domingo, 21 de janeiro de 2024

"Leonardo Coimbra, contribuição para o conhecimento...", por Sant'Anna Dionísio. Com vídeo da gravação da Adenda, de 1985, comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Leonardo Coimbra, contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, foi uma obra publicada por Sant'Anna Dionísio, no Porto, em 1936, tendo sido originalmente lida em Vila Real, cerca de um mês depois da morte inesperada de Leonardo Coimbra, a 2 de Janeiro, junto a Lixa, a sua terra natal e em cuja domus paternal está hoje a Casa da Cultura Leonardo Coimbra.
Em 1985 foi reimpressa a obra e foi-lhe  acrescentada uma Adenda, no fim.  Como já escrevi um artigo no blogue sobre o livro, resolvi ler a Adenda, comentando-a com certa brevidade, pois a máquina só permite meia hora de gravação.  O resultado está ao seu dispor mas, para substanciar mais este artigo, passo a transcrever os parágrafos finais da conferência tornada livro, antes da anotações Marginais, valiosas, e da Adenda, de facto excelente, e que espero que oiça e aprecie.  
A transcrição que pode ler em seguida permite-nos sobretudo comungar a sensibilidade anímica bem lúcida de Sant'Anna Dionísio (os seus "esquissos psicológicos") e compreender melhor as causas das modificações humorais e "fracassos " de Leonardo Coimbra e de Antero de Quental, e como elas subsistem e parcialmente se agravam nos nossos dias...

« A olhar as coisas do lado de fora, parece que Leonardo Coimbra não devia ter razão para possuir esse sentimento [de amargura e desilusão], pois aparentemente, ele foi um dos homens mais aplaudidos e admirados do nosso tempo, do nosso país. Mas quem pode iludir-se? De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas [ou em grande parte] à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação e transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar em algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - - Mas par quê? Neste país nãos e pensa; neste país...»
 A submissão deste homem ao ensino secundário (já o dissemos no dia em que o seu corpo deu entrada num adro) será seguramente apontada no futuro como um dos exemplos mais gritantes da incapacidade hostil que os contemporâneos de um homem superior têm em reconhecer o seu valor e sobretudo em lhe reconhecerem o direito de trabalhar, por solicitude social, em condições adequadas à máxima realização das suas possibilidades. Como é que um homem destes, tão consciente das suas enormes virtualidades, tão duramente amarrado ao potro dum pedagogismo burocrático e primário, deveria reagir perante a hostilidade ambiental? Como reagiu Herculano? e Soares dos Reis? e Raul Proença? Aqueles que acentuam demasiado a causticidade de L. C. esquecem que este homem extraordinário, sem dúvida alguma o homem melhor dotado de inteligência especulativa até hoje aparecido no nosso país [e Fernando Pessoa reconheceu-o numa carta], o homem que merecia do meio a maior generosidade, foi compelido a consumir o melhor da sua maturidade a dar lições e desenho e aritmética elementar a crianças e a ensinar o abcedário de filosofia a adolescentes dos liceus   ele que por si só (como mostrou), valia uma universidade. A história dos dramas espirituais mais dolorosos e significativos da nossa existência colectiva é demasiado rica em casos de mordacidade para que se possa apontar L. C. como um caso doentio e esporádico de reacção agressiva e arbitrária. Em última análise L. C. é mais um caso de fracasso, análogo ao de Antero. Num, como no outro, a vontade (em Antero lesada misteriosamente pela nevrose; em L. Coimbra prejudicada por hábitos e complexos de muitas proveniências) teve uma parte notória nesse fracasso; é essa hostilidade que é necessário ter presente, se se quer compreender a irrealização das mais profundas virtualidades destes dois pensadores, e compreender em parte a justiça vingativa que há no silêncio severo de um e na causticidade do outro.
Certo é
que alguns dizem que os homens superiores nunca podem falhar; que o que eles realizaram é precisamente o que eles tinham a realizar. Perante a obra de Leonardo Coimbra, como perante a de Antero de Quental) tal teoria afigura-se-nos radicalmente irreflectida. De facto, os homens superiores podem falhar; e falham quase sempre. O que eles realizam fica desmedidamente aquém do que lhes era possível. Ora, desde que um desses homens tem a consciência de que as suas melhores virtualidades foram contrariadas e esmagadas pelo que lhes é exterior, natural é que no seu espírito ecluda qualquer forma cancerosa de «desforra»: nuns essa desforra é uma simples abominação surda seguida de afastamento; noutros é a reacção colérica conducente à própria perda; noutros é o silêncio seguido de um desaparecimento enigmático, etc. Em Leonardo Coimbra foi a mordacidade implacável. Que é, porém, a mordacidade senão uma reacção ofensiva dos ofendidos? E quem sabe se, sem a intervenção fortuita e trágica do desastre [de automóvel], o seu fim não seria mais nitidamente uma acusação contra o meio?
Concluamos, pois. Leon
ardo Coimbra, como homem aparente, foi na verdade, um homem muito humoral, muito perturbante e perturbador. Mas deve fazer-se o esforço de ver que para além do seu humorismo, das suas fugas, dos seus volta-faces, houve por ventura um homem verdadeiramente homogéneo e profundamento sério. Será decerto muito difícil desvendá-lo, nomeadamente para aqueles que ainda vivem sob a recordação demasiado viva das perplexidades suscitadas pela sua convivência. Mas o sentido mais lúcido da compreensão diz-nos que as impressões da convivência são quase sempre impressões da superfície  e que perante todo o homem superior que parece excessivamente desconcertado (sendo todavia saudável), a mais fecunda e justa pesquisa é aquele que se faz no sentido de se descobrir, para lá das expressões desconcertantes, o homem compreensível de que, as mais das vezes, as aparências humorais são simples traições, ou actos de legítima defesa, ou deliberados expedientes de encobrimento.»

                             

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