Um texto escrito já há algum tempo e concluído em 16 I 24. Aum mani padme hum! |
É interessante sabermos que as primeiras divisões que ocorreram nos discípulos de Budha baseavam-se na hipótese do Arhat, o merecedor ou santo, ser ou não ser perfeito e, nomeadamente, poder sonhar com mulheres e ser tentado, derramando a sua energia sexual em sonho.
Era a grave questão das poluções nocturnas:
um monge considerado muito santo, um arhat, sonhara e a energia sexual
saíra-lhe. Não podia ser mais considerado arhat ou mestre, pois não conseguia
controlar a energia, reclamavam os mais antigos e austeros. Uns
poucos, achavam que um arhat, embora significando um ser que atingira um estado iluminado, continuava a ser humano e portanto
sujeito à beleza feminina ou aos meros instintos, pelo que isso não
diminuía as austeridades que exercera, o desprendimento das ilusões e do ego, a capacidade de trabalho, de
dádiva e sobretudo de interiorização e penetração na realidade
das coisas em si e do Universo transitórios.
Esta realidade íntima dos seres e das coisas também andava em debate e perplexidades: era mesmo vazio, ilusão, ou os seres teriam uma certa realidade, e portanto o amor não seria um resquício da personalidade, um sonho vão, mas uma energia unitiva e libertadora de tal modo que, e quem saberia, a mulher com quem ele sonhara, o desejava também e que invisivelmente as duas almas se tinham encontrado e comungado a unidade de tal forma intensamente que o corpo cá em baixo dera de si mesmo os fundamentos generativos em oblação amorosa.
Se uns mais dados a visões de espíritos e deidades achavam que isso era bem possível, sem contudo quererem identificar a sua consorte, outros mais psicológicos consideravam que no homem havia a mulher e na mulher o homem, e que não se podia ter a certeza se a relação sexual onírica não tinha sido com a sua anima, a sua parte feminina, quem sabe se a definhar no isolamento austero do mosteiro e por isso reclamando a sua parte.
"Nem
só de ideias, renúncias e orações vive o homem", afirmavam uns, enquanto que outros defendiam que a sensibilidade imaginativa, amorosa e compassiva, a anima feminina, vive tanto na psique e animus masculino, como no corpo e não deve ser ostracizada e condenada mas apenas controlada.
Os debates prolongaram-se por meses, e os mais experimentados nas lutas ascéticas da juventude não consideravam o caso grave: era natural que a energia seminal saísse de tempos a tempos pois a perfeição do arhat residia na sua capacidade de exercer a consciência de modo perfeito enquanto desperto e vigilante, mas que não se lhe podia pedir que controlasse o corpo, quando este estava adormecido.
Pensava-se no que o Buddha diria, e se ele alguma vez sonhara com a sua bela mulher, e se por acaso alguma vez tivera uma polução nocturna, sobretudo quando no parque das Gazelas, algumas cortesãs de corpos mais plenos o rodeavam embevecidas pelo Amor que dele emanava. Mas onde estaria ele naquele momento, para lhes dissipar as nuvens das dúvidas?
Dissolvido o seu ego,
restava ainda alguma entidade que os pudesse ajudar? Sempre haveria um espírito-alma individual que continuava a inspirar os que o invocavam ou os que tinham entrado no nobre caminho óctuplo da Verdade?
Por fim triunfou a voz da razão compassiva: nada se deve dogmatizar e absolutizar, e poderia alguma vez estar Prajna, a elevada sabedoria do discernimento luminoso, alcançada e exercida pelos Arhats e Bodhisatvas, dependente e limitada pelos sonhos e uma necessidade psico-somática?
O arhat respirou fundo:
poderia continuar a exercer-se nas práticas contemplativas já não
só da vacuidade de todos os seres e coisas, agarrado a tal como tábua de salvação no oceano de Mara, mas admitir que a
sua alma profunda lhe transmitisse vislumbres do eterno feminino, da deusa e shakti (energia) interna dentro de si.
Veio a constar mais tarde que, dias depois, o arhat sonhou que dentro de si uma grande serpente perdera a pele velha e se transformara numa bela princesa e, dando-lhe a mão, sussurara: "Eu sou tu, tu és eu", e que nesse momento o seu ser unido a ela se expandira no universo, vivenciando a compaixão e felicidade mais intensas que jamais experimentara ou conceberia, chegando por fim a uma ilha do Amor Búdico. Quando, à hora da partida da Terra, transmitiu aos companheiros e discípulos o testamento anímico da sua vida, e estes o assimilaram e revelaram depois aos outros, um novo debate se iniciou:
Deveremos admitir e procurar, no seio do subtil Oceano cósmico, uma ilha do Amor, a ilha
dos Amores, as ilhas do Amor, e serão elas utópicas ou reais, imortais ou nirvânicas?
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