domingo, 7 de janeiro de 2024

Uma conversa com Agostinho da Silva, em 1988: Deus criador, Espírito omnipresente e Deus interno. Europa, de Eduardo Lourenço, que nos pôs na gaveta e Socialismo que Mário Soares pôs na gaveta.

Agostinho da Silva [1906-1994], com o seu chapéu russo. O que diria ele dos conflitos actuais e da mortandade na Palestina? Lux, Justitia, Pax.  

                                                  

Transcrição dum registo manuscrito numa folha das Edições Manuel Lencastre, datado de 28.XII.1988. Acrescentos explicativos em letra menor e dentro de [...].

«Visita ao prof. Agostinho da Silva.                                          Começámos pelo Stephen Hawking e a física moderna, que estão cada vez mais a não encontrar matéria [ao chegarem a partículas cada vez menores e mesmo à anti-matéria]. E quanto à fonte donde jorra a água, ela é incapaz de a definir [Com o hipotético Big Bang dá-se a formação da átomos do Hidrogénio e muito depois do Hélio, os quais se juntam na formação das estrelas, a partir das quais biliões depois se origina o oxigénio, que junto ao Hidrogénio gera o vapor de água].  E a fórmula [explicativa do aparecimento do Universo pelo] do acaso [ser] impossível.
Deus criador. Ou o Espírito Santo, energia impessoal criativa e omnipresente. [Entre estas duas hipóteses aproximativas à Divindade, Agostinho da Silva segue claramente a segunda, aprofundando-a com originalidade e ligando-a a tradição portuguesa e à física moderna.]

E conversaremos sobre muitos aspectos. Como há dias se chateou um pouco com o Eduardo Lourenço, com a sua Europa de Nice [a cidade francesa onde morava], essa Europa que desde o século XVI nos pôs na gaveta,[ muito clarividente, face ao que se tem passado...]

Como o sonho do  Carlos V e de Filipe II duma Península Ibérica se poderia fazer com a capital em Lisboa, e com o espírito dos comuneros [1520-1522, contra a coroa castelhana], que era o do Encoberto (em Valência), agora realçado [ou actualizado] como o Espírito Santo, da criança, do velho e da liberdade. [Bem importante esta actualização da simbolização mítica e espiritual do dinamismo de Portugal: já não o Encoberto, ou o Sebastianismo, mas sim o Espírito Santo, com os seus valores tão actuais e necessários].

Como arranjar leite para todas as terras, e cultura para todos? [Terão de ser] Ou teóricos que investigam, ou práticos que se instalam nas abadias [ou em conventos e comunidades, casas de bem comum, como lhes chamou também.]
[Afirma] que os freires militares continuam. Freires na defesa dos lugares santos.  Cita Einstein, Isfahan (e eu acrescento, onde o Espírito Santo é invocado), e a luta contra os infiéis. Contra todos os que não são fiéis a si próprios e à disciplina.

Conta a história, da tradição do Ruanda Burundi [do Deus criador que, face aos desentendimentos que poderiam acontecer, deixou no peito de cada ser uma parte de si, para ser fonte de inspiração e de harmonia Terra. Narrou esta história a outros e está numa das suas folhinhas que enviava por correspondência.]

Explico-lhe como esse ensinamento de Deus interno é o cerne da questão [principal da vida]. Mas que tem de crescer, é um potencial, e que ninguém nos diz ou ensina isso. Que cresce pelas práticas espirituais e Agostinho acrescenta: « - Pelos encontros do acaso». Sorrimos, sentindo e assim terminamos a conversa.

Disse-me ainda que estava farto das cadeiras na frente [onde tinha que se sentar], de ser reconhecido na rua, que não sabe se a Europa nos pôs na gaveta, ou se Mário Soares pôs o socialismo na gaveta, mas passará a escrever a partir do mês de Janeiro já não [as cartas-boletins intituladas] É a hora, mas uma carta de sugestão prática, já que crê que as telhas nas cidades vão cair, e que é nas abadias [grupos ou comunidades alternativas na Natureza] que se deve construir o futuro.

Acha que os Descobrimentos não devem ser comemorados, pois não são só nossos, e que as Navegações essas sim, e fizeram-se na linha de exploração da divisão [da Terra] que nos coubera no Tratado de Tordesilhas, até 1725.»

Está bom [de saúde e de ânimo].» 

    Muita luz e amor para ele, onde quer que queira estar! Aum, Amen

 Kailas, numa pintura do mestre russo Nicholas Roerich.

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