas enquanto o primeiro conseguiu atingir uma serenidade aparente ou real e certa inteligibilidade convivente e especulativa, Leonardo Coimbra foi durante toda a vida um homem desconcertante e perturbador, um caso específico de inclassificação do ponto de vista humano e até filosófico (Nota: Numa página admirável da Luta pela Imortalidade, ele responde indirectamente aos que o acusavam de bergsonista).
O mais competente dos seus biógrafos, Sant'Anna Dionísio, descreve-o como homem alternadamente idílico e agitado, por certos ângulos amorável, por outros, satânico, em certos momentos tocado de angústia religiosa, em outros impelido por desalinhos arbitrários, ora místico, ora naturalista - e possuindo apenas esta característica constante: a curiosidade de saber.
Uma outra constante de seue spírito que impora pôr e relevo, se o quiseremos considerar na sua totalidade, é o amor entranhado, diríamos quase totémico, ao círculo da sua afectividade, compreendendo a família, os amigos e os discípulos. (...)
Leonardo Coimbra não era um homem de adesão definitiva a nada, exceptuando o seu mundo afectivo. O discurso que pronunciou no teatro S. Carlos em que fora previamente entendido que seria de adesão, quase finalizou em escândalo, pois, ao atacar o bolcehvismo, como sistema totalitário, ele atacou igualmente o nazismo e o fascismo e todas as formas e pretextos de esmagamento da pessoa humana. Terminou citando uma profecia de Gogol tão surpreendentemente herética para um auditório tão ortodoxo, que o público emudeceu de espanto.
Assim foi Leonardo Coimbra até ao fim, um semeador de perplexidades, um catalizador de cultura, um homem seduzido pela multiplicidade dos caminhos mais propícios à problemática do que à conclusão.
Longe de nós esboçá-lo como um cidadão exemplar à maneira de Antero ou de Raul Proença (...) Em Leonardo Coimbra há também humildade, quando longe de tudo o que lhe inspirava intuito de combate tinha momentos de elevada compreensão, de afectividade, de lirismo e de veemente exortação às melhores virtualidades humanas.»
 O testemunho de Paulo de Castro, que vale ainda por ser o de um anti-fascista que admirava muito Leonardo, foi concluído assim: «Mesmo quando a nossa interpretação seja diferente da sua, há uma essência que nos transmitiu, e que conservaremos como mensagem de um dos espíritos mais complexos, brilhantes e inquietos que nos foram dado a conhecer». S. Paulo (Brasil) Junho de 1948.

Já o 23º é um  profundo estudo acerca de Leonardo Coimbra e a política do seu tempo, já que a autoria é de um dos seus principais discípulos, Álvaro Ribeiro (1905-1981) e que, embora portuense, por Lisboa impulsionaria a chamada Escola da Filosofia Portuguesa, congraçando à sua volta a segunda geração de admiradores e estudiosos de Leonardo e que muito escreveriam posteriormente. Traça a evolução social e psico-filosófica, desde os tempos em que o estudante Leonardo Coimbra aparecia nos comícios a fazer discursos incompreensíveis, de corpo varonil, gravata à Lavalliere, «um revolucionário do grupo mais temível, proferindo tolstoianas palavras de esperança e amor», e narra como, já bastante depois da proclamação da República, em que passara de anarca ("os avançados") a republicano, alguém o acusara, num comício eleitoral em que ele criticara os extremismos, de já ter sido anarquista,  Leonardo replicara magnificamente: «- Sim, senhor. Também mamei, também gatinhei, mas, palavra de honra, não fiquei toda a vida a andar a quatro patas. E agora que tenho os braços livres para os erguer em prece, dou graças a Deus por me ter feito à sua imagem e semelhança».
Perante a crise ideológica da I República, com os políticos incapazes em aplicar os princípios e programas, Leonardo expõe e desenvolve «uma doutrina democratista, um pensamento político original e autónomo, que inteiramente se distingue do republicanismo dos seus contemporâneos e compartidários. Raras vezes se prestou a devida justiça à iniciativa isolada deste doutrinador».
Comentando a passagem "rápida e fulgurante" de Leonardo como ministro da Instrução Publica em 1919 e 1923, e a sua luta contra todas as forças da oposição, o que gerou a Questão Universitária e «que proferisse na Câmara de Deputados a sua obra prima de eloquência parlamentar» considera, e é sempre uma lição para nós este "morrer para renascer", que «Leonardo Coimbra perdeu a questão universitária. Nem a Faculdade de Letras foi transferida de Coimbra para o Porto, nem foi dada execução à reforma de estudos filosóficos. A cidade do Porto, berço do Infante D. Henrique, obteve, porém, um benefício para a sua Universidade: a existência de uma Faculdade de Letras, de que Leonardo Coimbra foi mestre, ou melhor, grão mestre. Leonardo Coimbra teve de passar pelo ministério para chegar ao magistério, e para reconhecer que a escala de valores consentida pelos políticos seus contemporâneos estava na razão inversa da ordem tradicional.»
Aluno directo de Leonardo, Álvaro Ribeiro saberá descrever bem a originalidade do funcionamento da Faculdade de Letras e o magistério de Leonardo. E embora não mencionando os aspectos tão valiosos da sua doutrinação juvenil anarquista, fraternalista, republicana, espiritualista, que se manifestaram em tantos artigos na Nova Silva e na A Águia, sem dúvida que o resumirá bem, ainda que com algum acanhamento da sua universalidade, no último parágrafo da sua comunicação:
«A experiência política de Leonardo que fim do pessimismo anarquista ao misticismo cristão, mediante um democratismo original e singular, não seguiu uma carreira rectilínea, desenhada pela vontade estóica na cidade cosmopolita e geométrica; mais se assemelha a uma curva descrita pela ansiosa procura da equação entre o amor humano e o amor divino. Na ordem da eticidade, todos os actos políticos de Leonardo Coimbra exprimem a mais elevada intenção do filósofo, sem quebra de coerência, sem mancha de oportunismos, embora numa linha de públicos insucessos e de privados desgostos.»

Leonardo Coimbra,  por Eduardo Malta. Pintura que era de Sant'Anna Dionísio.

Do 24º contributo, Duas palavras simples, memórias dum seu aluno num trimestre no liceu da Póvoa de Varzim, no ano de 1913, o poveiro professor primário Eduardo Dias Ribeiro Padrão, e que desencarnou em 1956, destacaremos a bem realista fotografia de Leonardo em acção:  «Era Leonardo Coimbra uma figura simpática e risonha. Todos nós gostávamos dele e das lições que nos dava.
Sempre que ele realizava conferências, a sua eloquência arrebatava o público que acorria para o ouvir. As mulheres, sobretudo, comoviam-se com a sua palavra ardente, sempre tocada da mais pura poesia. Era para elas um ídolo.
Tive uma irmã (com que saudades a evoco!) que algumas vezes o ouviu; e entusiasmava-se, - mais do que por isso, transfigurava-se - quando se referia a este Homem extraordinário que possuía o dom da palavra, sempre eloquente, substancial e burilada no melhor ouro da língua portuguesa. (...) Ficou-me sempre gravada no espírito a sua figura inconfundível, em cujo todo se adivinhavam as crepitações do génio. (...) Morreu como um justo. Aproximando-se de Deus, na hora imprevisível do seu trágico fim, mais se engrandeceu aos nossos olhos. Até nisso foi grande e dramática a sua existência».

Leonardo Coimbra pouco antes de partir para os mundos espirituais, precocemente e por isso deixando alguma perturbação e saudade nos seus amigos mais próximos.

O testemunho 25º é do Manuel Couto Viana, e intitula-se Já lá vão quarenta anos, e narra o impacto e influência exercidos por Leonardo Coimbra num grupo de estudantes e amigos, que s e reuniam no café Central, na praça D. Pedro IV, no Porto,   pois ele  «aparecia frequentemente lá, discutindo e persuadindo com o seu verbo fácil e profundo, atraindo pela simpatia pessoal que de si irradiava e pela bondade com que acolhia todos os que dele se aproximavam (...) Trazíamos debaixo do braço, a alardear cultura, A Força e a Matéria, de Büchner, e A Origem das Espécies [de Darwin], mas não tínhamos coragem nem pachorra para demorar os olhos no recheio dessa e doutras brochuras, compradas no Lelo, onde amiudadamente entravamos a vasculhar os escaparates. Líamos sim, avidamente Hugo, Zola, Tolstoi, Gorki e creio que já nessa altura Dostoievski, cujos dramas sociais, por eles tratados nos seus romances, nos emocionavam até às lágrimas e geravam em nós a maior revolta contra a sociedade burguesa.» Narra ainda o grupo Os Amigos do A.B.C, que «tratava de iniciar operários no conhecimento das primeiras letras e de lhes formar o cérebro na doutrina anarquista - então familiarmente designada, entre nós, pela palavra "Ideia"», quem sabe com que forças ligadas ao ideário e poética de Antero de Quental. Mas explicará:«Não éramos contudo, apologistas da acção directa, porque o não era também Leonardo Coimbra. Nunca ouvimos da sua boca uma palavra de incitamento à violência ou uma expressão de ódio. Nas conferências em que combatia o Positivismo, contra o qual vigorosamente se insurgia, nunca ouvi Leonardo Coimbra descer à injúria ou ao ataque pessoal. Tudo tratava no campo elevado das ideias, apesar da sua obsessão, que era, por essa altura, a de arrazar o credo positivista (...)
O certo é que no Porto univer
sitário dessa época, de febris preocupações políticas, avultava a sua figura, a despeito dos que o detestavam ou malsinavam - sem se atreverem a enfrentá-lo ou a medir com ele forças no plano da cultura. Leonardo Coimbra era efectivamente já alguém por essa altura de 1908», ou seja, no fulgor dos seus 25 anos. 

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