quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

"Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus contemporaneos". Pascoaes, Régio, Luís Cardim, Hernâni Cidade, Pina de Morais, Augusto Saraiva e Pinheiro dos Santos.

                                  

 "Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus contemporâneos", foi o nome dado ao In-Memoriam de Leonardo, que leva como explicação inicial a seguinte declaração, ao ser dado à luz em 1950 condignamente na Livraria Tavares Martins, no Porto:  "Este livro de evocação e estudo, foi planeado pelos amigos e discípulos do pensador na data da sua morte [2-1-936], e coligido por uma comissão de iniciativa constituída por A. Casais Monteiro, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Sant'Anna Dionísio.»

Contendo quarenta testemunhos, e alguns bem extensos, nomeadamente o final de Sant'Anna Dionísio e que é uma Bibliografia e Biografia de Leonardo Coimbra, de 120 páginas, o que cada colaborador transmite é pessoal e único e assim da leitura da obra recebemos valiosas vivências, imagens, perspectivas e testemunhos  sobre o ser, circunstancialidades e obra de Leonardo e dos que com ele se relacionaram em vida. Não sei se há revisitações desta volumosa obra de mais de 400 páginas, mas que valerá muito recolher algo de mais luminoso ou instrutivo de tais homenagens ninguém terá dúvidas. É o que faremos, transcrevendo e contextualizando levemente algumas dessas pessoas e os seus testamentos leonardinos, de frases, parágrafos, ideias. E começaremos com os sete primeiros elos da tradição espiritual portuguesa que floresceu com Leonardo Coimbra.

A obra é antecedida por um clarividente e interrogador prefácio de Sant'Anna Dionísio, que hoje lhe é respondido aqui, pois após apresentar a obra de Leonardo como a «mais amadurecida, mais completa e mais relevante que em idioma português, como expressão de pensamento autêntico e consequente, se realizou neste século», confessa: «não podemos deixar de ponderar sobre o que tanto os contemporâneos como os mais afastados vindouros, acerca deste livro, tão heterogéneo, de evocação e estudo, hão de pensar ou dizer.
Que simpatias ou gestos de impaciência poderá provocar amanhã este livro entre os que o esperam? E sobretudo, que valor lhe será atribuído não nos nossos dias (porque uma obra desta natureza não pode deixar se ser julgada muito desencontradamente para já) mas, digamos, daqui a cinquenta ou cem anos? Eis-nos a responder-lhe passados 74 anos...

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes (seis anos mais velho), por volta de 1913.
O 1º contributo é de Teixeira de Pascoaes (1877-1952), e sob o título de Lembrança, é tão conhecedor, poético, profundo, comovente mesmo, já que narra a sua última visita à modesta casa dele em Matosinhos, que mereceria ser todo transcrito. E começando assim: «Leonardo Coimbra é uma Trindade: o orador, o professor, o filósofo. Qual das três pessoas a verdadeira? A pergunta deve ser feita nestes termos: qual das três pessoas a mais verdadeira pois todas elas são verdadeiras. Para mim, é a de orador (...)», pois a filosofia estaria cada vez mais sujeita à ciência, sobrevivendo a parte intuitiva na poesia. «Prefiro, em Leonardo Coimbra, a eloquência poética do orador, pois entre o poeta e o orador há sobretudo uma diferença musical. Recitar uma poesia ou um discurso é uma questão de voz sujeita ou não à rima e à medida. Mas o fogo interior ao verbo é o mesmo, ou se expanda em longos períodos ou num certo número de sílabas, em música próxima ou remota. A poesia, refiro-me à antiga) é a música do remoto, a encantar os anjos, e a prosa é a música do próximo, que entusiasma as massas. Mas é a mesma inspiração, a força mais misteriosa da nossa alma. E, então, em Leonardo Coimbra, essa força tão cega e visionária da realidade e da verdade, isto é, da Natura dupla, ou humana e extra-humana, atingia uma intensidade sem rival! Deixava na sombra, qualquer outro orador, ou sagrado ou profano, desde o padre António [Vieira] dos Sermões ao das Conferências académicas [Antero de Quental]. Todas as grandes fugas do espírito ultrapassam os domínios científicos da razão e da física, e penetram na região etérea da poesia, que envolve a da ciência, como se esta fosse [e é...] o núcleo materializado duma esfera imaterial (...)»
«Leonardo Coimbra era, e é, um espírito das alturas, que, pairando, sobre sobre todas as coisas, contempla para além delas, o infinito. Esse além é uma fonte inesgotável...»

 2º, Luís Cardim (1879-1958), Leonardo Coimbra e a Filosofia (impressões dum profano), no qual valoriza e defende a filosofia unida à emoção do filósofo-poeta, terminando assim: «E que a mensagem essencial que ele, debruçado sobre a atroz e iniludível Dor Humana e sobre a atroz e iniludível Tragédia da Vida, pretendeu, imensamente compadecido (como tantas vezes o vimos), incutir no ânimo dos que o ouviam e liam, foi, luminosamente, - a mensagem da ESPERANÇA ABSOLUTA.»

3º, José Régio (1901-1969), em Algumas impressões sobre Leonardo Coimbra, dizendo-nos que tendo-o ouvido algumas vezes a discursar ou na mesa do café, e confessando de início que «nunca fui dos discípulos ou admiradores mais chegados do Mestre», pois estava mais do lado de António Sérgio que «violentamente o atacou», acaba por reconhecer, com muita sensibilidade, as grandes qualidades de orador inspirado e cultíssimo, de metafísico independente e de professor estimulador de almas: «O seu poder de sedução pessoal, pô-lo Leonardo Coimbra ao serviço, junto dos seus discípulos, tanto das suas tendências especulativas próprias, como das virtualidades e faculdades dele. Não quero dizer que alguma vez não o pusesse também ao serviço dos seus interesses, simpatias e antipatias e movimentos particulares. Mas eis o que bem menos importa, porque passou: Morto homem, morreu o que era de morrer. O que importa é que ele abriu aos seus discípulos o imenso mundo do Espírito. Isto, sim, importa. Assim, justamente, continuam eles a render-lhe a sua vibrante gratidão.»
E reconhecendo nele próprio certo constrangimento em valoriza-lo plenamente como
filósofo «pela sua deficiência de sistematização e discursividade, o seu hibridismo, a sua retórica nem sempre boa», considera errado negar-se o seu valor: «Não é Portugal tão rico em autênticas vocações metafísicas, que possa desprezar uma das mais autênticas que tem havido em Portugal. Porque a verdade é esta: A vocação metafísica também era muito real num homem tão diverso, tão rico de dons e tendências, que simultaneamente pode ser um pagão e um cristão, um orador e um filósofo, um lírico e um cientista, um expositor superiormente culto e um conversador garoto como um colegial».

4º João Pina de Morais (1889-1953), militar, tendo estado na 1ª grande guerra, tal como Jaime Cortesão e Augusto Casimiro, seu aluno, opositor ao regime do Estado Novo, escritor. Leonardo: «Leonardo foi uma rajada de elevação mental, virgem, imperiosa e  fecunda, que agitou as ramarias combalidas do pensamento nacional.
Essa rajada, como todas as rajadas, não tinha disciplina, nem respeito e possivelmente nem limite. Nunca consegui moldar o seu talento dentro de normas humanas.
Era um semeador e deixava aos outros a faculdade de aproveitarem a farinha que se espalharia adrede por toda a parte.
Serviu o seu pensamento duma maneira absoluta, fazendo dele uma dádiva permanente e generosa para todos. A sua cátedra estava em toda a parte, os seus alunos eram toda gente, onde quer que estivessem e de todas as idades e categorias.
Nunca me lembro de o ver respeitar qualquer doutrina, qualquer pensador qualquer pessoa. Possivelmente, houve uma excepção para Einstein. »
Reconhecendo que Leonardo mais do que um filósofo «era uma chama ardendo solitária nos cumes solitários e altos como almenaras [torres de mesquitas]», lamentar-se-á de ter sido impedido no hospital, na véspera da desincarnação do fulgurante espírito, pois «Leonardo vendo-me aproximar de si naquela hora desoladora e de amargura inigualável, reconheceria que comigo ia todo o passado das nossas gerações até ao advento da ainda actual situação política e que para nós ele era exactamente como o fora sempre, eminente, generoso, batalhador incansável da liberdade e de todos os grandes princípios da dignidade humana e fiel ao seu e nosso credo. Levar-lhe ia nas minhas mãos amigas um pouco da fortuna que nos dera.» 

Leonardo Coimbra, ao centro, com os professores e alunos da Faculdade de Letras do Porto...

 5º, Augusto Saraiva  (1901?-1975), seu aluno e depois professor de filosofia, e que o homenageia "pelo muito que o admirei e pelo muito que lhe devo" com Alguns Aspectos da Personalidade de Leonardo Coimbra, que inicia assim: «Convivi muito com Leonardo Coimbra. Assisti pontualmente às suas aulas, durante dois anos (Leonardo Coimbra dava, pontualmente, as suas aulas) Ouvi-lhe dezenas de discursos. Sentei-me  com ele, vezes sem conta, à mesa do café. Visitei-o, sempre que me aprouve, em sua própria casa. Na aula, em casa, na rua, todos eram bons para o abordar, sobre as máximas coisas o poderíeis interrogar, acerca de tudo poderíeis com ele, discutir. Nenhuma distância entre ele e vós. Sempre o mesmo sorriso acolhedor, a mesma espontaneidade afirmativa e generosa. Leonardo Coimbra era o tipo do espírito que, em caso algum, se recusa. Na medida em que isto pode inculcar  largueza e abertura de alma, podemos ter Leonardo Coimbra, por uma alma estruturalmente aberta e ampla».
Discernindo a polarização racionalidade tendendo  "a tornar-se tautológica, superficializante, desumanizante, estéril" e o Irracional [ou espiritual supramental] como "garantia da liberdade, densidade e profundidade ontológica da pessoa humana" vê que este acaba em Leonardo por "polarizar-se em Deus sob a forma de sumo Bem e primeiro Amor",  tornando-se assim, mais do que a Razão, "garantia e fonte vivificante, de relações fraternais entre os seres".  E «assim a natureza profundamente afectiva, generosa (ou desprevenida), de Leonardo Coimbra, muito logicamente veio a culminar neste como que transcendental optimismo de mística raiz. (...)

6º Hernâni Cidade (1887-1975), professor, escritor e historiador, nos últimos tempos tendo entrado em desacordo com Leonardo. No Leonardo Coimbra, depoimento dum companheiro de trabalho, assinala bem os defeitos do lirismo e de uma certa falta de disciplina de um ser que conseguiu formar a Faculdade de Letras do Porto e a sua revista, a Universidade Livre, a Renascença Portuguesa e a sua revista Águia, unindo em franca convivência vários escritores e professores, "sob a sugestão da sua palavra, pelos estímulos dos seus exemplos de ansiosa curiosidade intelectual e de alegre esforço no conceber, remover e combinar ideias", algo que hojena terceira década do séc. XXI  diga-se, se tornou muito mais difícil de se realizar com o martelamento mental manipulador dos meios de comunicação, de tal modo que há frequentemente ideias erradas já irremovíveis em pessoas que se coisificaram ou infrahumanizaram.

7º Lúcio Pinheiro dos Santos,  (1889-1950). Numa vida avnturosa teve de emigrar para o Brasil, por se opor ao Estado Novo de Salazar,  tendo desenvolvido uma teoria de ciclicidade, a ritmanálise, que já Leonardo Coimbra em 1916 compreendera e valorizara. Na Profundeza e Perenidade de Leonardo Coimbra passa em apreciação elogiadora a sua obra, nomeadamente as suas críticas e sínteses filosóficas, o seu criacionismo como a característica da actividade pensante, a sua monadologia social e afectiva, e mesmo o aspecto terapêutico contra a tristeza portuguesa do puro lirismo expresso n' A Alegria, a Dor e a Graça, mas vê porém uma certa queda na sua entrada final na religião católica, pois Lúcio Pinheiro dos Santos (recentemente estudado por Rodrigo Sobral) era um optimista nos Tempos Novos supra-religiosos. Dará uma boa visão da actividade relacional, base da visão mais psicológica e criacionista da ontologia de Leonardo: «Por generalização analógica e exame gnoseológico das outras ciências, alarga o conceito de actividade e relação social; e, de novo, apresenta-nos a sua metafísica de pluralismos coerentes, e de «pluralismo social», onde a unidade se faz e se refaz, sem aniquilar os plurais, senhores de suas liberdades, de invenção e de descoberta, em campo aberto a uma experiência progressiva. A verdade não é dada, e não há uma verdade feita; o que há, e o que vale, do ponto de vista intelectual, é método de investigação da verdade, em constante expansão. A tradição não é senão esse método de acção; e, no mais, é apenas a especulação do sistema de ideias da classe dominante que pretende impor-se sentimentalmente, porque lhe falta a razão de um privilégio que se tornou caduco».

Eis um resumo acanhadíssimo dos testemunhos dos seis primeiros amigos de Leonardo Coimbra, no seu In-Memoriam publicado em 1950, e da sua grande riqueza de ideias e sugestões, e relembraremos para fechar um sugestivo dito de Leonardo Coimbra relatado por Augusto Saraiva:«a sua inesgotável capacidade de assimilação permitiu-lhe realizar o tipo da consciência largamente informada [e não a desinformada ou manipulada, actual]: o seu inigualável sentido crítico assegurava-lhe perfeito domínio dos problemas. Poderia tentar-se a descambar na conhecida pecha do sábio luso: na erudição maciça e fastidiosa. Livrou-o, e livrou-nos, disso a sua personalidade forte e original. Disse-me um dia: "O melhor professor não é o que mais ensina, mas o que mais sugere". E ele realizava, de maneira acabada, este tipo de professor. Dificilmente se poderia imaginar alma tão interrogativa, espírito que para além do que dizia, tanto deixasse por dizer. Não era na verdade, um construtor de casulos ou betumador de frestas. Ao contrário, o seu verbo inquieto rasgava janelas, para lá das quais ficavam horizontes que apetecia ao nosso desejo, e à nossa ansiedade, abarcar. Tal desmesuramento dava às suas aulas uma sedução e um poder de contágio que ainda hoje, quem possa evocá-las, não pode deixar de sentir-se preso de indefinível encanto.»

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