Comemoram-se hoje, 8 de Janeiro de 2024, os 140 anos da desincarnação de um dos grandes reformadores religiosos do século XIX, na Índia, Keshab (ou Keshav, ou Keshub) Chandra Sen, um dos da ínclita geração que impulsionou o famoso "Renascimento Bengali", preparando a independência indiana.
Nascera a 19 de Novembro de 1838, em Calcutá, numa família de pessoas cultas e devotas de Vishnu (vaishnavas), o pai morrendo quando ele tinha dez anos, sendo o avô, Ramkamal Sen, um conservador nos costumes (defendendo a sati, imolação da viúva), e diligente trabalhador, tesoureiro e editor, que chegou a secretário da Sociedade Asiática. Keshav Chandra Sen foi desde novo um ser de espiritualidade marcada e já aos 17 anos criara uma associação de estímulo da educação e cultura, a Fraternidade de Boa Vontade, com dois ingleses, mas será em 1859 que ingressa no movimento Brahmo Samaj [fundado em 1828 por Raja Ram Roy (1782-1833), e Dwarkanath Tagore], sendo acolhido de braços abertos pelo então presidente e filho de Dwarkanath, Debendranath Tagore (1817-1905), o pai de Rabindranath Tagore (1861-1941, prémio Nobel de Literatura em 1913), e trabalha como secretário do seu filho mais velho por algum tempo. Pouco meses depois criava uma associação, Sangat Sabha,
a Associação Amiga, com os membros mais entusiásticos e jovens, para estudarem os problemas sociais e espirituais da época, nomeadamente discriminarem o que era certo e errado nos costumes hindus de então, e dissociarem-se de actividades consideradas idolatras ou imorais, valorizando a verdade, a temperança e o serviço desinteressado. Um dos membros era Bijoy Krishna Goswami (1841-1899) e, como Keshav Chandra Sen, cheio de aspiração à realização da verdade, e que se destacou rapidamente. De tal trabalho de jovens resultou da parte do mais ancião e presidente Debentranath Tagore a eliminação de certas práticas até então admissíveis nos membros do Bramo Samaj.
Debendranath Tagore, 15-V-1817 a 19-I-1905. |
O vice-rei inglês John Lawrence, reconhecendo o seu génio e talvez crendo que ele se estaria a converter ao Cristianismo, ao valorizar a oração e o arrependimento, e ao apreciar Jesus e a sua mensagem, convidou-a ir em 1870 a Inglaterra, a Londres, onde esteve seis meses, brilhando pela sua palavra inspirada sábia e entusiástica, encontrando-se com a Rainha Vitória, Max Müller e Stuart Mill, mas sentindo alguma desilusão, bem natural face à vaidade e arrogância proverbial inglesa, resumindo assim a imersão no mundo britânico, no discurso antes de regressar à Índia: «Cheguei aqui como um indiano, e regresso reforçado como indiano. Cheguei como um Deísta, e regresso confirmado como um Deísta. Aprendi a amar o meu próprio país mais e mais».
Tendo
tido várias controvérsias quanto a reformas religiosas e educativas, ao
permitir em 1878 o casamento, ainda que por procuração, da sua filha apenas com 14
anos com o noivo de 15, o filho do maharaj de Cooc-Bear, contrário aos princípios que no seu Brahmo Samaj proclamara, causou uma forte desilusão em muitos dos associados que deixaram o grupo e criaram o Sadharana Brahmo Samaj. Com a sua desencarnação em 1884, sem a sua alma e palavra ígneas, a Nova Dispensação não encontrou um sucessor à sua altura e foi-se extinguindo exteriormente. Os seus discursos e livros, ideias e intuições, esses fazem parte do património imaterial da Humanidade e neste dia 8 de Janeiro de 2024, dos 140 anos da sua "Ascensão" da Terra física, viemos até ele e eles em peregrinação, grata e luminosa.... Aum, Keshab Chandra Sen!
Muito importante na vida de Keshab Chandra Sen foi o contacto com o carismático e realizado mestre Ramakrishna Paramahamsa (1833-1886), que aconteceu em 1875, quando este foi propositadamente a casa onde estava Keshab Chandra para o conhecer e de certo modo para mostrar o que era a verdadeiro caminho de realização espiritual. Terá sido Narendra, mais tarde swami Vivekananda, que participava e cantava nas reuniões do Brahmo, quem terá causado esta aproximação, gerando um valioso diálogo entre ambos, e com os cantos entoados em êxtase por sri Ramakrishna diante dos seguidores de Keshav, a serem de tal modo impressivos que, quando aqueles lhe perguntaram no fim porque não reagira à leve ironia com que Ramakrisna os avaliara em termos de realização espiritual, Keshav Chandra Sen confessou que pregar sobre Deus, ou tentar ensinar Sri Ramakrishna, seria como oferecer alfinetes a um ferreiro. Keshav Chandra aprofundará então, graças aos repetidos encontros com sri Ramakrishna, a aproximação devocional a Deus com forma, já que antes era mais um Teísta, vendo um Deus imanente como força omnipresente e como Criador adorado, sendo estimulado por Sri Ramakrishna para uma devocionalidade de comunhão interna e de base tântrica ou shaktica em que a Mãe Divina era adorada principalmente.
O Templo dedicado a Kali onde Ramakrishna era sacerdote em Dakshineswar junto ao rio Ganges, Ganga Devi... |
Sri Ramakrisna gostava muito de Keshab Chandra Sen e as páginas do valioso Evangelho de Ramakrisna narram belos episódios dialogantes desse relacionamento não se dirá tanto de mestre e discípulo mas de duas grandes almas, tanto mais que como Ramakrishna era sacerdote num templo em Dakshineswar junto ao Ganges, onde acolhia os seus visitantes e discípulos, Keshub ia buscá-lo de barco e singravam no tão sagrado e profundo rio Ganges em elevadas conversas por vezes entrecortadas por cantos que geravam estados de grande amor e felicidade em ambos e em quem assistia. Através de Keshav e do Brahmo Samaj, Ramakrishna tornou-se bastante mais conhecido em Calcutá, e ambos ofereceram uma visão mais universal e ecuménica das religiões e seus mestres, ao mesmo tempo que valorizavam e vivenciavam a realização espiritual interior.
Em 1882 Keshab funda uma outra Nova Dispensação, um Novo Ensinamento libertador, e em seguida iremos lê-lo em alguns discursos ou textos, do ano de 1880, quando realiza de Janeiro a Setembro com os seus discípulos e seguidores o que ele chamou Sadhusamagama (e cujo livro, de 1956, me serviu para as transcrições in fine), isto é, discursos de aproximação ou peregrinação aos santos ou profetas, na sua característica universalidade da religião, e que foram a Moisés, a Sócrates, a Sakya (Buddha), aos Rishis (os videntes dos Vedas), a Cristo, a Mohamad, a sri Chaitanya e aos Cientistas (tal Galileu, Kepler e Newton). Realizavam-se de forma muito original, com preparação em reuniões, leitura de textos sobre eles ou deles, seguindo-se uma procissão ou peregrinação à Casa do Lírio, que era preparada de acordo com os mestres ou religiões que se invocavam e peregrinavam, havendo então as orações-discursos espirituais de Keshab, com invocações divinas ou dos mestres, e com os adeptos do grupo respondendo com orações, numa espécie de diálogo entre Deus e os adeptos-peregrinos. Embora contenham aspectos de comparativismo algo superficial, ou sincretismo pouco fundamentado, nomeadamente ao equacionar como idênticos Jehova e Brahma, têm contudo aproximações bem sensíveis e originais a alguns dos mestres e ensinamentos peregrinados, e que valerão a pena ser estudados por comparativistas, orientalistas e espirituais.
Oiçamo-lo então em 1880, a proclamar muito
entusiasticamente algumas das suas ideias-forças: «Nos dias de hoje a Ciência matou a distância, no
mundo físico pelo vapor e a electricidade, no mundo espiritual pela
introspecção e a visão imediata (...) A ciência é o que nos ensina os modos da Divindade viver em nós e em toda a parte como a força espiritual que reside imanente. Olhai, e vede subjacente a toda a força secundária esta força imanente Divina, o poder central causal ou Poder Divino. Não vemos uma longa cadeia causal mas um círculo no qual tudo na criação está directa e imediatamente conectado com a força central.
Mas manifesta-se este Deus vivo sozinho?.... O céu, o lugar de residência dos santos e profetas está incluído nesta visão de Deus. Todos eles habitam em Deus, e retiram a sua alimentação espiritual e inspiração dele. Todos eles brilham na luz do Sol Central e reflectem a sua Glória. (...) Está a chegar o tempo em que não
só o Deus vivo revelar-se-á à visão imediata dos seres humanos por todo o
mundo, mas também os santos desencarnados no céu manterão comunhão com
os homens e mulheres nos seus corações».
Esta doutrina do corpo místico, ou comunidade de mestres ou santos e santas, será reforçada no discurso de 11 de Abril de 1880: «Desde o começo da criação-emanação todos os santos e profetas enviados pela Divindade são mantidos juntos na matriz da união vital e espiritual, não só da Índia mas de toda a Humanidade. Assim no último dos santos todos os santos de todos os países estão juntos e unem-se numa festiva dança em círculo de amor (rasa-lila). Este é o seu modo de se alegrarem, de celebrarem a união espiritual, a qual o devoto espiritual pode testemunhar na visão mística (ou no terceiro olho). (...) Apesar de pertenceres ao nível mais baixo (ou terreno) da Escola Divina, tu podes mostrar ao mundo que em cada um de vós habita a hoste unida dos santos e santas de todos os tempos. Se quereis aceitar a religião da Nova Era, - a religião da Nav Vidhana, a Nova Dispensação, então permiti que todas essas almas luminosas vão convosco para toda a parte. Não abandones uma que seja. Aprecia cada um e todos, mas toma cautela de moldares a tua vida apenas pelo padrão do teu santo ou mestre patrono. Nenhum profeta particular é o ideal da vida espiritual deste século, mas a espiritualidade de toda a hoste de homens e mulheres santos na sua totalidade será o teu exemplo. Todos os bons livros, todas as escrituras, todos os nobres exemplos que o mundo produziu devem ser aceites pelos que acreditam na Nova Dispensação. A Nav Vidhana apropriar-se-á de cada século o que de mais excelência espiritual existe. O mais ilustre e glorioso santo ou mestre dum século é o portador santificado dos valores espirituais desse século. O santo ou santa de qualquer período é o vaso escolhido de todo o bem de todos os que já partiram (...)
Ó irmãos Brahmo (na Divindade), tomai o vosso lugar no mais baixo dos vasos na ordem da dispensação, e assim como a água flui do quatro, terceiro e segundo nível para o primeiro, assim o elixir de todas as épocas do passado vivo fluirá até à vossa alma, e será como um presente celestial gracioso para a vossa felicidade. Cada gota desta ambrósia leva consigo a quinta-essência da precioso sangue vital dos abençoados de todas as eras, de tal modo que tereis uma experiência única de Hindus, Budistas, Islâmicos e Cristão todos unidos num só coração e alma. Abençoados, três vezes abençoados sóis vós aos serdes favorecidos com este presente da vossa Mãe Divina, tornando-vos herdeiros do reino celestial.»
Saudemos por fim Keshab Chandra Sen, e ainda sri Ramakrisna Paramahamsa, invocando as suas bênçãos e inspirações para todos nós e esta humanidade ainda tão manipulada e sofredora. Aum, Lux Dei, Om Brahman!
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