domingo, 27 de outubro de 2019

Da vida e emanações dos livros e suas comunhões com as nuvens, os ventos, as grandes almas, a Divindade.

Em certas casas lisboetas não é preciso esperarmos pelo desaparecimento da luz solar nem pela imersão no oceano onírico para assistirmos a algumas cenas inabituais mas justificadíssimas, pois como recusarmos aos livros o direito de saírem das suas estantes e desfrutarem um pouco do sol, do vento, das vistas, das procissão ou danças das nuvens?
                                    
Certamente não é fácil discernirmos as trocas energéticas e  conscienciais que constantemente acontecem no ambiente, nos livros, nas pessoas bem como as correntes que percorrem a cidade ou a aldeia, nos mundo visíveis e invisíveis e subtis, influenciadoras ou testemunhas de tais actos, transformações e trocas. 
Estas cinco fotografias, captadas na tarde de Domingo 27-x, de livros a apanharem sol e ar fresco servem agora já noite para tentarmos entrarmos um pouco mais nas atmosferas subtis tanto externas como internas dos seres, livros, ideias e mundos...
                                    
Perfilados sobre o horizonte podemos dizer que tanto deixam escapar suas emanações, como recebem o que os ventos terrestres e solares lhes trazem ao baterem e acariciarem as folhas e as frases abertas sobre a paisagem e o amplo céu convivial...
                                      
Expostos equilibradamente ao céu e seus ventos e nuvens, os livros desfrutam de tais bens e podem até exporem-se como os humanos nas praias sem contudo perderem os conhecimentos neles impressos em letras e  que pouco se inscrevem duradoramente nas mentes humanas, em geral demasiado mutáveis, e mais constituídas por imagens cinematográficas do que por mensagens em letra manuscrita ou impressas com caracteres firmes e elegantes, embora nos tempos antes e do começo da impressão talvez tal fixação do conhecimento muito mais acontecesse do que hoje.
Também porque a linguagem mental subtil é tão volátel como a das nuvens, o que pode ser tanto uma vantagem pelo desprendimento e liberdade que têm e geram, como um defeito ao não sabermos concentrar-nos mais profunda e demoradamente e podermo-nos superficializar e não deixarmos na terra  o nosso contributo no Grande Livros dos Livros...
                                      
Este erguer-se, verticalmente e saber equilibrar a luz e a sombra, o verso e o reverso, o prazer e a dor, o sucesso e insucesso, o ler e o escrever, o dar e o receber, o que se sustenta e do que se abstém, é certamente uma arte trabalhosa mas que ao longo dos séculos teve grande praticantes que nos legaram as suas obras e que merecem ser divulgadas e partilhadas nos nossos dias, aí onde dois ou três se reunirem em nome delas ou de um mestre ou autor, mais claramente brilhando sua essência íntima e dinâmica.
                               
Os livros podem então ser expostos como mantos sobre uma procissão, ou como bandeiras desfraldadas ao vento, tanto anunciando como transmitindo suas energias e apelando à nossa receptividade e reactividade sensível, assimiladora e, criadora, justa, amorosa e divinamente.
Cada livro é um ser vivo que nos desafia a expandirmos o nosso conhecimento e sensibilidade de modo a que a sabedoria e o amor divinos que originaram o cosmos e que estão tão presentes na melhor criatividade humana possam por nós ser acolhidos e desenvolvidos, inspirando-nos e orientando-nos.
E quem sabe se as nuvens, ventos e marés absorvem algumas emanações dos livros para derramarem-nas mais frutiferamente aí onde a secura da ignorância, do desânimo, do fanatismo, do egoísmo mais as necessitem...
Saibamos então semear pelos escritos e livros, pelos ventos e nuvens mensagens e aspirações que se propaguem em ondulações sábias e amorosas pelo grande oceano psíquico que tudo e todos envolve e nos torne mais unos com os ventos solares, as nuvens galácticas, os grande seres e autores e a Fonte Luminosa Primordial Divina.

Antero de Quental traduz e melhora um poema de Victor Hugo e corrige o profetismo dele e de Junqueiro. Face ao mistério da morte, medita no silêncio. "Museu Ilustrado", 1878.

A Sociedade Athena, portuense, apresentou em 1878,  um Album Literário,  Museu Illustrado, com as colaborações de numerosos escritores derramadas nas 400 páginas,  patenteando o nome, uma fotografia e um  poema de Victor Hugo, este que fora traduzido por Antero de Quental há dezassete anos,  quando o publicara em Janeiro de 1861 no 2º vol. do  Preludios-Litterários: Jornal Académico.
Como hoje em dia é publicação rara de se encontrar e passou-me pelas mãos na livraria olisiponense alfarrabista, à rua do Alecrim, do amigo Bernardo Trindade (infelizmente em 2021  substituída, perante o clamor indignado dos céus e dos amantes de cultura, numa loja de tatuagens ou tatoos...), eis  as imagens da publicação, colaboradores e poema, mais algumas reflexões.                      
 
Dirigida por David de Castro, propriedade de Arnaldo Rocha, incluiu colaboração de Alberto Pimental, Alberto Teles, Angelina Vidal, Camilo, Fernando Leal, Fialho, Gomes Leal, Gonçalves Crespo, João de Deus, João Penha, Joaquim de Araújo, Leite de Vasconcelos, Luís de Magalhães, Magalhães Lima, Amorim Viana, Santos Valente, etc., sendo apresentadas as fotografias de tal ilustre plêiade, com Antero de Quental a surgir na numerada com o nº 20.
                                          
Vejamos e leiamos então a versão anteriana do poema de Victor Hugo, publicado por este em 1840 com o título Écrit sur le tombeau d'un enfant au bord de la mer, uma das referências do jovem Antero de Quental, como ainda em 1877, reflectindo o espectro das suas leituras, confessa a Oliveira Martins, ao realçar "a afirmação, a paixão e a imaginação" que fazem «os grandes escritores, que não são propriamente escritores, mas poetas, videntes e grandes homens no fundo - Rabelais, Lutero, Carlyle, Michelet, Hugo»,  mas de quem depois  se distanciará, como se vê numa carta (e neste blogue já estudámos outra) bem curiosa ao jovem Carlos Cirilo Machado, de Junho de 1886, que se atrevera a criticar o já consagrado Guerra Junqueiro: «Meu caro. Apesar de Você bater tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, mas não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo./ A Velhice  do Padre Eterno foi um grande erro e custou-me imenso  ver que o Junqueiro persistiu em o cometer. O Junqueiro é um admirável idílico e além disso  em certos assuntos um poderoso satírico. Mas a Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo.» Explicará ainda as atenuantes de ambos terem a poesia mais de que diletantismo:«a intenção era boa, o caminho que seguiram é que foi errado.» E ainda numa carta a Göran Björkman, três anos e depois a uns meses de partir da Terra, depois de considerar João de Deus o melhor poeta português, seguindo-se Tomás Ribeiro, nomeia Junqueiro, e traduzimos do francês «o seu volume Morte de D. João é muito desigual, mas contudo valioso, e, no meu sentir, superior à sua outra obra Velhice do Padre Eterno, onde ele imita demasiado Victor Hugo, no que Victor Hugo tem de pior»
 
 Alexandre Herculano e Victor Hugo pontificando numa biblioteca do séc. XIX na Beira transmontana
 
 A recente publicação por Luís Fagundes Duarte de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental permite-nos até compararmos a tradução anteriana com o original de Victor Hugo,  já que o transcreve, e realçaremos apenas brevemente o seguinte, reproduzindo a versão de Antero, onde a poderá ler:
                                           
 No 2º verso do 1º quinteto, onde Victor Hugo escrevera «Église ou l'esprit voit Dieu ailleurs», Antero melhorou bastante: «Sagrado templo em que a alma contempla Deus», deixando-nos com boas direcções de visão: a do local da campa que pela sua harmonia da natureza envolvente permite seja ao morto nos primeiros tempos da sua transição, seja aos que por lá passam, caso do pastor, seja ainda aos leitores do poema, elevarem-se, contemplarem, intuírem Deus. De realçar ainda a passagem de l'esprit para alma...
No 2º quinteto, Antero de Quental introduz a meio uma versão de mais alta espiritualidade do que Victor Hugo, neste  "Bois, qui faites songer le passant serieux ("Bosque, que fazes sonhar o que passa sério"», enquanto Antero amplia de novo numa linha espiritual valiosa, criando mesmo um ambiente oriental: "Selva, que a meditar convida o sábio".
  Há uma diferença bem forte entre o sonhar ou divagar de Hugo, para o aprofundamento causal que Antero faz de tal ambiente: a natureza convida a meditar as pessoas, ou seres com sabedoria, ou que aspiram a ela. Provavelmente  a vivência infantil e juvenil da ilha da Terceira dos Açores e a religiosidade familiar contribuíram para esta sensibilidade bem espiritual, valorizadora da meditação e da possibilidade de aprofundarmos com ela a sabedoria mais necessária, a que triunfa das aparências da morte..
No 4º e último quinteto realçaremos  ter-se Antero,   nos dois versos finais, sujeitado à vulgar visão da morte católica e hugiana (dormir a criança, e chorar a mãe), mas antes, onde Victor Hugo escrevera apenas «Ne faites pas de bruit autour de cette tombe», Antero de Quental consegue transformar tal pedido numa injunção sagrada, quase iniciática: «Folhas, ninhos... silêncio em volta à campa». Ou seja, propicie-se um ambiente meditativo, conducente a uma experiência espiritual que mostre ou faça sentir interiormente ser a morte apenas a alma abandonar o corpo físico e o plano terrestre visível.
O cavaleiro andante do silêncio, da noite, da morte, da abnegação, do desprendimento, da ética e da voz da consciência que viria a ser Antero de Quental já se pressentia nesta tradução juvenil, tanto mais que o seu génio brilhou mais puro e menos influenciado nessa época...
A fotografia, com pouca definição ao ser ampliada e não de um arquivo policial, de Antero. Muita luz e amor nele!

sábado, 26 de outubro de 2019

Bô Yin Râ, "Geist und Form", "Espírito e Forma". Resumo comentado deste pequeno livro do seu ensinamento, Hortus Conclusus.

  Como artista e espiritualista, como mestre de grande exigência de perfeição na sua vida e obra, pictográfica (como pode contemplar neste artigo) e de escrita, com alguns livros bastante trabalhados e remodelados até chegarem à melhor forma de transmissão, Bô Yin Râ (1876-1943, e encontra neste blogue bastante sobre e dele) teria que tentar clarificar, na perspectiva do caminho Espiritual, aspectos e questões relacionados com o uso de objectos, roupas, formas e instrumentos, casas, bem como com as principais emoções, felicidade e infelicidade, alegria e dor.
 Será num pequeno livro publicado pela primeira vez em 1925, Geist und Form, Espírito e Forma, dividido em seis capítulos que Bô Yin Râ abordará o relacionamento entre esta dualidade  que tende frequentemente a ser ou estar desequilibrado ou desarmonizado, ainda que por "boas" intenções e desprendimentos...
No capítulo I,  intitulado A Questão,  Bô Yin Râ tenta despertar as pessoas que estão ou querem estar no caminho espiritual para a importância de harmonizarem melhor a relação com o mundo das formas ou da matéria, lembrando aos que menosprezam as formas ou revestimentos materiais que, sem eles, os espíritos não poderiam exprimir-se plenamente, pelo que devemos rodear-nos de formas transparentes a tal elevado desiderato, afirmando mesmo:«tal como um vinho precioso não é servido em malgas de barro medíocres, pois isso seria injuriar a sua qualidade, de igual modo o simples respeito devido ao espírito exige que só te satisfaça a forma mais perfeita, a partir do momento que que queres tornar templo do Espírito. O teu comportamento no exterior deve testemunhar incessantemente tal respeito», pelo que mesmo a aparência exterior deve manifestar tal e inspirá-lo nos outros. Há portanto uma meta ou objectivo a ser alcançado na forma interior, na alma, sermos templo do Espírito, respeitar-mo-lo e manifestá-lo com as formas e meios adequados.
                                 
No capítulo II, Exterior e Interior, Bô Yin Râ mostra que o exterior tem sempre um interior e que esse interior está até ligado a um interior ainda mais profundo e espiritual, mas que todos os níveis implicam formas para serem percepcionados por nós, e que assim tudo o que nos rodeia nos convida a entrarmos mais fundo do que nas meras aparências. E se tentarmos tal demanda constantemente seremos presenteados com a revelação das essências das coisas e seres...
Adverte portanto que toda «a forma do mundo interior é sempre expressão de qualquer coisa de arqui-interior, que jamais existiria para ti, se não a discernisses em ti enquanto forma»,  e que este discernir o interior expresso pelas formas será o melhor meio para também no mundo post-mortem conseguirmos encontrar nas formas do mundo espiritual o seu interior profundo.
Não se desprezarão assim as formas, nem se usarão pretensiosamente as que já  estão em desuso, tais as roupas, devendo haver ainda cuidado na rejeição de  formas sociais, tal a da instituição do matrimónio, a qual, apesar de se poder errar na escolha, é ainda válida para evitarmos «que se comece a desenraizar tudo o que a humanidade tinha plantado a fim de não sucumbir na tempestade dos instintos transviados e das paixões incontroladas.» 
                                                The Paintings of Bô Yin Râ: Ornament Series:: The Kober Press
No capítulo III, A Casa e a sua Decoração, Bô Yin Râ apela a valorizarmos mais a nossa influência na casa, seja construindo-a nós, ou dando os planos a quem a erguerá, ou então moldando-a, adaptando-a, impregnando-a, pois o que conta mais será "o modo como farás tal espaço teu".
Reconhecendo as energias e a patine ou aura própria dos objectos que já nos vieram de outras pessoas, «a maneira como tu utilizas hoje o antigo na ornamentação exterior da tua vida, dará sempre aos objectos um valor novo que não pode emanar senão de ti», valorizando assim a nossa participação, afirmando mesmo que tudo que nos rodeia deve receber uma parte do nosso amor, e detalhe algum dentro da casa deve escapar à nossa atenção, consciência e amor. No seu livro  Magia do Culto e Mito, ele explicará melhor como certos objetos carregados energeticamente por nós se tornam talismãs, que nos fortificam, em especial em momentos de maior necessidade.
Para Bô Yin Râ a casa deve ser um oásis, um local onde tudo nos transmite ou «impulsiona à alegria e a uma quente e pura alegria espiritual». E mesmo quem tem pouco dinheiro deve velar para que haja uma harmonia e dignidade na sua ornamentação da casa ou local de trabalho.
Ou seja, após qualquer situação negativa, chegando-se a casa deve-se conseguir « voltarmos rapidamente a nós, e ao nosso nível mais alto», já que os objectos que nos rodeiam, «lembrarão os melhores aspectos da tua sensibilidade, falarão do seio do teu próprio universo, te trarão a calma e a serenidade». Podemos pois acrescentar que nestes tempos minimalistas da post-modernidade, o corte com os objectos de antepassados ou amigos,o menosprezo de tais objectos do passado ou associados a memórias sentimentais acaba por ser um enfraquecimento de uma aura mais protegida tanto da nossa casa como da nossa alma...
E faz uma pergunta notável: «Tu que queres perceber interiormente a voz do Espírito eterno, como poderás tu suportar estares rodeado de coisas que querem parecer o que elas não são – que são como um insulto à lei da forma?»
E essa lei, é a de que «qualquer forma é sempre um símbolo, parte integrante de uma linguagem, que tem algo a dizer».
Para quem quer ser um templo do Espírito todos os elementos ou utensílios incompatíveis com tal qualidade ou dignidade devem ser afastados: «Vigia de modo  rodeares-te apenas de objectos pelos quais possas responder um dia diante do Espírito que procuras encontrar em ti.»
E como o Espírito a que te queres unir «é harmonia, pureza, luz e verdade», deves-te rodear de formas que sintas como verdadeiras e puras, excluindo o que na sua forma desvenda-se que «não é verdadeiro, ou que se torna falso pelo facto de não se harmonizar com a tua sensibilidade» 
No capítulo IV, a Forma da Alegria, Bô Yin Râ lembra-nos que devemos saber dar forma, limites, controle aos instintos e paixões, se queremos atravessar tal mar alto de ondas e tempestades e chegar a bom porto.
Mais do que perder-nos em alegrias, devemos configurá-las nobremente, de acordo com a nossa individualidade e especificidade eterna, e sabermos também respeitar as alegrias dos outros, nas suas formas que o merecerem, mas sem que sejam elas, nem o que tais pessoas pensem das nossas, que nos determinem no nosso caminho de individuação da nossa vida e suas alegrias.
No capítulo V, Forma do Sofrimento, Bô Yin Râ desenvolve a mesma ideia de darmos forma,  não à alegria mas à dor de modo tal que ela se torne suportável. O método é aceitá-la nesse momento como estando «ligada de modo evidente à forma de vida que nos corresponde o mais estreitamente – como não podendo ser de outro modo» e depois ir superando-a.
Graças à acção formadora do Espírito, e a uma desvalorização ou mesmo menosprezo da dor, tanto física como moral, acabamos por não nos deixarmos derrotar e vencer por ela: «Deves elevar-te acima dela e aprender a comandá-la.
Tu próprio és o que permanece. A dor é efémera e  ela mente quando tenta incitar-te a crer na durabilidade dela (...)
Deves, em verdade, dar mais valor a ti próprio, que ao sofrimento, pois é em ti próprio que a luz irradiante e resplandecente do Espírito quer-se revelar a ti.» 
No capítulo VI e último, Arte de Viver, Bô Yin Râ defende que a vida, embora constituída de materiais que nos são dados, depende de nós pelo modo como os encaramos, acolhemos e trabalhamos, e segundo o plano interno ou projecto da nossa vida que a nossa alma capta ou percebe. Algo que na Índia se denominava, acrescentamos, o swadharma, a missão ou dever pessoal, no Dharma ou Ordem planetária
Assim se «cada dia terrestre traz-te um novo material com o qual podes construir a vida espiritual de uma forma artística.
É contudo a ti que caberá trabalhar a matéria bruta, de tal modo que ela se adapte ao projecto sublime que a tua alma descobre no mais profundo dela própria.».
Deste modo, face ao que cada dia nos traz, devemos perguntar-nos  como  podemos rapidamente dar-lhe forma, de modo a que tal sirva o nosso subtil templo Espiritual.
Esta tarefa de intuir e seguir o plano de vida espiritual nosso exige, desafia-nos Bo Yin Râ, «que desde que escutares estas as minhas palavras comeces a procurar no cofre mais interior da alma o plano de construção.
Ele encontra-se em lugar seguro e descobri-lo-ás se procuras com toda a calma, derivada da certeza plena.
Não é uma procura apressada que te permitirá chegar lá.
E logo que o tenhas encontrado, põe-te ao trabalho e permanece fiel à tarefa empreendida.»
É durante o trabalho de construção e realização da missão ou projecto da nossa vida que nos tornamos mais conscientes do plano e vamos ficando mais confiantes ao vermos (ou sentirmos) o que levamos (ou temos) dentro de nós e então, de acordo com essa auto-confiança, virá a ajuda, sem sabermos bem de quem.
Tais ajudas e impulsões maiores para este trabalho artístico espiritual, virão porque: «Lá no íntimo do teu ser, saber-te-ão guiar para uma arte superior – a arte de modelar a vida espiritual segundo a lei inerente ao Espírito eterno». E todos nós que meditamos ou oramos sabemos bem como nesses momentos as intuições e inspirações nos iluminam...
«O que quer que te traga a tua vida exterior, procura tirar partido espiritualmente, esforçando-te por lhe dares forma espiritual, e brevemente, graças a tal sábia actividade espiritual, farás desaparecer do teu caminho muitos dos obstáculos que te pareciam insuperáveis.»
A tua vida exterior transformar-se-á segundo a imagem da tua vida espiritual, na medida em que saberás formar espiritualmente para ti tudo o que é exterior» 
 E conclui a obra dizendo, bem acima e mais profundamente que os defensores da mindfulness e dos vazios de formas: «Em toda a forma se encontra o Espírito a agir.»... 
 
Possa este pequeno resumo de mais uma obra valiosa de Bô Yin Râ ajudar as pessoas a libertarem-se de tanta ilusão e mistificação multidimensional, ocultista, cabalista, nova era,  esotérica e yoguica   que em Portugal tanto abunda em pseudo-mestres, seitas, grupos e modas, e que na realidade estão frequentemente muito pouco na demanda do Graal da Verdade e da consciência do Espírito e da Divindade, que desejamos que seja mais realizada por si, alma leitora amiga...

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Os doze níveis do Amar e do Amor, segundo os Peregrinos, Fiéis e Cavaleiros e Cavaleiras do Amor.

  Dos 12 níveis do Amar e do Amor, segundo os Peregrinos Fiéis do Amor.
Como o estar em Amor é a obrigação dos peregrinos e fiéis do Amor, ou mesmo cavaleiros e cavaleiras do Amor, isso implica que as nossas forças somáticas e psico-espirituais estejam activas, lúcidas e irradiantes, pois estar em amor é estar com ele acesso dentro de nós, não o deixando apagar pelo que quer que seja, ou quem quer que seja, e é viver numa compreensão
harmonizadora ou mesmo unitiva com o que nos envolve, com o Cosmos multi-dimensional e a Fonte Divina..
 No seu 1º nível o Amar é querermos ou aspirarmos à Divindade, a Fonte Primordial de Amor e de Luz.  É o nível mais elevado do Amor, ideal, para nós com graus infinitos de aproximação, ignição e unidade à Divindade.
Este estado ou direcção de Amor porém não se deve  esquecer ou perder de sintonia ou aspiração, e convém ser cultivado nos ritmos e modos  adequados, tal como Erasmo recomendou no orar sem cessar, qual a oração do coração dos hesicastas russos ou o canto devocional dos místicos indianos e persas, ou a plena atenção dos mil olhos dos caminheiros e peregrinos das montanhas e falésias.
Assim, uns fazem-no pela oração e canto, outros pela  sensação, interiorização, gratidão, adoração, serviço abnegado e dedicado, contemplação, visão e unificação. Mas é nos grandes mestres e místicos, sobretudo indianos, persas, sufis e cristãos que encontramos os casos de mais elevada ligação a Deus, ou de estados mais intensos de amor interior e transbordante.
Quando este estado de amor, ou estação do caminho real, se consegue sentir ou estabilizar mais, devemos desfrutá-lo, senti-lo, assimilá-lo, irradiá-lo, intensificá-lo subtil e fortemente.
O segundo nível do Amor é o do espírito, o da nossa identidade própria, centelha íntima, essencial e subtil que existe no seu corpo luminoso espiritual.
É pelo amor a ele que em grande parte sobrevivemos aos obscurecimentos, desânimos, desgastes e ataques da vida quotidiana, pois o corpo físico é então apoiado pela sua contraparte subtil, ígnea e espiritual, e talhado,  configurado e assumido mais unitariamente pela vontade nossa em unísono com espírito, ganhando nós com isso sensibilidade e resistência, intuição e discernimento maiores.
O 3º nível do Amor é o que sentimos e manifestamos pelos mestres, anjos e espíritos celestiais, pelos seres mais próximos da Divindade e da verdade; e que veneramos e de quem acolhemos energias, inspirações e bênçãos. 
 A comunhão com este nível é bem subtil e difícil, pela elevação vibratória dos mestres e anjos e dos planos onde se encontram, e realiza-se pelo coração, pela nossa adoração a Deus e pela nossa perseverante identificação e realização espiritual.  Mas a saudação e invocação dos mestres sintonizada ou praticada diariamente é bem salutar. 
 Atente-se que há uma infinidade de grupos de esoterismo e nova Era com concepções inventadas de mestres, e suas quintas e sétimas iniciações,  uns denominados de ascensos, com mestras e tudo, outros intraterrenos, com decretos, rituais e canalizações mirabolantes, sendo grande a mistificação e possibilidade de engano...
O quarto  nível do amor é o das pessoas amigas que mais amamos, ou pelas quais sentimos mais afinidade de comunhão vibratória, havendo contudo diferentes tipos de afinidades e razões justificativas das atracções, possibilidade e níveis unificadores.
Ao perguntarmos ou inquirirmos quem amamos mais, teremos que equacionar primeiro o que entendemos por amar: se é o desejar o bem, se é o querer estar, se é o querer ser, se é o querer lucrar, se é o querer ser amado, se é o querer dar-se, se é o querer trabalhar como, ou se há mesmo a constatação da presença da graça do Amor beatífico. 
Nesta graça do amor unitivo e beatífico se elevaram muitos trovadores e poetas, grandes amantes, paixões ardentes, seres anónimos ou conhecidos por suas obras, em todos os casos tingindo mais de rosa e dourado o Grande Livro dos Livros.
Amar é estar ou mesmo ser em Unidade com outro ser, certamente em múltiplos graus de comunicabilidade e osmose, mas com o coração bem flamejante do Amor que é, sem estar submetido a forças negativas e opressivas, ciumentas ou partidárias.
O Amor, sendo a Fonte dos Espíritos e do Cosmos, desabrocha ou manifesta-se  sobretudo a quem mais o ama e particularmente nos seres que se amam e em especial em dois seres que se amam o mais plenamente possível. 
Aprofundar o amor entre dois seres é então a grande obra,   alquimia infelizmente pouco aprofundada e clarificada nos seus aspectos mais subtis e íntimos que nos elevam ao espírito, à unidade, à Divindade. Mas felizes os casais que procuram sensível e criativamente chegar a tal unidade, em todos os seus níveis, e fazem das suas famílias e crianças seres harmoniosos e livres na sabedoria e no amor.
O ser Fiel do Amor é aquele que conhece ou vive o  amor e o seu poder imenso e tenta transmiti-lo no mundo, e intensificá-lo em si e nos seus mais próximos.
A rede de seres que amamos, ou que podemos amar mais, com o crescimento dos meios de comunicações modernos, tem aumentado bastante mas haverá que passar do virtual para o real, da dispersão superficializante para a união ou mesmo comunhão frutífera, benéfica, transformadora. Anote-se que recentemente o sar covid veio destruir muita facilidade de contactos presenciais por algum tempo, e esperemos que os seres não se deixem apanhar pelas negatividades que lhes estão associadas...
Descobrirmos que seres são verdadeiramente almas afins nossas, em si, no que comunicam e no que podem realizar, é fundamental para as criatividades ou missões que todos nós somos chamados a realizar na peregrinação terrena.
Sabermos mesmo discernir os seres mais próximos, seja para trabalhos criativos, seja por afectividade, e com regularidade mantermos linhas de comunicação, apoio e aprofundamento é importante, mas sem entrarmos em hipnoses, dependências, explorações doutrinárias e  comerciais, como infelizmente tanto ser, grupo ou seita faz.
O 5º nível do Amor é o que estendemos para os que já partiram da Terra, mais particularmente antepassados, familiares e amigos, e que recebem através de tal santa campanha no corpo místico da Humanidade algumas forças amorosas ou de comunhão, pelas mais diversas formas em que os possamos relembrar ou incluir no coração, no Amor, nos Mestres e Anjos, no mundo e ser Divino.
O 6º nível de Amor é para o que nos rodeia do ambiente, casa, trabalho, rua, aldeia, cidade, e nele se destacam os objectos que temos connosco, as plantas, árvores, aves e  animais próximos, e a natureza com que mais convivemos ou conhecemos e que cuidamos, preservamos e defendemos, nomeadamente face a tantos seres gananciosos e destrutivos, em espacial das árvores, rios e natureza.
O 7º nível do amor é do dos livros e autores e assuntos que mais gostamos ou amamos e aqueles nos quais ou em cujas tradições nos inserimos.
Por exemplo, os Humanistas europeus, os místicos Persas, os sábios portugueses e indianos, os místicos e iniciados dos mistérios da Antiguidade, etc, etc.
O 8º nível do Amor é o da nossa criatividade: que obras estão em curso em nós, quais as que querem germinar, quais as mais necessárias, e seja livros, esculturas, poemas, música, tecelagem, pinturas aquelas às quais devemos estar mais atentos, esforçando-nos por sairmos da horizontalidade do quotidiano e elevar-nos com criatividade e perenidade verdadeira, boa nelas e através delas, deixando o nosso contributo na história da evolução da Humanidade...
O 9º nível do Amor é o da humanidade em geral, pelo qual tentamos ser cada vez mais justos, atentos, compassivos, corajosos, lutadores pelo bem dos seres, dos que mais sofrem, das causas justas, da liberdade dos povos, com espírito de sacrifício ajudando aqui e acolá, e com coragem denunciando ou lutando mesmo as opressões e injustiças e de novo tentando cooperamos com as causas e lutas harmonizadoras e evolutivas da Humanidade...
O 10º nível do Amor é do futuro e da crianças, pelo qual lutamos ambiental, politica, educativa e afectivamente pelo que entendemos ser o melhor para elas e para todos, desenvolvendo metodologias, ambientes e relações justas, ecológicas, sábias e amorosas, em especial para e com as crianças, jovens e seus educadores...
O 11º nível do Amar é o do mistério do Amor, da sua primordialidade e fonte, tanto na dualidade cósmica, a Shakti e Shiva dos indianos, ou o Yin e Yang taoísta, como na individual, homem-mulher, ou mesmo nas enigmáticas almas gémeas, e consequentemente com as múltiplas polaridades em nós e no universo, com as suas harmonias e unidades possíveis.
 O 12º nível do Amar: o aqui e agora, o é a hora, o viva Deus santo Amor, ser o fogo do Amor.
 Texto escrito no dia 22-X-2019, por Pedro Lencastre Teixeira da Mota, ilustrado com três pinturas de Bô Yin Râ.  Revisto em 11-II-21

domingo, 20 de outubro de 2019

Ensinamentos (1º) das cartas de Marsilio Ficino: o caminho ascensional para o Sol. Nos 520 anos da sua morte.

              
Marsilio Ficino à esquerda, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, fresco da época por Cosimo Rosselli
O médico, clérigo, filósofo e espiritual florentino Marsilio Ficino, que viveu entre 1433 e 1499, foi um dos seres que mais procurou, pensou, meditou, contemplou, intui e amou a Divindade e o  Cosmos bem como os caminhos para nos harmonizarmos e e religarmos a Ela, deixando nos seus livros e cartas imensas
indicações valiosas.
Nestes dias dos 520 anos da sua morte (2019), eis uma tradução do latim (na edição parisiense de 1641, comparando com a discutível edição inglesa de 1994), que fiz de um excerto  da sua longa carta escrita em 1478 em Florença para o cardeal João de Aragão, filho do rei Afonso de Aragão, e que bem merece a nossa atenta meditação: 
«Eia, caminha de novo para o círculo lúcido da tua mente, de certo modo quase um espelho, e especulando e contemplando atinge no mundo e no extra-mundo a esfera intelectiva e a esfera do inteligível, cujo centro está em toda a parte, pois penetra todo universo infinito, mas a circunferência em parte alguma pois está infinitamente sobre-eminente  ao universo..
 Eia, contempla a forma divina, a fonte de todas as formas, a forma uniforme e omniforme. Vê esta forma apresentando-se a cada passo a todas as mentes, especialmente diante das puras como espelhos! 
Agora, atinge-te fulgurantemente o Deus dos deuses, perante o qual nenhum deus é o verdadeiro. 
Agora  a bondade eterna do bem é exuberantetotalmente não participante do mal. 
Agora brilha a imensa Luz das luzes do Sol e dos outros seres espirituais. À volta da qual circulam  o sol, as estrelas e as almas, tal como a lua à volta do sol.
 Os raios perenes deste Sol eterno, que eternamente são sempre os espíritos humanos, são envolvidos pela nuvem escura do corpo, mas reflectem em  si o Sol, se o quiserem através da cogitação e do afecto
Sem dúvida, eles contraem-se para o Sol, tal como  originalmente brotaram dele. 
Portanto, assim como eles podem refluir para o Sol em qualquer altura, uma vez que todos os impedimentos foram subtraídos pelo  contemplar e amar segundo os ritos certos, pois claramente emanaram dele desde o princípio sem se separarem, é evidente que são sempi-eternos,  próximos do eterno em si mesmo.
Eles patenteiam mais claramente a sua imortalidade quando  valorizam as coisas mortais como mínimas, principalmente comparadas  com as graças eternas.
Para além disso reconhecem o que é imortal como imortal e a imortalidade em si mesma, isto é, apreendem até certo ponto Deus, através da razão certa de tal  imortalidade.
Deus providencia primeiro e acima de tudo para aqueles que vêem o Deus omnividente. Se Deus é (como certamente é) a causa de todas as coisas, ele está acima de todas as coisas. 
Se ele é simplicíssimo, o que a suma potência manifesta,   certamente então nele não é outra coisa ver que ser, pelo que ele é tudo e vê tudo nele. Sendo óptimo, o que não se duvida, então nele o ver é providenciar. 
Assim vendo tudo, ele providencia universalmente perfeitamente, sobretudo para os espíritos que verdadeiramente o vêem em toda e qualquer coisa e o veneram acima de tudo.»
Possamos nós então conseguir tornar a nossa alma mais transparente à Divindade e mais capaz de a ver e a amar com persistência ou fidelidade, e logo acolhê-La viva no coração do coração, como Fiéis do Amor.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

De la Méditation. Lecture commentée du VI chapitre du livre "De L' Ame à l'Esprit", de Pedro Teixeira da Mota.


Lecture, en français, avec des commentaires du VI chapitre , De la Méditation, de mon dernier livre Da Alma ao Espírito, De l'Âme à l'Esprit, publiée aux Publicações Maitreya, em 2015.
C'est une acessible aproximation à la méditation, ressentie, pensé et dite dans le moment (avec mes limitations dans la langue française), mais certainement sur un subjet qu'on pourrait parler, pratiquer et dialoguer des heures et des années sans qu'on aurait ouverte toutes les portes et visions que peuvent faciliter ou développer sa compréhension et pratique.
Je souhaite que les 30 minutes de l'enregistrement, dans le matin de 18-X-2019,  vous fortifient et inspirent un peu plus dans la connaisance de l'âme et dans les pratiques de méditation, de façon que votre vie soit plus harmonieuse et épanouie, vraiement dans le chemin spirituel, en lumiére et amour, vers l' Esprit, vers les Maîtres et esprits lumineux, vers la Divinité....
                           

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Miguel Torga, "Diário". 1º vol. Resumo crítico ético-espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

No mês quase já outonal de Setembro de 2019, passado em grande parte numa aldeia nos montes do parque do Gerês Peneda, não longe de Montalegre, nada poderia ser mais adequado em termos de sintonia transmontana que ler o Diário de Miguel Torga, no caso o 1º e 2º volumes, e em modo de visitação espiritual, ou seja, discernindo e sublinhando a lápis certos aspectos mais valiosos da sua sensibilidade e humanidade,  ou mesmo, fraternidade, ética e  espiritualidade.  Passei depois para o computador as anotações ou sublinhados do 1º volume, escrito a partir do ano da graça de 1934, quando Miguel Torga tinha 27 anos, e já publicara na revista Presença, e individualmente, poesia. Saíram ao todo 16 volumes, abrangendo as suas impressões, reflexões e poemas, este primeiro publicado em 1941 e o último com as suas impressões de 1993, deixando Miguel Torga a Terra em 17.I. 1995.
 Comecemos então a transcrever os principais sublinhados, referindo em primeiro lugar a pág. 13 pois nela fala do "corpo astral do seu sonho", num sinal de consciência dupla do mundo astral, quer como onírico quer como subtileza supra-material. Será que Miguel Torga admitia que a sua alma em corpo subtil ou astral se exteriorizava, dormindo, nos sonhos?
Já na p. 15 manifesta a sua grande humanidade e solidariedade com os que sofrem, os seus doentes, as mortes de crianças, e o estoicismo que é necessário para lidar com tal, nele provindo provavelmente tanto da terra, família, genética e educativamente, como da sua adolescência em  que tanto labutou numa fazenda no Brasil. E  depois, ainda, pela sua prática médica e o contacto com tanta gente sofredora.
Na p. 17 há um belo pensamento moral, que Antero de Quental também exprimiu nas suas cartas e no preâmbulo das Causas de Decadência dos Povos Peninsulares, e interrogamo-nos se o teria lido e inspirado mesmo: «Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 - Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e que natural é ter um amigo!»
Destaque para a sensibilidade ao ambiente de paz e como um abraço amigo pode ser forte, poderoso e simultaneamente calmante, reconfortante. 
(O pensamento de Antero de Quental, exposto nas Causas de Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, transcrito parcelarmente diz-nos:
«Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, senão acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa fé e na tolerância recíproca! Uma região aonde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo...». Fim da citação anteriana...
Na p. 18 assinala muito sentidamente a morte de Fernando Pessoa: «3 de Dezembro – Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era».  Sóbria escrita mas bem sentida e chorada a partida de uma alma. Ter-se-iam encontrado, ou apenas visto, algum dia na Brasileira do Chiado?
Na p. 23, a 4 de Abril 1936, compõe um dos seus belos poemas, que entremeiam o Diário, intitulado Imagem, consagrado a uma «macieira que floriu assim pela primeira vez./ Deu-lhe um sol de noivado, / E toda a virgindade se desfez/Neste lirismo fecundado./»
Na p. 27, de Vila Nova, 16 de Agosto, confessa a sua falta de fé e o desespero que isso lhe causa e, vendo a cara do vizinho que volta da missa,  prossegue com este matutar: «Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algum Deus fosse capaz de me lavar deles (até o último aldeão sabe que quando muda um marco não há céu que lhe benza a maroteira). Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração.»
Um belo anseio que desejamos e esperamos que no fim da sua vida Torga, ou Adolfo Rocha, o tivesse assumido, e assim  avançasse mais fácil e luminosamente nos estados post-mortem ou, como ele diz e bem, "extra-biológicos".
Na p. 28, narra excelentemente em Coimbra, a 26 de Outubro,  a história do apelo dum namorado para ir  reanimar a noiva  desmaiada: «Subi umas escadas íngremes, estreitas e lavadas, entrei num quarto, olhei a Julieta adormecida, e dei-lhe uma bofetada imensa, funda, no rosto frio, que doeu à família toda. 
Acordou.
Entreguei a noiva viva ao noivo vivo, e vim por aí fora a pensar no que seria mais verdadeiro: se a linfa do desânimo que faz morrer tudo mal o Setembro chega, se o sangue instintivo que se guarda para reverdecer tudo mal o Março começa.»
E conclui com a analogia da natureza no seu ritmo morte vida, interrogando-se qual o mais verdadeiro, sem dúvida, o da vida, embora a morte e sobretudo o Outono e o Inverno sejam fundamentais seja na natureza, seja no ser humano, para o seu crescimento e desabrochamento pleno, este já extra-biólogo, no corpo espiritual, perene...
 
No dia seguinte, p. 29, tem um belo pensamento, acerca da necessidade de sabermos cuidar da nossa paisagem interior, libertando-a das negatividades ambientais, para ela poder receber o sol belo e forte de cada dia interiormente, salutarmente. Muito valioso conselho, pois após dias cinzentos e de chuva muitas vezes não nos abrimos mesmo gratos  no interior à claridade e calor solar que de novo se derramam sobre nós e o ambiente...
Na p. 30, fala duma «grande discussão sobre a mania que a posterioridade tem de publicar cartas íntimas de escritores mortos», concluindo «cá para mim, a humanidade nem tem o direito de tirar ao indivíduo aquilo que ele espontaneamente lhe não deu, nem de lhe engrandecer o nome contra a sua vontade», numa sua muito peculiar reserva quanto à publicitação, defendendo o preservar o seu íntimo, e assim o querendo também nos outros.
Um pensamento sobre os enterros valioso, ainda que num caso anónimo, e que devemos relembrar de quando em quando, e que é o de estarem sempre menos pessoas do que deveriam estar, vem na p. 33, em Coimbra, 12 de Janeiro de 1937, e outro ainda sobre os melhores meios de nos curarmos, muito bem expresso, crítico do aldeão que se trata deixando-se apenas na cama até se curar ou morrer, ainda que em certas doenças, sobretudo constipações e gripes, pode ser melhor tal atitude de purificação simples passiva, sem remédios, desde que acompanhado de alimentação e lavagens correctas.
Na p. 36 reflecte de novo sobre as mortes e cemitérios. E em Coimbra, a 27 de Julho, cita André Gide nos Pretextes a propósito de estarmos tão encantados com o que já possuímos que perdemos o sentimento agudo dos nossos defeitos, de tal modo que há mais artistas que obras de arte, concluindo que tal aviso devia ser dado de purgante a muita gente em Portugal, incluindo-se a ele.
A 18 de Dezembro, na véspera da sua 1ª viagem europeia, justifica assim o seu "registo do dia em notas sem pé nem cabeça":«Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente, sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário. Dito isto - embarco amanhã para a Europa.»
Da sua viagem pela Europa talvez a anotação mais bela seja a no «Alto dos Pirinéus (Lourdes), 24 de Dezembro – Sol. Uma luz maravilhosa inunda esta grande muralha que defende o meu Senhor Dom Quixote das tentações das Folie Bergères.
Olho estes cumes de neve imaculada, fria, e olho em baixo, na cidade adormecida, a morna gruta dos milagres. E, não sei porquê, donde me vem a certeza da salvação da vida, da pureza da alma, da saúde do corpo, não é do fundo. É do mais alto, branco e inatingido píncaro que os meus olhos peregrinos namoram». 
 Das observações das cidades que vai visitando, talvez a de Paris, sentida algo anterianamente, já que Antero de Quental sentira, face ao anonimato das multidões, um vazio de fraternidade nela, valerá registar: É de 14 de Janeiro de 1939 «(...) o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o criador (...) a impressão que se tira desta enorme multidão é de que não se trata de gente mas duma grande levada que as próprias ruas canalizam (...)»
A Bélgica não o satisfaz, e embora cante no poema Peregrinação, escrito a 16 de Janeiro em Antuérpia: «Vim ver em que lugar da Natureza/ As fadas desdobavam seus novelos./ Vim fechar o meu sol nesta tristeza/ Que enloirece os cabelos», sem que saibamos ao certo se as fadas são mulheres ou apenas os seres subtis da natureza,  no dia seguinte já em «Bruxelas, 17 Janeiro. Gare du Midi» confessa perante a possibilidade de passear ainda durante as 4 horas de espera, que «estou triste e desanimado como uma locomotiva fria aqui ao pé. Andar mais, era entristecer e desanimar mais ainda (...) Afinal, quanto mais ando, mais cercado me sinto de muros e de penumbra. O que levo daqui é uma espécie de luar gelado que não serve de nada na minha quente noite peninsular»
Ressalve-se que a época do ano era de facto a mais triste e fria, que não esteve nos campos e natureza bela, e que talvez o espectro da II grande Guerra já cobrisse essa zona tão martirizada da Europa.
Um salto de dois meses no diário, e na época da Páscoa o seu entusiasmo pelo regresso de uma semana tão necessária para recuperar forças n'«Este Trás os Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão e entra-se logo no paraíso.»
Seguem-se algumas notas valiosas (p. 69 e 71) sobre o ofício de escrever e uma descrição excelente de um momento mágico ou transfigurante a «9 de Outubro – Dia de caça. De manhã nos montes e barrocas de Valcanosa; de tarde nos campos do Mondego, primeiro no automóvel por caminhos demoníacos, depois com o Afonso Duarte, nos arrosais, às codornizes. Mas a grande hora, a hora única do dia, foi o momento em que o meu companheiro, o Vasco, os cães, o automóvel e eu, duma barcaça enorme, recebemos a bênção da lua cheia. Montemor ao longe, em terra-cota, sobre um renque de choupos. Um horizonte sem fim para onde o rio corria. A lua, vermelha como um balão minhoto, pendurada no céu. E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante. Nada que se possa figurar em palavras. Silêncio puro. Silêncio e o Afonso na margem esquerda, hirto, calado, irreal, como um deus antigo (...)». Poderemos mesmo dizer que tal momento de Lua Cheia foi uma vivência espiritual e para ele, apesar de bem descrita, considerada inefável, ao modo místico, e com uma captação e elevação bem original, que repetimos:  "E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante", no fundo dando sinal da sua vivência de expansão de consciência, ampliada, supra-corporal e na unidade superior da Luz omnipenetrante...
Na p. 80 tem duas anotações valiosas, um rapazinho marçano que a tocar flauta enche a rua coimbrã de uma melodia mágica, e uma comparação entre duas senhoras de negro a rezarem enquanto andam na rua e os tibetanos a rezarem ou a moerem nos seus moinhos de oração.
A 3o de Outubro de 1938 faz um rendido elogio ao Brasil que conheceu em jovem: «Filme sobre o Bornéu. Só nestas ocasiões, quando me encontro diante duma floresta tropical, é que sinto verdadeiramente o que significa toda a minha adolescência a romper ao húmus duma fazenda do Brasil. Foi um fermentar que nunca mais acabou em mim, porque se deu no meu corpo dos ossos ao coração. Nada que se possa dizer em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi duma terra incendiada de vida, de força e de liberdade.»
E a 1 de Novembro descreve bem um eclipse total da lua e confessa que seria para lá que gostaria de ir morar após esta vida terrena, «desfeito em vago, astro frio, iluminado de saudade».
A 9 de Novembro dá uma outra receita da sua vida, ao modo pitagórico de rever o dia e nele observar o melhor e o pior:«Ponho-me a pensar no momento que seja a síntese deste dia...», e depois de resumir dois dramas, conclui que não, «que foi aquele em que dei um beijo gratuito numa criancita desconhecida que passou pelo consultório a acompanhar a mãe». 
 Passa bem esse Natal em «Trás-os Montes, 25 de de Dezembro – O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar árvores. Porque meu pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e de confiança a inquietação mais desvairada».
A 12 de Abril de 1939, faz de crítico literário e conselheiro: «Riam-se lá, se quiserem, mas hoje, depois de reler [Aldous] Huxley, conclui que um dos maiores escritores que tenho lido é... o Júlio Dinis. Pondo de parte aquela santa Selma Lagerlof, que até parece mentira, poucos como ele souberam até hoje encher a minha alma de paz e de ternura. Bem sei que ser escritor não é fazer a entronização do Sagrado Coração de Jesus pela província. Mas também não é fazer morrer desvairados à sombra dum quarteto de Beethoven».
A 7 de Julho, em Leiria, escreve um dos seus poemas amorosos discretos e fundos, pleno de osmose e sintonia:       ACENO: Longe,/ Seu coração bate por mim;/ E a sua mão desenha aquele afago/ Que me sossega inteiro...
Longe,/ A verdade serena do seu rosto/ É que faz este dia verdadeiro.»
A 1-IX, nas Caldas da Rainha, a fazer seus tratamentos de termas, sofre com a promiscuidade de vizinhos:«Hoje ouvi tais coisas a uma viúva asmática, que me esqueci da garganta, da pneumonia possível, de tudo, e saí desvairado para a rua a encher os ouvidos e a alma da intimidade do silêncio»
Este apelo e necessidade do silêncio puro, quem não o desejou, mas quão poucos o conseguiram, parece ser um horizonte da alma sincera ou rude de Miguel Torga, verdadeira e sóbria.
Outro belo poema amoroso, nessas «Caldas da Rainha, em 12 de Setembro, PAZ: Calado ao pé de ti, depois de tudo,/ Justificado/ Como o instinto mandou,/ Ouço, nesta mudez,/ A força que te dobrou,/ Serena, dizer quem és/ E quem sou.»
É um poema que toca no amor e fusão carnal de dois seres, com bastante profundidade e até difícil de se compreender, pois Miguel Torga ouve a força que dobrou a mulher, e que força é essa, o Amor? E ouve-a dizer «quem és e quem sou». Que ser foi dito? O ser feminino e o ser masculino? Os eus que se exprimiram com o máximo de amor?
A 13 de Setembro faz nova recensão crítica: - As Fusées de Baudelaire. Decididamente, não pertenço a semelhante raça. Aquilo, de resto não é nada, a não ser o fígado a dar sinais de si. Ao pé dum Tolstoi, dum Morgan, dum Rilke, coisas assim parecem realmente vómitos biliosos».  De realçar estas suas três preferências...
E a 20 de Novembro sobre a música: «De dia, apenas um fado rigoroso, que Lisboa, pedagogicamente, mandou à província pelas ondas hertzianas.
Uma mulherzinha a gemer cio com tal convicção, que eu nem sabia se era a sua laringe que cantava, se era o seu sexo.
Sem ofensa para ninguém, é claro. (...)»
Em Leiria a 15 de Fevereiro escreve acerca dum concerto com diversos compositores: «mas chega a vez de Beethoven. O pianista dá a primeira dedada no teclado, e qualquer coisa de sobrenatural surge logo. O andamento prossegue. E só as paredes não estremecem, não se arrepiam, não ficam possuídas de pavor, porque são insensíveis.
É uma beleza cósmica, de raios e de trovões, uma beleza dada por um Deus que viveu na terra por engano».
Excelente esta sensibilidade intensa e cosmicizante à musica e à divindade bem expressa pelo génio de Beethoven.
A 12-III escreve um extensa nota de certo misantropismo e queixas, iniciada assim:«Cada vez me sinto pior. Mas quando me queixo encontro uma tal distância nos outros, que já não tenho coragem de me abrir com ninguém (…) e depois de tecer considerações chama a atenção para «um pinheiro que numa ravina, com a morte sempre diante dos olhos se espreme em conceber constantes pinhas. Ora qual será o pinheiro bem abrigado num vale, bem agarrado à terra pelo espigão, a pensar em tudo menos na sua agonia, capaz de compreender o irmão da ravina?
É esta consciência da fundura da vida, da urgência das horas, que a doença traz a quem sofre, que os sãos nunca poderão entender.»
Destacaremos o constante contacto com a doença, agonia e a morte do médico Adolfo Rocha e logo uma natural contaminação de doença, de meditação na agonia e morte, e até apreensão pelo seu adoecer e morrer (embora venha a viver 87 anos...)  e daí essa sede de viver, que também os que sofrem fortemente ou sofrem, realiza e os queima num não perder tempo, tão ao contrário de tanta gente que está a passar o tempo, a distrair-se, a alienar-se, sem qualquer noção do horizonte da morte e da vida no além, que será naturalmente de acordo com o que se viveu ou se alienou...
No mês de Julho, Miguel Torga está por Leiria e uns dias na Nazaré e, como sempre, interroga-se sobre o mar, rendendo-lhe belas páginas entrecortadas pela sua preferência dos rios, fragas e montanhas. Destaca-se a percepção da fundura da zona da Nazaré, hoje bem mais compreendida pelas suas ondas gigantes e os surfistas.
A sua descrição do dia 2-VII da hora de banho é cómica mas presta-se para grande sabedoria sobre a desconfiança de uns plantados e murados nos seus lugares e eus e por outro lado o gregarismo, a naturalidade, solidariedade dos outros, no caso uma criança que deixa a barraca, os pais e anda a conviver com toda a gente.
No dia 3 realiza que «o mar é em última análise o coração do mundo. Que pulsa, geme, só por ser como o nosso: fonte e consciência biológica de tudo». Uma boa expansão de consciência oceânica, diremos...
E logo em seguida anota, embora já no dia 4:«Continua o nirvana. Nem romance, nem contos, nem poemas. Apenas este monólogo. Se isto pudesse continuar, não era de todo desengraçado publicar mais tarde, na integra, estes frutos insoços de alguns dias de férias. Um livrinho doméstico, espontâneo, descuidado para o qual eu fosse como leitor sem a relutância com que vou sempre para os outros que escrevi...»
É bem curiosa esta confissão no seu 1º Diário que só uns anos depois sairia à luz do dia, mas para ser continuado por vários outros, dezasseis...
Em Setembro de 1939 regressa a S. Martinho de Anta e escreve três ou quatro anotações valiosas: «21 de Setembro. Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à senhora da Azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.
Nota de «22 de Setembro - dia foi em Guiães, a caçar e a vindimar de manhã, e a tarde a ler versos num cemitério que só visto. Se um dia viera a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estes cemitérios transmontanos, de granito, aninhados no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.»
Talvez Miguel Torga pudesse ter visto também, que ao erguerem-nos em altos, remetem-nos para uma região de ninguém, ou mesmo mais próxima do céu. É uma sacralização de um local, é dar aos mortos sossego meditativo e amplas vistas, talvez para despertarem do seu sonho terreno e se internarem ascensionalmente pelo infinito mundo psico-espiritual.
A 2 de Outubro, escreve com um certo orgulho do campo e patriarcal: «Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles – a pé. Foram só seis léguas a pé...» Era a sua mulher, a notável investigadora da literatura e epistolografia portuguesa Andrée Crabbé, da Bélgica, a ser iniciada na tradição marital rural lusa.
E a 7 de Outubro narra um bela história que um seu paciente já lhe contou entusiasmado várias vezes, que ilustra bem a solidariedade duma povoação, contra a opressão estadual e o oportunismo individual.
A 23 de Janeiro de 1941, a propósito de um “infeliz novelista” que acabara de ler, faz considerações valiosas sobre a novelística portuguesa, fraca mas que precisa de ser trabalhada e incentivada, tendo em conta até a tradição nacional em que se insere e que terá um futuro: «Por isso é que eu nunca tenho coragem de atirar uma pedra seja a quem for que conte uma história à lareira tipográfica deste país. Mesmo trôpega, é preciso que haja sempre uma equipe pronta para levar o facho algum tempo, até que venha alguém mais seguro e dextro que o conduza ao seu destino. Um génio, - se ele é possível aqui, com a missão de revelar alguma coisa de nós ao mundo -, necessita de secundários que lhe desbravem os prováveis caminhos da sua força. (...)»
A 14-II narra excelentemente um encontro mágico numa rua de Leiria, explicando que os protagonistas da história:«Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui pela rua fora, a ser junto deles em físico o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que eu não saberia exprimir, e que há-de ser a terra de sua duração.
Eram quatro vultos. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como num sonho. Vinham, e da sua magia irradiava uma vida maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Tudo revelado em som. Uma epopeia funda, que transpunha a muralha da cidade morta e a inundava de calor e da palpitação dum poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que vinha à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que vinham atrás.
Ninguém poderá nunca saber se eram todas suas mulheres,s e filhas, se mães. Mágicas, rufavam, batiam, martelavam, e criavam à volta dele, daquele hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de nuvem carregada de aceitação.
Passavam. O próprio chão tremia. Passavam. As próprias pedras tinham saudades.
E quando lá longe, lá nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, tinha deslizado pelo céu morto da cidade o clarão de uma estrela cadente»
A 29 de Março vem uma nota interessante, mencionando Antero de Quental, tomando a defesa dele e indignado com Castilho: «Em termos absolutos o homem é um valor imponderável, inteiro e perfeito como um dogma. Mas em termos relativos, sociais, o homem é o que vale para os seus semelhantes. E é na contradição de medida que vai de próximo a próximo que consiste o drama de ninguém conseguir ser ao mesmo tempo amado em Tebas e Atenas.
Hoje fui encontrar numa correspondência de Castilho este chamadoiro ao Santo Antero do Eça: A Pantera do Quintal! E, por mais voltas que desse em todo o dia à minha boa vontade, não consegui apagar da aura maravilhosa do autor do Bom senso e do bom gosto a ferida eterna daquele velho, a singrar o desgraçado travo pessoal e humano».
                                       
Talvez Miguel Torga valorize demasiado o "chamadoiro" de António Feliciano de Castilho (o seu filho Júlio usava mais para gozar com Antero, o de Lutero), no fundo uma simples frechada (entre outras em que foi pródigo) de um adversário derrotado e despeitado, mas seria interessante sabermos o que no fim da sua vida (morre em 1875), Castilho pensava de Antero, em ascensão. Quanto à elevada epistolografia anteriana, certamente que a sua dimensão não é de quintal mas universal...
A 8 de Maio considera Miguel Torga com muita justeza:«o que mais estreitamente liga os homens na vida não são as forças puras e generosas. Se assim fosse, não se teria queimado nem ofendido tanta gente superior que andou no mundo. O óptimo moral e intelectual da humanidade é um compromisso entre o bom e o mau, entre o limpo e o sujo, entre a Quaresma e o Carnaval. Por isso quem traz uma chama limpa a alumiá-lo, e só bebe a luz daí, não pode ser entendido nem tolerado lá onde a luz é um pobre crepitar de morrão de candeia», esta parte final mostrando-o bem sensível à luz interior ou espiritual mais ou menos acesa nas pessoas e como tal pode ser mal recebido...
E a 8 e 9 de Agosto sinaliza a morte do grande poeta indiano Rabindranath Tagore e tece considerações sobre o problema da salvação da alma, entre a pobreza e sacrifício de S. Francisco de Assis, e o integrar-se no movimento universal desta gigantesca máquina moderna e fazer nela de parafuso, como mostrou Chaplin». Já a revisitação de leitura «das coisas da Índia maravilhosa que em mim começa em Fernão Mendes Pinto, passa pelo Buda e acaba no Rudyard Kipling», teremos de constatar quão limitadas eram as suas fonte e por isso não admira que confesse «perder-se num fantástico labirinto humano», testemunhando a sua emoção ou admiração perante algumas das lendas fabulosas da civilização indiana.
E terminamos esta revisitação a voo rápido do primeiro volume do Diário de Miguel Torga, ainda jovem, nos seus trinta e poucos, muito forte na sua sensibilidade e amor da terra, da lavoura e da fraternidade humana, em especial para os mais humildes ou sofredores. A inseri-lo nalguma linha memorialista lembro-me de Raul Brandão, certamente seu irmão em vários aspectos, nomeadamente na espiritualidade da fraternidade humana.
Um 1º volume dos Diário do qual se recomenda a leitura, tanto mais que cada leitor vibrará, aprenderá ou apoiará diferentes passagens, tendo eu apenas seleccionado algumas....