sábado, 24 de junho de 2023

Subba Row, o ocultista colaborador de Blavatsky e Olcott, e a sua morte precoce. No 133º aniversário dela.

Tallapragada Subba Row, 6 de Julho de 1856 a 24 de Junho de 1890. Aum!

No caderno diário da minha quarta viagem à Índia, que durou um ano, em 1995, na folha 20 anotei:
«Folheio à noite
os Esoteric Writings de Subba Row. Curiosamente morreu aos 34 anos com uma doença infeciosa de pele que em pouco tempo o desfigurou.
Um
homem considerado genial, um sábio, porque morreu assim tão
cedo, deixando uma jovem mulher viva?
Haveria algo de "castigo" pelas suas posições talvez demasiado orgulhosas ou realçadoras da posição do homem como espírito, acima de qualquer anjo ou mensageiro?
Ou
será que o seu espírito crítico recebeu reacções graves? Ou ainda o seu espiritualismo e misticismo, isolando-o eventualmente da mulher, cortaram-lhe certas forças que lhe permitiriam vencer as energias adversas?
Mistérios
, e a curta biografia que dele possuímos, da autoria de Olcott, não permite desvendar o panorama.»

Assim escrevia eu há quase trinta anos. Será que conseguiremos esclarecer um pouco mais a sua misteriosa vida e morte, dada a profusão de informação a que se pode aceder hoje tanto pelos livros como pelas publicações na rede electrónica?

A obra comprada na época encontra-se hoje 24 de Junho de 2023, dia de anos da morte ou desincarnação de Tallapragada Subba Row, ao meu lado, e com algumas indicações recolhidas na net vamos tentar clarificar o texto de 1995, e sabermos mais do destino de Subba Row, a quem desejamos muita luz e amor nos mundos espirituais.
No prefácio
da 1ª edição, de 1895, o teosofista T.T.,  lamenta não ter conseguido descobrir mais dados sobre Subba Row do que os apresentados pelo coronel Henry S. Olcott num artigo na revista The Theosophist, e lembra como Madame Blavatsky o considerava muito, consultando-o em questões complexas. E que a dado momento «lhe enviou os manuscritos da sua obra mais valiosa a Doutrina Secreta, para corrigir e alterar; mas ele declinou lançar-se em tal obra pois pensava que o mundo não estava ainda pronto a aceitar tais segredos que, por boas razões, cujo conhecimento tinha sido conservado por uns poucos de seres sagrados». 

Lembrando depois que Subba Row não escrevera  livro e só artigos para revistas, refere que em 1887, na Convenção da Sociedade Teosófica, em Madras, ele proferira umas palestras sobre a Bhagavad Gita que foram muito apreciadas e sendo por isso editadas (e podendo nós lê-las no Arquivo da Internet).
Acresc
enta que do conteúdo de tais conferências e nomeadamente por Subba Roy discordar da divisão septenária do ser humano e ter criticado a adoptada por Blavatsky, nascera uma controvérsia por escrito entre os dois, que foi incluída nos Esoteric Writings, obra que ainda assim tem 574 páginas, pois além de uns poucos artigos originais contém várias respostas ou instruções dadas por ele sobre temas filosóficos, ocultistas, budistas, vedânticos, históricos e que pode ver pela fotografias do índice deles que reproduzo:

                                    

E a seguir ao pouco elucidativo prefácio, e veremos até que noutras versões Subba Roy teria respondido que discordava de inúmeras partes da Doutrina Secreta e que se demarcava da obra, podemos ler a biografia obituária que Olcott redigiu para a revista Theosophist, em 1890.

Apresentando-o como um  jovem filósofo místico indiano brilhante, e será no fim do artigo que traçará brevemente a sua biografia, conta como ele em Abril de 1890 contraíra uma doença de pele misteriosa e que no «começo de Junho lhe enviara um pedido tocante de o ir ver, o que claro, eu fiz. Ele estava num aspecto lamentável [piteous sight]: o seu corpo era uma massa de crostas da cabeça aos pés, e não podia sequer suportar um pano sobre si, nem descansar em qualquer posição confortável, nem dormir bem. Estava deprimido e desesperado, e suplicou-me [begged] para tentar se o podia ajudar um pouco com mesmerismo. Tentei com toda a minha força e pareceu-me com algum sucesso, pois essa tarde começou a recuperar (mend) e, à terceira visita, ele e eu pensamos que já estava convalescente e assim informamos a infeliz família. Mas subitamente veio um relapso [ou retorno], a sua doença terminou rapidamente o seu curso  e a 24 de Junho às 22:00 ele expirava, sem uma palavra ou sinal para os outros acerca de si. [Tanto mais que desde o meio dia informara os que o rodeavam que iria intensificar o calor (tapas) da prática espiritual, e apenas um familiar se encontrava no quarto no momento da separação do corpo.]
Contudo Olcott anota:«ao meio dia desse dia, ele disse que o seu Guru chamara-o, e que ele ia morrer, e que ia agora começar a sua tapas (mystical invocations) e que não queria ser perturbado. E a partir dessa altura não falou com ninguém. Quando ele morreu uma grande estrela caiu do firmamento do pensamento contemporâneo indiano. Entre Subba Row, H. P. Blavatsky, Damodar e eu havia uma amizade estreita. Ele foi especialmente instrumental ao convidar-nos a visitar Madras em 1882 e ao induzir-nos a escolher esta cidade como a sede permanente da Sociedade Teosófica.»

H. S. Olcott refere depois brevemente as disputas ou polémicas com Blavatsky e de uma forma excessivamente curta, amaciadora e atribuindo-a terceiros:  «Uma disputa - de certo modo devida a terceiras partes - que se alargou para uma brecha, nasceu entre H.P.B e ele acerca de certas questões filosóficas, mas até ao fim  falou dela, a nós e à sua família, no antigo modo familiar. Quando nos vimos pela última vez tivemos uma longa conversa sobre filosofia esotérica, e disse que logo que ficasse bem, viria à Sede e redigiria várias questões metafísicas que gostaria que o senhor Fawcett discutisse com ele n' O Teosofista. O seu interesse no nosso movimento não abateu até ao fim, ele lia regularmente O Teosofista, e era um subscritor do Lucifer de H. P. B.». Veremos num próximo artigo que não foi bem assim pois as críticas que Subba Row fez ao manuscrito da Doutrina Secreta, para a qual Blavatsky queria que ele fosse co-autor ou co-editor, e as discordâncias doutrinais e metodolíco-divulgativas fizeram-no mesmo demitir-se da Sociedade Teosófica em 1888.

Henry Steel Olcott, 1832-1907.
Contudo, anos depois, nas suas memórias, consignadas nas Old Daily Leaves, vol. IV, 241-2, Olcott acrescenta outros dados sobre misteriosa morte: "No dia 3 de Junho, visitei T. Subba Row a seu pedido e mesmerizei-o . Ele estava em um estado terrível, com o corpo coberto de furúnculos e bolhas da coroa à sola, como resultado de envenenamento do sangue por alguma causa misteriosa. Ele não conseguia descobrir a causa em nada do que havia comido ou bebido e, portanto, concluiu que devia ser devido à ação malévola dos elementais, cuja animosidade ele tinha despertado com algumas cerimónias realizadas em benefício de sua mulher. Esta foi a minha própria impressão, pois senti uma influência estranha sobre ele assim que me aproximei. Conhecendo-o como o ocultista experiente que ele era, uma pessoa muito apreciada por H.P.B. e autor de um curso de palestras magníficas sobre a Bhagavad-Gita, fiquei inexprimivelmente chocado ao vê-lo em tal estado físico. Embora o meu tratamento de mesmerismo não lhe tenha salvado a vida, deu-lhe tanta força que ele pôde ser transferido para outra casa e, quando o vi dez dias depois, parecia convalescente, a melhoria datando, como ele me disse, da data do tratamento. A mudança para melhor foi, contudo, apenas temporária..."

Tallapragada Subba Row sentado com Blavatsky, em 1884.
As forças estranhas de elementais ou de magos que o teriam apanhado? Uma cerimónia realizada indevidamente? Mais simplesmente, o descuido ou azar de um contágio?  Ou o destino que lhe marcara um tempo de vida demasiado curto para o muito que sabia, segundo Helena P. Blavatsky, que na sua revista Lucifer partilhava também a sua visão do ocorrido, terminando com um católico que a terra lhe fosse leve, algo que até pouco esperaríamos de uma ocultista, que contudo nesta linha logo lhe deseja uma rápida reincarnação, e na terra dos Árias:
Lucifer, Agost
o de 1890: "Há poucos membros da Sociedade Teosófica que não tenham ouvido falar de Subba Row, o grande scholar [especialista-sábio] Vedântico; há poucos leitores da Doutrina Secreta que não estejam familiarizados com seu nome, como o talentoso autor das Lectures on the Bhagavad-Gita... O Karma tem maneiras misteriosas de alcançar os seus objetivos, que para o profano devem permanecer para sempre insondáveis. Só podemos lamentar profundamente que tal karma tenha atingido alguém cuja morte privou Madras de um intelecto gigante, e a Índia perdeu um de seus melhores scholar [erudito ou sábio].
Possa o seu próximo renascimento
ser rápido e que sua vida seja mais longa e, acima de tudo, que ele possa ainda nascer na Aryavarta [na terra dos Árias]. Sit tibi terra levis."["Que a terra te seja leve". Ou, diremos nós,  que o peso do karma terreno não pese no teu coração e corpo espiritual e te eleves bem no mundo espiritual e para o divino.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Do Amor dos Livros e da Sabedoria Divina.

O Amor dos Livros é o Amor da Sabedoria e da comunhão com os seus autores e ensinamentos. É   pois aprofundamento do conhecimento,  ligação subtil às almas imortais,  intensificação da luz espiritual em nós e demanda e aproximação da Divindade. 

Entrarmos e lermos numa Biblioteca é prestarmos culto aos autores presentes, às suas ideias e mensagens, e sobretudo à Divindade, à santa Sabedoria, a Hagia Sophia, donde tudo emanou e emana na sua íntima e profunda essência, que nos desafia e interpela sempre.
Quando trabalhamos em paz e aspiração numa biblioteca, ou com os nossos modestos livros,  o coração psíquico e espiritual abre-se mais e somos verdadeiramente cavaleiros ou cavaleiras na demanda do Graal, da taça da beleza, sabedoria e amor que conseguimos sintonizar, compreender, recolher e  viver desses elos da Tradição Perene que contemplamos, abordamos, e que chegam ao mar da nossa alma, banhando-a ou incandescendo-a harmonizadora e curativamente.

Cada livro em si, no autor e época, no  conteúdo e estilo, nos aspectos da edição e da ilustração, ou mesmo da encadernação, é uma súmula ou microcosmos de muitos contributos valiosos e anónimos para os quais a menção do artista, do impressor ou da editora é apenas a ponta do iceberg do que estamos a ver e a interrelacionar-nos, tanto é o que subtilmente nos toca e se comunica,
E quando consideramos imaginalmente as pessoas que possuíram o livro, e o anotaram ou assinaram, ou os amigos e investigadores, livreiros e alfarrabistas que nos recomendaram ou transmitiram, entramos então numa fraternidade  de elos de uma riqueza vivencial por vezes extraordinária.
A Catarina, com o seu pai José Manuel Rodrigues, os responsáveis da Livraria Antiquária do Calhariz, e ao meio outro ilustre alfarrabista e investigador, Luís Burnay. 
E que emoção nos toca, quando subitamente descobrimos que um livro tem no seu interior a assinatura de uma pessoa de família ou amiga, o local, a data e que desconhecíamos. Ou quando lemos a dedicatória sentida do autor, impressa ou manuscrita,  ou mesmo a modesta anotação anónima mas iluminante e amplificante. 

Que ressonâncias gratas para com a Natureza são impulsionadas na nossa alma pela descoberta de umas papoilas, ou folhinhas graciosas e flores algo esmaecidas mas ainda coloridas, ou mesmo um trevo de quatro folhas, fazendo-nos cogitar a autoria, o momento, a cena, os sentimentos, a mensagem que se tentou perenizar nessa espécie de garrafa de água lançada ao oceano, e que com a sua imensa e misteriosa delicadeza ressuscita agora e nos submerge,  fazendo-nos transcender o tempo limitado horizontal e penetrar no coração espiritual, na gratidão, na comunhão do corpo místico dos espíritos (tão procurada entre nós por Antero de Quental, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa, entre outros), e logo na imortalidade ou mesmo eternidade...
A comunhão com os livros e o Logos ou Intelecto agente que está por dentro e detrás deles, obtida no seu cuidar e ler, aprender, anotar e amar, tende a tornar-nos semeados ou fecundados por eles e logo a gerar também outros, que desejaríamos sábios,  belos, valiosos e úteis, embora saibamos pela sabedoria indiana (Bhagavad Gita II, 47) que temos direito ou mesmo o dever (dharma)  de agir mas não necessariamente de recolher os frutos naturais, merecidos ou desejados, sobretudo tendo em conta a situação do mercado editorial e da distribuição dos livros e a forte manipulação superficializante e alienante em relação à sabedoria mais verdadeira e profunda...
O Amor-Sabedoria nos livros é pois fecundo, frutífero, iluminante e unificador mas também desprendido e libertador. E sendo eles  um dos seus melhores ou mais preciosos vasos, sempre disponíveis e tão subtil e luminosamente  inspirando-nos como guias ou musas das almas no Caminho, que as nossas mãos e corações continuem a saber cultivá-los, amá-los,  aprofundá-los...

domingo, 18 de junho de 2023

Blavatsky, Espiritismo, Teosofia, Orientalismo, Woodstock, Timothy Leary, LSD, CIA, Nova Era e Transhumanismo versus Filosofia Perene. Diálogo com Manuel Jorge Ventura e Carlos Dugos.

Do extraordinário artista Henry Fusseli (7.II.1741 a 1815), um dos inspiradores de William Blake,  eis uma reactualização do desvendar de Ísis num culto iniciático antigo: o véu de Maya, ou Natureza, desvanece-se e a Luz ou mesmo as formas Divinas manifestam-se

Um texto de Emmette Coleman acerca de Helena Petrovna Blavatsky e os plágios e eventuais fraudes com que teria escrito a famosa Ísis sem Véu, brevemente contextualizado por mim num recente artigo deste blogue, a 6 de Junho, Helena P. Blavatsky mistificou por vezes? Qual a originalidade e valor da Isis sem véu? Por W. Emmete Coleman. Tradução, recebeu de dois conhecedores da espiritualidade amigos, adeptos da Filosofia Perene, comentários que merecem ser respondidos e partilhados. É o que passo a fazer, transcrevendo primeiro a apresentação contextualizante inicial:
«William Emmete Coleman foi um bibliotecário e espiritualista,  defensor da liberdade de consciência e religião e contra a escravatura, tendo sido depois um administrativo do General Cambay na Guerra Civil norte-americana. Foi um orientalista e membro da American Oriental Society, da Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, e do Pali Text Society, esta ligada ao Budismo. Questionou tanto aspectos do Cristianismo como casos ditos de espiritismo, nomeadamente aqueles em que participou Madame Blavatsky (1831-1891) bem como o seu companheiro o coronel Olcott e investigou a originalidade ou o plagiarismo das suas duas obras principais  Ísis sem véu, e Doutrina Secreta, escrevendo alguns artigos importantes dada a grande credulidade com que tais obras foram recebidas como provenientes de textos com milhares de anos (no caso da Doutrina Secreta, as famosas e nunca confirmadas estâncias do Livro de Dzyan) e de mestres invisíveis, os famosos Mahatmas dos Himalaias que se correspondiam com ela por cartas, por vezes bastante prosaicas como podemos constatar hoje em dia.  Se observamos cuidadosamente vemos que à parte algumas citações do código de Manu e de Shastras indianas, a quase totalidade das suas fontes são da tradição grega, hebraica e cristã, e em seguida dos vários ocultistas e herméticos ao longo dos tempos, culminando com as últimas correntes do magnetismo, do evolucionista e do espiritismo, esta considerada por ela como o elo entre a ciência e a religião, teoria valorizadora do espiritismo, que na altura ela aindapraticava, e que abandonará com a sua orientalização. 

A obra principal de William Emmette Coleman contudo perdeu-se em  1906, no terramoto de S. Francisco  na  Califórnia e era nela que detalhadamente demonstrava os plágios e as manipulações de Helena P. Blavatsky na feitura de tais obras, pelo que nos ficaram apenas alguns artigos, nomeadamente o seu índice das fontes não referidas na Ísis sem véu, e que foi inserido no fim da obra crítica de Blavatsky, por Vsevolod Solovyov's: A Modern Priestess of Isis, de 1895. Emmette nascera a 19 de Junho de 1843, tivera um breve casamento, pois a mulher morreu cedo e partiu para os mundos espirituais a 4 de Abril de 1905. Quanto ao artigo ele é valioso, embora certamente tenhamos de ter em conta que provém de um crítico do conhecimento e fidedignidade de Blavatsky, pelo que será sempre bom ouvir as versões bem apreciadoras da sua vida e obra, e que são a maioria. Mostra-nos os aspectos iniciais da sua actuação como espírita, depois a fundação de uma agremiação  Teosófica e posteriormente a sua repulsão do movimento espírita e a sua reformulação na Índia e no Ceilão, e em contacto com as tradições religiosas e espirituais locais, e algumas personalidades, do que se tornou modernamente o corpus doutrinário da Teosofia, ou como René Guénon lhe chamou o Teosofismo, título de uma obra também contra a corrente, e muito crítica de Blavatsky, Annie Besant e Leadbeater e da sua vulgarização da Tradição. Caberá a cada um de nós tirar as suas ilações do texto transcrito e que certamente pouco afectará a estima e aceitação que tanta gente tem por tão discutida como audaciosa e criativa personalidade, e pela sua tão rica e tantalizante obra, ainda que bastante abstrusa, contraditória e inconfirmável.» 
Ora o Manuel Ventura respondeu ao artigo do blogue partilhado por mim para o Face, deste modo: «É hoje possível observar de forma muito nítida que juntamente com a gosma espírita que sempre amparou a S[ociedade]T[eosófica] no seu substrato institucional - para lá do episódico refugio de movimentos de idéias mais genuinos, que a protecção de que sempre beneficiou M. Blavatsky decorre sobretudo da importância que o "orientalismo" teve e tem para servir interesses dúbios de desestruturação das instituições tradicionais do Ocidente e do espaço próprio que natural e geograficamente lhe cabe na Tradição, sem prejuízo do valor que para a filosofia Perene possam ter culturas, religiões ou sistemas de pensamento de outros espaços ou períodos históricos.
Esse movimento desestruturador e outros que lhe têm sucedido num contexto mais vasto e profundo que se atrela com maior visibilidade a partir da Revolução Francesa tem sido extraordinariamente bem sucedido, pelo que todos os contributos de informação e critica ainda que pontual e parcialmente dirigidos são louváveis.
E este, no teu caso, caríssimo Pedro, também meritório de um aplauso e agradecimento!»
 
Seguiu-se a  minha resposta publicada na mesma opressiva rede social:
«Caríssimo Jorge. Graças pelo teu importante comentário e que mereceria um texto complementar, já que o que dizes, embora certo em certos aspectos noutros é algo radical. Bem vi que ressalvastes a universalidade da Tradição Perene, e te dás conta de que o Orientalismo é um conceito pouco definido e claro e que tem servido para muitos fins contrários ao seu mais lídimo sentido que será os que estudam, conhecem, amam a sabedoria, ou a tradição, Oriental em certos aspectos da sua tão rica pluridimensionalidade. Tenho uma visão não só metafísica mas também histórica da Humanidade e dos seus conhecimentos e movimentos religiosos, filosóficos, esotéricos, espirituais e logo vejo também ou melhor a sua inserção dialéctica, e logo necessária, no devir no tempo e espaço da Manifestação...»
 
Com esta equilibrada resposta, ainda que discordasse da designação de "gosma espírita", algo radical para mim, já que houve tantos grandes seres, - de Victor Hugo e Balzac a Camille Flamarion e Charles Richet- , a participar nesse movimento que teve o papel importante de evidenciar a existência de vida após a morte e de alguns poderes psíquicos  humanos poucos estudados, pesem as milhares de fraudes e mistificações, sabendo-se até que a Madame Blavatsky nos seus primeiros anos fez parte do movimento espírita, tanto como medium ou jornalista. Embora tenhamos lido a obra Le Spiritisme de René Guénon, muito crítica do espiritismo,  "gosma" é expressão algo insultuosa para a grande riqueza de esforços e dedicação, com consequências  ou efeitos frequentemente bons, como podemos comprovar nas biografias de muitos espíritas mais conhecidos.
 Quanto à crítica ao Orientalismo como elemento destruturador do da tradição Ocidental também me parece exagerada (tanto mais que o Ocidente invadiu e colonizou no Oriente), embora haja vários movimentos orientais no Ocidente algo caricatos, exagerados ou melhor tenha havido várias pessoas que se aproveitaram de aspectos da sabedoria oriental para fins pessoais e frequentemente com desconhecimento de causa, ou seja superficialidade tanto de conhceimento como de experiência. O ensino do Yoga no Ocidente, no Brasil e em Portugal apresenta vários casos conhecidos de instrutores megalóamnos, pouco escrupulosos e que usaram e abusaram das organizações, federações e seguidores, denegrindo bastante a sabedoria oriental, na qual os vários tipos de yoga se inseriam e inserem. 
Creio contudo que como dizes "esse movimento de orientalização, essa tentativa de destruturação do Ocidente, que remete mesmo para a Revolução Francesa", terá a teu ver  mentores e actores na sombra, que seria bom sabermos melhor.
Georges Dumézil (4-III-1898 a 1986), um génio linguista e um dos mais profundos conhecedores da civilização indo-europeia e das suas línguas, estruturas, mitos e religiões.
Lembrarei ainda para terminar, primeiro, que a tradição indo-europeia, tão bem provada já por Georges Dumézil e outros unifica os povos europeus e os indianos e os persas ou iranianos, e que portanto nós recebermos da sabedoria própria gerada naquele ambiente particular não será algo assim tão pouco congénito.  Segundo, e como ressalvaste e bem, a Tradição Perene, os grandes pensadores do perenialismo sempre estudaram e reconhecerem a sabedoria, ou a Tradição Perene no Oriente, na Índia, e um bom exemplo disso foi René Guénon (15-XI-1886 a 1951), que depois de ter defendido o tradicionalismo católico, tanto estudou e valorizou a Vedanta indiana e, por fim, a tradição islâmica a que se converteu mesmo e onde morreu no norte de África, no Egipto, como um sheik, um mestre sufi.
René Guénon no Cairo, com o seu mestre e genro.
 Se as palavras mantras que ele utilizaria mais nas suas orações e meditações nos são desconhecidas, podemos admitir que ainda que fossem as tradicionais da sua fraternidade sufi, certamente a outros níveis, ideias e categorias, os nomes de outras tradições e religiões informariam o seu substracto psíquico ou quem sabe alguma jaculatória final, tal como a de Erasmo (28-X-1466 a 1536), que sempre falou em latim, e por vezes em grego (em Veneza, com a campanha de tradutores de Aldo Manuzio), mas no nomento de deixar o corpo exclamou em holandês, oh lieuer Gott, oh amado Deus. 
Sancte Erasme, ora cum nobis...
Um dia depois o Manuel Jorge Ventura acrescentou um novo comentário, a que não respondi então:
«O poderosíssimo mercado editorial de miscelânea new age suportado por entidades que hoje se sabe também estiveram na origem de eventos como o Woodstock é mais um prolongamento dessa influência de desestruturação da identidade cultural e religiosa do Ocidente servindo muitas vezes objectivos políticos de distracção vg. hedonista.
Uma teia bem tecida com ampla urdidura no espaço e tempo, cujos intuitos são evidentes nesta dimensão de um totalitarismo soft e controlo digital para onde nos querem conduzir.
De preferência com insegurança constante, guerras e medo também de ameaças sanitárias programadas e, como se vai constatando, muito grafeno &etc, para assegurar o sofisticado controle de uma condição robotizada de zombie transhumanista para a qual estamos criminosamente a ser induzidos.»
 
Se de facto é verdade que  existe «um poderosíssimo mercado editorial de miscelânea new age», super mistificador embora nada unificado dada a diversidade da qualidade e dos objectivos (desde o hedonismo e o "explorismo" mas também a cura e harmonização) das publicações, e que está muito certa a  imagem final do sofisticado zombismo em curso, já a crítica ao festival de Woodstok (agosto de 1969, com cerca de 400.000 assistentes) como tendo sido gerado ou apoiado pelas mesmas entidades sombras que desejam  a desestruturarão do Ocidente (e que nomes apontados, perguntamos) parece exagerada, pois o Festival foi uma primeira explosão revolucionária e libertária face ao materialismo, capitalismo e imperialismo norte-americano, que por pouco o não proibiu ou oprimiu demasiado.
Se formos ler a história do Festival, vemos que os seus organizadores eram empreendedores musicais e que as adesões vieram de múltiplos sectores do pensamento criativo e crítico musical norte-americano, e basta ver como John Lenon (depois assassinado..) e Yoko Ono Band não puderam participar porque Richard Nixon, diz-se, não permitira, pela oposição que eles faziam à guerra do Vietname, certamente uma das mais tenebrosas do imperialismo excepcionalista norte-americano.
Parece-me portanto uma mera conjectura a da ligação, mesmo que remota, entre Woodstock e os actuais projectos em curso da Nova Ordem Mundial, da tétrica Organização Mundial de Saúde, do transhumanismo-infrahumanista do World Economic Forum de Klaus Schwab e de Yuval Harari, ou dos transgendrismos e chipismos que os media ao serviço da elite financeira mundial propagandeiam. Todos temos o dever ético e moral de lutar contra tal controle e manipulação da Humanidade, dotada de livre arbítrio e constituída de corpo, alma e espírito imortal, e provinda da Divindade...
O comentário do Manuel Jorge recebeu duas intervenções  ou comentários, um da Patrícia Ruivo,  extenso e político, valorizando Kennedy Jr. face ao zombie Biden, com um bom final: «É surpreendente a falta de capacidade das pessoas para se interrogar. Pensar, com autonomia, é mais do que nunca um acto salvífico de profunda e carecida subversão»,   e outro da Maria Helena Lusignan:«eu gostei do Woodstock mas fiquei mais aborrecida com a aterragem na Lua feita pelo Kubrick».
 Ao que o Manuel Jorge replicou: 
«Eu também gostei desse momento com novas formas de convivencialidade e explosão criativa da música popular com tantos compositores que me acompanham desde então.
Mas não gostei de saber que todo esse movimento do make love not war foi incentivado e tutelado discretamente por estruturas do governo. As mesmas que apoiavam o sr. do LSD e experiências psicadélicas destinadas ao mesmo segmento de filhos do vento "libertários". O mercado mundial de droga de resto também teve sempre a mesma tutela e se os EUA saíram do Afeganistão a CIA permanece lá de braço dado com os talibãs para assegurar a qualidade e o escoamento do suco da papoila.»
Este esclarecimento maior quanto às forças que na sombra apoiaram o movimento hippie e psicadélico, nomeadamente o senhor Timothy Leary, parece-me uma conjectura infundada, pois esse revolucionário psico-social e visionário psicadélico esteve preso mais de trinta vezes e foi constantemente perseguido pelo establishment norte-americano e as suas forças  policiais e secretas. 
A biografia dele (1910-1996), mesmo na tão distorcida wikipedia, é de leitura recomendada para se ter a noção do que foi a saga da contra-cultura americana, uma impulsão juvenil libertadora que foi controlada e manipulada persistentemente (de tal modo tão hilariante que hoje Joe Biden e os democratas são a esquerda...), e a evolução do consumo de drogas nos USA, para se chegar hoje à degradação actual visível nos milhões de norte-americanos que vivem na extrema miséria nas ruas da cidades do império que imprime os dólares que quer para os seus fins hegemónicos....
Homenagem à definitiva viagem em corpo anímico de Timothy Leary...
Donde me parecer de novo um salto no vazio a relação que é feita do LSD com as plantações da papoila para os opiáceos, e a heroína em especial, em que o Afeganistão é terreno fértil e que de facto os USA, através de  diplomatas e da CIA apoiaram fortemente na época dos mujahidins em luta contra a influência e depois a presença soviética. Quanto à CIA ainda hoje controlar é algo mais complexo de sabermos, mas  que o narco-tráfico funciona não há dúvidas. Mas é necessário destrinçar o aproveitamento para zombificação que certas drogas, tal o ópio e heroína, permitem, com outras que expandem a consciência, como é o caso do LSD e dos cogumelos, mas que certamente têm  contra-indicações e efeitos cerebrais desgastantes.
Posteriormente, Carlos Dugos, que já dera um breve contributo,  lembrando Júlio Evola e a sua Metafísica do Sexo, num comentário ao meu texto Do mistério da origem do ser humano Espiritual e da sua polaridade masculina e feminina. Versões esotéricas. As perigosas alterações de identidade e género actuais, entrou na polémica:
«Uma das críticas - e não é a maior - que Guénon faz ao teosofismo prende-se com o sincretismo misturando, no mesmo "discurso", elementos de diferentes correntes espirituais, numa confusão de linguagens e símbolos que obscurece a luminosidade doutrinal de cada uma das correntes abordadas. Tal prática não deve ser confundida com respeito perenialista por todas as tradições regulares porque a cacofonia teosofista se deve a um absurdo, que é o "estudo comparado das religiões", dado que elas são, por natureza, incomparáveis. Segundo a doutrina perene, as coincidências, nomeadamente as religiosas, provêm da origem comum de todas as correntes espirituais regulares, entendidas como versões particulares de uma Tradição Primordial. E é justamente a particularidade que estrutura cada uma delas que não pode - e portanto não deve - ser comparada com outras particularidades, já que cada particularidade tem: circunstância, coerência e completude próprias. Tentar "iluminar" elementos de uma tradição específica com elementos oriundos de outra Tradição constitui um erro elementar.»
Giulio Evola (1898-1974), um sábio tradicionalista, kshatriya ou guerreiro.
Esta observação valiosa de Carlos Dugos tem de ser contudo relativizada pois é inegável que o estudo comparado das religiões e tradições auxilia-nos a termos uma percepção melhor das particularidades próprias e das igualdades e semelhanças existentes. 
É verdade que a Teosofia de Blavatsk, e super-patente na Ísis sem Veu, abusou de todo o tipo de comparações superficiais e que os seus sucessores enveredaram pelo mesmo tipo, embora sem o génio dela, e lembrar-nos-emos de muitas das obras de membros da Sociedade Teosófica, ou pantominices que foram a Igreja Liberal, com o famigerado Charles Leabeater bispo, ou a vinda do Novo Messias- Instrutor Mundial, o jovem bengali Alcyone e depois denominado apenas Krishnamurti. 
Ou ainda tantos autores e autoras contemporâneos que sem qualquer realização espiritual nem metafisica ora canalizam mensagens, ora cabalizam, ora compilam tudo o que se escreveu sobre a Lemúria e a Atlântida, ou os sete corpos, ou a vida de Jesus e a sua infundada viagem ao Tibete, descobrindo as influências budistas, tibetanas ou indianas no seu ensinamento. 
Todavia, pese e completude que cada religião no seu aspecto iniciático poderá ter, sabemos bem como as religiões são ainda vividas pela maioria na sua limitada exotericidade, ou mesmo superficialidade de costumes  e crenças e de ritos semi-automáticos, ou então astralizada e explorada nos cultos pseudo-evangélicos e carismáticos, pelo que mostrar as analogias entre as diversas formas verdadeiramente espiritualizantes de Religião, e sobretudo numa época de crescente globalização de quase tudo, é importante ou mesmo necessário, nem que seja para se evitar o cepticismo, o ateismo ou a mentalidade da Nova Era superficial e por vezes até fanática.
Ananda Coomarasawamy (22.VIII-1877 a 1947), um dos grandes sábios modernos...
Exemplos de bons perenialistas que sabem comparar ou estabelecer as correspondências das doutrinas religiosas, para se aprofundar a hermenêutica dos símbolos, ritos, crenças e práticas encontramos em Ananda Coomaraswami, com uma extensa obra de constante comparação (ou se quisermos, correspondência) de diversos aspectos das religiões à luz da Unidade Transcendente e Imanente delas, ou seja da Filosofia Perene e realização espiritual, tanto mais que sabia latim, grego e sânscrito, e foi um dos melhores cultores de uma História da Arte mais profunda, metafísica. E ainda em Henry Corbin, Louis Massignon, Julio Evola, o ainda vivo e excelente Seyyed Hossein Nasr, ou mesmo o algo megalómano Frithjof Schuon (que no teu comentário terás tido em conta, tal  a sua obra A Unidade Transcendente da Religiões), todos eles  com valiosos (por vezes menos...) contributos de ordem metafisica ou intelectual, e não, como tu criticas, de emocionalismos ou sincretismos cultuais, que contudo tocam mais nas maiorias e por vezes são necessários, tais os encontros de Assisi, já que a realização interior, só intelectual e metafísica é apenas para uma minoria mínima.Daí por exemplo, as formas Divinas do Absoluto cultuadas ou adoradas por tantos mestres verdadeiros...
Henry Corbin (14-IV-1903 a 1978), grande conhecedor da Filosofia Perene, da tradição espiritual do Irão, com obras fundamentais sobre  o Zoroatrismo e o Islão Shia. 
 Ainda houve uma adenda final de Carlos Dugos: 
«Ainda a propósito do sincretismo, uma curiosidade. Em O Nome da Rosa, Eco introduz uma personagem, surgindo nitidamente como metáfora da expressão sincrética. Um monge, de tendências heréticas, fala por frases onde se misturam palavras de línguas diversas.»
Dara Shikoh (20-III-1615 a 1659), em jovem com o seu mestre Mian Mir, pioneiro do estudo e encontro dos oceanos das Religiões.
Quanto a Umberto Eco, pese a sua genialidade e extraordinária erudição, não tinha a básica ou necessária realização espiritual pelo que não saberia discernir quando é que um herético, seja cristão ou islâmico, estaria certo no que era considerado como erro ou rebeldia, e basta ver como Giordano Bruno e Miguel Serveto foram queimados vivos, ou como Al Hallaj ou Dara Shikoh (um dos primeiros estudiosos do comparativismo espiritual ou esotérico das religiões - em especial Islao e Sanatha Dharma indiano) foram acusados e mortos. Como também não devia entender que a oração hesicasta cristã, ou o mantra yoga indiano, ou o dhikr ou zikr sufi, têm as mesmas bases e fins, e podem ser praticadas pela mesma pessoa que esteja aberta à unidade interior e metafisica das Religiões, sem necessariamente se tratar dum sincretismo.
Quais são os melhores modos de despertarmos as pessoas para a sua identidade, religação e visão espiritual continua a ser a demanda do santo Graal, ou da taça do rei do antigo Irão Jamshid, a Jam-e jam...
 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Do trato amoroso dos livros imperfeitos: a devoção a S. João Nepomuceno, defensor da boa fama e do sigilo confessional, numa novena do séc. XVIII.

Foram, são e serão milhões e milhões,  os amantes dos Livros ao longo da História da Humanidade, mas nesta fase em que eles  estão por várias razões a ser preteridos  pelas suas imagens digitais, deveremos erguê-los e elogiá-los nas suas qualidades manuseáveis, físicas, sensíveis, assimilativas, retentivas e estéticas pelas quais tanto perseveram como transmitem inesgotável riqueza de informação e de conhecimento, ou ainda de beleza e cura, ambiente e inspiração.

São milhares e milhões os livros escritos sobre os livros, o que eles são e nos podem transmitir. O meu contributo será hoje muito pequeno, apenas observar, partilhar e comentar um  livro que, ao passar pelas minhas mãos com as suas características próprias, mereceu ser investigado e eternizado em si e nas almas dos que nos lerem.

No decorrer do ano da graça de 2023 o livrinho antigo em causa encontra-se num estado que não direi confrangedor mas apenas invulgar na sua incompletude, pois nem capa nem frontispício tem, e começa no fólio 2, com a Dedicatória, a que se segue um Prólogo  ao leitor e depois no fim a obra surge incompleta de novo, ao terminar abruptamente na pág. 192, com a menção de "S. Sebast-"

         

  Contudo, foram-lhe acrescentados aquando da encadernação, em pergaminho e de que resta a lombada e a contracapa, duas folhas bem orladas com: Actos de Fé, Esperança, Caridade, e de Contrição que se devem fazer devotamente antes da Confissão, contendo passagens valiosas da expressão do amor a Deus, e que transcrevo no fim.

Mas que raio de ideia terá passado pela cabeça ou alma do autor deste texto no blogue para valorizar uma obra em tão danificado ou imperfeito estado, pensarão alguns, e a resposta não é de facto vulgar: ao manuseá-lo, ao limpá-lo, observei a quantidade de penugem de que ele se revestira na parte interior das folhas, junto à dobra de junção com a lombada, como se fosse um ninho feito pelo tempo ou, o que eu pensei primeiro, como se o livro, na sua vitalidade e ânsia de ser lido, tivesse feito brotar uma vegetaçãozinha rasteira que se acumulou no interstício de união de uma folha com a outra. Uma metamorfose subtil...

E pareceu-me também que embora tivesse removido tal aparente excrescência, ela não deixava de aparecer numa ou noutra folha. Concluí: há livros com tanta vitalidade, seja pela sua mensagem seja por outras razões subtis, que a árvore que lhes deu origem ou suporte material anima-se no papel e miraculosamente cresce de novo, metamorfoseia-se.

Mas quem conseguirá alguma vez discernir de onde veio este papel, se a obra modesta não ostenta nas páginas qualquer marca de papel visível que indicasse a fábrica de onde proveio?
Neste momento
do contacto com o livro nem sei sequer o seu autor, nem data, nem local de impressão, embora seja fácil adivinhar que foi dado à luz numa tipografia lisboeta no século XVIII, porventura entre 1745 e 1775, balizando-o com a data do famoso terramoto de Lisboa, para podermos ainda interrogar-nos sobre, e quem sabe se um dia no invisível mundo espiritual teremos direito a sabê-lo, quantas tipografias e livrarias foram destruídas no trágico acontecimento, e quantas conseguiram depois renascer das cinzas, da inundação maremótica e dos escombros?
Mas ao lermos a
dedicatória e o prólogo deveremos  receber algum apoio para a pesquisa identificativa e provavelmente nem teremos de ir a qualquer boa biblioteca pública, pois o valioso instrumento da catalogação de muitas das obras nelas existentes se encontra acessível online sob a designação de Porbase.
Contudo, ao digitar
mos na Porbase, Novena Devota S. João Nepomuceno, não encontramos senão uma edição de 1763, e bem mais pequena que esta, pelo que o mistério continuará por algum tempo. Mas transmitamos então algo dela, dada a vitalidade e valor da obrazinha, de 14x9 cm, cerca de 200 páginas, bem poída, manchada e metamorfoseada  pelo uso, o tempo e a devoção.

                                    

Na Dedicatória, escrita como se estivesse a falar com o espírito imortal de S. João Nepomuceno, há uma contextualização valiosa pois a obra é entregue ao santo "pelas mãos do Reverendo Fr. Filipe Camelo de Brito, o qual todo inflamado no vosso amor, e devoção fez com que se expusesse à pública veneração esta vossa miraculosa, e admirável Imagem, que todos veneramos nessa Paroquial igreja de S. Julião."  Por aqui podemos admitir que na folha inicial A, que falta pudesse estar a imagem do santo.
Acrescenta em
seguida o nome de outra alma que «não é menor na devoção, o vosso devoto Fernando António da Costa Barbosa, que com tão ardente zelo de ver a vossa devoção estendida por todo este Reino, e de serem públicas, e manifestas vossas maravilhas mandou abrir estampas da vossa Imagem, e tem feito que os livros da vossa vida, que andavam impressos em diversas línguas, na nossa Portuguesa se vertessem para melhor inteligência dos vossos devotos ».
Ora, e sabemo-
lo pelos registos da Porbase (confirmados depois em Barbosa Machado),  Fernando António da Costa de Barbosa foi o autor da Dedicatória à Rainha Dona Mariana de Áustria na Oração Funebre pelo rei D. João V, recitada pela P. Plácido Nunes, em 11 de Novembro de 1750, e  do Elogio fúnebre do Padre João Baptista Carbone, de 1751. E em 1754 do Elogio Histórico, vida e morte do E. e R. Senhor Cardeal  D. Thomaz de Almeida, Patriarca... Era pois um espiritual, próximo da Rainha muito provavelmente, já que, como veremos no fim, o seu irmão mais velho era Capelão na Corte e Oficial da Secretaria de Estado, além de cavaleiro professo da Ordem de Cristo.
O autor incógnito da dedicatória (e do prólogo) dá ainda graças ao Santo pelo grande sucesso devocional que estão ter com as gravuras do santo e as «línguas de ouro, prata e meta, sendo estas bentas, e tocadas na vossa Santa Imagem com a devoção de as trazerem consigo», assim se revestindo de mais poder inspirador ou protectivo.  Eis-nos numa certa magia, numa linha medieval e gótica, quando a peregrinação às relíquias e locais santos e a fé nos diversos tipos de ícones era muito grande ou intensa.

                                      

No Prólogo, ao leitor, o autor vai narrar um pouco a vida do santo [nascido em 1345 na Boémia e lançado ao rio da ponte Carlos, em Praga, em 1393, por recusar-se a dar à língua quanto à Rainha, que ele confessava e que o Rei "ciumava"], e também a implantação da sua devoção em Portugal, começando por  si: «eu te confesso [leitor], que a primeira vez, que ouvi nomear este Santo, e me mostraram um registo, ou estampa da sua Imagem, que logo senti em meu coração um tal afecto, e amor com uma entranhável devoção, que nunca mais me esqueci deste Santo, ainda que suposto lhe não rezava algumas vezes, nunca dele apartei o pensamento, e desejando eu já há três anos fazer a obra, que agora faço com tenção de a dedicar à sua portentosa Imagem que se venera na ponte de Alcântara» posta por Dona Mariana de Áustria, mulher de D. João V.

Acrescenta que oferece «este Tratado de sua devoção à sua prodigiosa Imagem, que se venera novamente na Paroquial Igreja de São Julião desta Corte, posta pela devoção de um devoto Sacerdote, e exposta à veneração dos devotos no dia do glorioso S. João Evangelista no ano de 1745».
Narrando depois a vinda d
a devoção para Portugal com a rainha Dona Mariana, e a fundação por ela de uma confraria do santo, desde 1730 (data do Sermão da Canonização de S. João Nepomuceno pregado no Real Hospício dos Carmelitas Descalços Alemães, pelo P. Joseph Rodrigues Pereira, impresso em Lisboa, na officina Augustiniana). afirma a sua esperança em que todas as pontes portuguesas e europeias houvesse a  imagem protectora de S. João Nepomuceno, e dá uma informação valiosa bibliográfica, além de orações valiosas de ardente devoção aos dois santos das línguas, S. António e S. João Nepomuceno, de quem recebera já muitos benefícios: «em mil línguas quisera eu converter-me agora só para louvar, e engrandecer a prodigiosa, e bendita língua de São João Nepomuceno; porém todas seriam poucas para explicar as suas maravilhas, mas de alguma sorte me contento, e satisfaço considerando que estes mil livrinhos, que agora saem à luz [uma boa tiragem], e todos os mais que se imprimirem, serão mil, e outras tantas línguas, que publiquem as maravilhas do nosso Santo Nepomuceno, e no fim vão três Suspiros à prodigiosa língua do nosso Santo, que se podem rezar todos os dias para que por sua intercessão alcancemos ter uma boa língua, que não seja maldizente, e não saiba senão louvar a Deus, como fez a língua do nosso Nepomuceno, e a do nosso Português Santo António, e bom será que todos tenhamos uma grande devoção a estas duas benditas línguas tão semelhantes, e parecidas uma com outra». 

Acrescente-se que em 1712 em Lisboa e em 1736 em Roma foram publicados  dois Compêndio da vida de São João Nepomuceno. E em 1746 foram pregados e impressos em Lisboa dois sermões de S. João de Nepomuceno, "glorioso protomártir do sigilo confessional", que não têm todavia o carácter devocional deste livrinho, o 1ºde Joaquim Bernardes, clérigo regular, demonstrando com erudição (com bela e extensa citação do discernimento de um discípulo perturbador, por Pitágoras) e bons raciocínios, que ser-se obrigado a confessar as pessoas envolvidas em pecados é um pecado ainda maior e a adopção de uma doutrina falsa e menos pura, citando mesmo o antigo curioso dito do papa Clemente XI (de 1700-a 1721): "Estou bem com Portugal, porque é um Reino que nunca buliu com o Credo", valorizando ainda bastante o "saber com sobriedade", pois "saber muito não convém" e gera em geral a "faladura" e a "historiola", que só impedem tanto a boa vizinhança como o silêncio interior e a intuição da Verdade. E o 2º sermão do clérigo Filipe de Oliveira, onde narra a vida exemplar do santo, as muitas heresias históricas e como Portugal tem escapado a elas.
Voltando ao livrinho incompleto ou imperfeito, qualidade deles pelo mestre bibliófilo José V. de Pina Martins bem elogiado,  seguem-s
e após a dedicatória e o Prólogo,  as orações da Novena devota, da Semana devota, e algumas particulares, das quais transcreveremos pela sua originalidade, e até sugestão horária, a  Oração a Deus Espírito Santo:
«Oh Santo Es
pírito Divino, que às nove horas descestes sobre a Santíssima Virgem Maria e sobre os Sagrados Apóstolos, em figuras de línguas de fogo, concedei-me, que a minha língua imite a dos vossos Servos São João Nepomuceno, e Santo António, as quais nunca clamaram contra Jesus Cristo, mas sim sempre vos louvaram, e louvarão por todo o sempre. Amen.»

Seguem-se mais algumas orações a Santo António e a S. João Nepomuceno e, por fim, abre-se o capítulo final, a partir da pág. 89, em que se narram os milagres e benefícios que devotos em várias partes do mundo têm recebido do santo que é apresentado como o defensor da honra e boa fama, da pureza contra as tentações e do "sigilo confessional". 
Esta última referência  pode ser contextualizada com a grande luta que se travou entre os sigilistas, defensores nos Religiosos duma vida mais pura e sem vaidades, com disciplina e oração mental e menos contaminada pelo mundo, e muitos religiosos desfrutavam disso, e o Estado que começava no seu absolutismo (ou regalismo) a tentar controlar tais austeras e éticas consciências. A obra é porém muito discreta quanto a esse debate, que foi manipulado e exacerbado, censurado e liquidado, em 1769, pelo Marquês de Pombal, com o auxílio da Real Mesa Censória e levemente duma Santa Inquisição, já totalmente controlada e que chegara mesmo a estrangular e queimar em 1761 um experiente missionário jesuíta visionário Gabriel Malagrida.

Por graça do livreiro ou do comprador que o mandou encadernar, há  as duas folhas mencionadas e apensas posteriormente, já que o papel é diferente, contendo as tais instruções para a confissão, pois o santo morrera mártir da sacralidade ou sigilo dessa arte, destacando-se uma bela  oração e meditação devocional ou amorosa, no qual se analogiza a Divindade, eterna e primordial, tanto com o supremo Bem como com o Abismo de toda a perfeição ou perfectibilidade, num certo  Alfa e o Ómega: 

«Amo-vos, ó Deus amabilíssimo, sumo, e infinito Bem, abismo de toda a perfeição: só pela vossa verdadeira, e natural bondade, formosura, e ser essencialmente amável: Porque sois quem sois, digníssimo de todo o amor, e honra possível. Quem me dera poder amar-vos com todo aquele ardentíssimo amor, com que vos amam, e amarão eternamente todos os Anjos, e Bem-aventurados no Céu! Com que vos amam, e podem amar todas as Criaturas, que há, e pode haver na terra! E com o seu ardentíssimo amor ajunto o meu, ainda que tão imperfeito como é.»
E fiquem
o-nos nesta ardência amorosa religiosa mas de grande profundidade espiritual, e que meditada dará certamente os seus frutos, sobretudo nas almas virgens ou vigilantes, fiéis cavaleiras do Amor no meio das noites e trevas actuais, para que elas floresçam como Noches claras Divinas...
E es
peremos que brevemente saibamos quem foi o autor do livrinho, bem como o seu título, impressor e data. Provavelmente os grandes bibliógrafos antigos, Barbosa de Machado e Inocêncio, poderão trazer luz esclarecedora. 

      *+E de facto, umas horas depois, consultando  Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, Lisboa, 1757-1759, na reimpressão, lemos no  vol. IV e último, o do suplemento aos anteriores, apenas que o patrocinador do livro Fernando António da Costa de Barbosa  nascera em Guimarães, em 1716, sendo irmão de um capelão do Rei, e tendo estado quinze anos no Brasil, de 1732 a 1747, regressando, casou e deu à luz as duas obras já mencionadas e um Elogio a Manuel Caetano Lopes de Laure, Secretário, e Depurado do Conselho Ultramarino, 1754. 

 Concluiremos dizendo que mesmo no seu estado imperfeito, não identificado ainda e logo misterioso, este livro  é muito  vivo e germinante  na sua profunda e elevada aspiração amorosa à Divindade, ao Bem e  à comunhão com as almas bem-aventuradas, isto é, luminosas, corajosas, plenas. Que elas, e particularmente S. António e S. João Nepomuceno, nos inspirem e apoiem, a fim de que a Humanidade se vá tornando mais desperta, justa, fraterna, multipolar, sábia....

S. João Nepomuceno num registo do séc. XVIII que circulava em Portugal. Da colecção da Fábrica da Fiação de Tomar. Lux!