sexta-feira, 26 de julho de 2024

Jung, na demanda da Luz do inconsciente, foi um shaman? Marie-Louise von Franz: "C. G. Jung, o seu mito no nosso tempo". Nos 149 anos do seu nascimento.

                      Artigo ainda a ser finalizado... Dia 27, pelas 13 horas, estará concluído.
Em C. G. Jung, o seu mito no nosso tempo, editado originalmente em 1972 (C. G. Jung, seine mythos in unserer seit, e que li na edição francesa de 1988), Marie-Louise von Franz (1915-1998)  oferece uma sábia visão do ser, vida, pensamento e obra de Carl Gustav Jung a partir das suas acções, narrativas e vivências (onde destaca as oníricas),  dividindo a  obra  em quatorze capítulos e  citando frequentemente conhecidos filósofos, místicos, gnósticos, antropólogos e historiadores das religiões e mitos, inserindo assim o mais possível Jung seja na perene tradição hermética e alquímica europeia, e até universal, já que há bastantes referências às tradições orientais, seja na moderna psicologia e antropologia, referenciando até os autores que segundo Jung e Marie-Louise ora erraram nas suas teses ora se afinizaram com Jung, tal neste caso, por exemplo, o teólogo bem profundo Paul Tillich.
A obra é antecedida  duma Introdução, na qual confessa a sua intencionalidade:  explicar o pioneirismo e a importância de Jung no estudo do inconsciente,  já que «para Freud o inconsciente era um fenómeno secundário formado de desejos incestuosos recalcados que poderiam ser também conscientes», e a sua influência no contexto da história civilizacional, nisto exagerando um pouco pois, depois de dizer que ele estava muito desinteressado da opinião que os outros («o que era raro entre pessoas marcantes») faziam de si, justifica a enorme correspondência mantida por ele, «para não ficar interiormente isolado com as suas ideias, mas mais ainda na convicção que da realização delas dependia em boa parte a sorte da nossa civilização ocidental».
Marie-Louise surge aqui, como noutras partes do livro, quase como uma evangelista de um novo mestre ou de uma nova mensagem redentora. Baseava-se na expectativa que as «artes, religiões e comportamentos sociológicos estavam a ser iluminados completamente de novo  pela descoberta do inconsciente, e que de uma concepção justa ou falsa deste inconsciente depende o julgamento de valor que a nossa civilização faz sobre si mesma, e talvez mesmo a sua sobrevivência». 
Há nesta crença, natural para quem foi secretária de Jung e o acompanhou em tantas investigações e compreensões psicológicas ou mesmo curas, uma excessiva valorização do trabalho sobre inconsciente, «o solo maternal autónomo e criador da vida psíquica normal», e dos efeitos transformadores da psique humana e da civilização que os estudos de Jung sobre a importância da criatividade do inconsciente causariam.
Essa falha de sucesso e impacto previsto, ou melhor desejado, acaba Marie-Louise por a justificar, quando, sincera mais do que ingénua,  interrogando-se sobre o que é o inconsciente, confessa que «em verdade, é uma expressão objectiva moderna para designar uma experiência imemorial da humanidade. Ela abraça elementos estranhos e desconhecidos do nosso mundo interior, pulsões de forças capazes de nos mudar subitamente, sonhos e ideias espontâneas que, sentimos, não são criações próprias nossas [ou serão, de um nós mais vasto?], mas sobem do fundo de nós próprios dum modo estranho e todo poderoso. Noutras épocas estas acções foram atribuídas a um fluido divino (mana) a um deus, a um daimon ou a um espírito. e exprimia-se assim dum modo impressivo o sentimento da existência objectiva e mesmo estranha dessas forças, e simultaneamente a experiência de uma realidade toda poderosa à qual se encontra entregue [ou submetido] o eu consciente. Desde a sua idade mais tenra Jung, fez tais experiências de sonhos, de ideias espontâneas e de factos interiores, que ele conta no seu livro a Minha Vida. Mesmo se os fenómenos que ele experimentou foram muito frequentes e intensos e os tomou bastante a sério, eles não oferecem em si mesmos qualquer carácter de raridade.» Observamos um reconhecimento que o inconsciente é uma expressão moderna para algo que sempre existira e que fora reconhecido no passado, recebendo certos nomes que o objectivavam no exterior ora como energia poder, ora como o resultado da acção de certas entidades, mas de facto esses sonhos, ideias espontâneas e factos interiores seriam simplesmente do fórum psíquico profundo de cada ser.
Continua logo de seguida Marie-Louise: «Todo o medicine-man primitivo vive das suas visões e dos seus sonhos, todo o caçador recebe o seu saber de inspirações sobrenaturais, todo o ser humano religioso conhece experiências semelhantes a dado momento da sua vida. No próprio seio da nossa civilização existem de certo numerosos seres que experimentam tais estados semelhantes. Contudo raramente falam, com receio do choque do repúdio pelo meio ambiente racionalista». Observamos M. l. von Franz, talvez  com pouco rigor,  equiparar e unificar  vários fenómenos com diferentes origens, chegando mesmo a usar a expressão "inspirações sobrenaturais", curiosamente para o exemplo mais terra a terra, o faro do caçador, tudo sendo actividades do inconsciente. 
Continua em seguida ,explicando como  Jung estendeu o seu interesse «às manifestações psíquicas mal afamadas  às quais se dá o nome de parapsicológicas», registando que a sua 1ª obra, a tese de doutorado, era sobre tais fenómenos, e como foi estabelecendo a sua interpretação deles como manifestações do inconsciente não recalcado mas potente na sua força de devir:«Jung descobriu nessa ocasião que o "espírito" todo poderoso que se manifestava nas sessões mediunicas descritas por ele era uma parte ainda não integrada da personalidade da médium, parte que se  tornou um aspecto essencial da personalidade dessa jovem no decorrer da sua maturação. e deixou de repente de se manifestar de modo autónomo, como um "fantasma". Desde então um passo essencial foi feito em direcção das suas descobertas posteriores. Ele adquirira a intuição  da existência de fenómenos psíquicos objectivos inconscientes e contudo relativamente religados a uma pessoa onde eles não constituem um elemento recalcado, mas um vir a ser [ou devir] novo. Toda a sua obra posterior foi consagrada a explorar a fundo este mistério que é a qualidade criativa do inconsciente».
Resta saber se  existência das forças psíquicas existentes no nível inconsciente da psique humana exclui a existência de espíritos individuais reais no mundo subtil ou astral planetário e a sua capacidade de se manifestarem nas auras e psiques humanas, podendo pensar-se que é apenas um núcleo ou uma sub-personalidade do inconsciente.
Depois dessa boa clarificação do que era o inconsciente que,  por contraposição ao eu consciente que se desenvolve ao longo da vida, Jung chamava também o seu "génio", "daimon" interior e o seu inspirador, sem lhe querer dar um valor absoluto como alguns inspirados religiosos fizeram, Marie-Louise von Franz realça que actualmente a demanda profunda necessária, tal como Jung fazia,  é «na camada mais natural, mais original e mais universal do ser», e que está associada aos estados primitivos do fenómeno religioso, ao chamanismo, e não ao cristianismo eclesiástico, que para Jung transmitia pouco ou nada de respostas. E tal como Jung teve de «procurar em si mesmo na psique inconsciente as instruções  para o seu caminhar», assim cada pessoa tem de se «encontrar com o seu próprio deus ou daimon, com o que sobe das suas profundezas, carregado de potência: emoções, afectos, fantasmas, inspirações criadoras e bloqueios», com razão apelando-se a uma unificação da concepção transcendente divina com a vivência imanente dela.
Os títulos dos valiosos capítulos, assentes nas vivências (sobretudo oníricas), e nas explicações interpretações de Jung, e cheios de referências a autores, tradições e casos, são os seguintes: I.  O deus subterrâneo, II. A lâmpada-tempestade, III. O médico, IV. Simetria em espelho e polaridade da psique. V. A viagem no além, VI. O antrophos, VII. O mandala, VIII. Coincidentia oppositorum, IX. Conhecimento matinal e conhecimento vespertino, X. Mercúrio, XI. A pedra filosofal, XII. Penetração no "unus mundus". XIII. O indivíduo e sociedade. XIV. O grito de Merlim. E  conclui com uma tabela cronológica da vida de Jung e a sua bibliografia.
A tabela cronológica ou biográfica tem trnta e três datações e vamos transcrever as principais:
1875 26 de Julho, nascimento de Carl Gustava Jung, filho do pastor Johann Paul Achilles Jung (1842-1896) e de Emília Preiswerk (1848-1923) em Kessil (Thurgovie, Alemanha). 1900 Conclui os seus estudos de medicina. 1903 casa-se com Emma Rauschenbach, filha de um industrial e tem cinco filhos. 1913 Qualifica-se para ser o docente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina, que exercerá até 1913, e médico chefe da clinica psiquiátrica de Zurique. 1907 Encontro com Freud. 1911 Fundação da Sociedade Psicanalítica internacional da qual será Presidente até 1913, quando se separa de Freud. 1916 Fundação do Clube Psicológico  em Zurique. 1918 Estudos sobre mandalas. 1918-1926 estudos sobre os gnósticos. 1925 Viagens de estudo aos povos indianos nos USA  e aos habitantes do monte Elgon, no Quénia. 1932 Prémio literário da vila de Zurique e Presidente da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia. 1933 a 1952 Participação nos famosos encontros de Eranos em Ascona, onde conhece e convive com os principais sábios da antropologia espiritual. e do que resultou um conjunto de livros muito valiosos das conferências proferidas. 1934 começo do estudo da alquimia. 1938 viagem curta à Índia. 1944 Professor de Psicologia Médica na Universidade de Bale. Fundação e Presidente da Sociedade Suíça de Psicologia prática. 1948 Fundação do Instituto de Jung em Zurique. 1961, 6 de Junho desincarna na sua casa em Küsnacht.
 
Como terá sido animicamente a desincarnação de Jung? Estava desperto para avançar logo no além em corpo psico-espiritual? Receberam-no, ou acompanhou-o alguém?

  Destaque o capítulo V, a "Viajem no Além", por ser bem valioso e embora já o tenha abordado parcelarmente num artigo, em que anotei o que me parecem certas perspectivas menos correctas, voltei publicar algumas partes,  acrescentando várias outras.
 Assim no 1º parágrafo a afirmação bem discutível: «Ao lado do sacerdote, que vela sobre o ritual e as tradições da sociedade, encontra-se a figura do shaman, que se distingue por uma experiência individual dos espíritos (ou seja do que nós chamamos hoje o inconsciente) e que é especialmente responsável pela cura de indivíduos e de problemas da colectividade». A fonte adoptada, ou no fundo justificadora de tal equiparação que o "conhecimento do inconsciente = shaman" por Marie-Louise von Franz é Mircea Eliade e remete para o seu volumoso e bem documentado Chamanismo e as técnicas arcaicas do extase.
Ora é enganador, ou então muito reducionista. considerar que os espíritos são o inconsciente. Podemos quanto muito dizer que o mundo dos espíritos não nos está em geral consciente, ou que estamos inconscientes deles, mas considerar que entidades individuais e determinadas, os espíritos, são apenas aspectos, configurações ou símbolos que brotariam ou habitariam o inconsciente é redutor, e insere-se numa linha de antropologia algo materialista que considerava os espíritos como animações e simbolizações que o ser humano fazia dos seus desejos, medos, ou ainda dos elementos da natureza. Poderemos pensar ainda que ela desse modo podia considerar mais fundamentadamente C. G. Jung como o grande shaman da época.
Talvez uma  correcta perspectiva seja admitirmos que no nosso mundo dos sonhos, provenientes do inconsciente profundo ou de um estado de consciência subtil que nos é semi-consciente, os espíritos ou outras pessoas podem-se manifestar e portanto implicitamente poderíamos ficar mais conscientes de que somos espíritos individuais e que nos movemos enquanto tais, ao conseguirmos não nos limitarmos à identificação corporal adormecida, conservando a consciência individualizada noutra dimensão de vida, subtil. Tal todavia  não é tão frequente, embora alguns afirmem facilmente as suas viagens astrais, talvez algo de ânimo leve e haja ainda os sonhos lúcidos.
Podemos ver neste passo e no decurso da obra que Carl G. Jung e M. L. von Franz tendem a diminuir ou a não valorizar  nas individualidades a visão espiritual de certas realidades  e propõe antes um saco ou fundo vago e amplo, o inconsciente, acessível pelos sonhos, as imaginações, os desenhos e as terapias de psicólogos e psiquiatras.
  A visão do processo da vida como um caminho para a individuação do ser humano na perspectiva jungiana não parece ser verdadeiramente o da auto-consciência espiritual, o da ligação directa com a centelha do espírito, antes assemelhando-se a mergulhos mais ou menos criativos e com mais ou menos sentido num inconsciente individual e colectivo, embora pelos seus estudos crescentes com o tempo de alquimia, hermetismo e espiritualidades orientais Jung tenha vindo a poder compreender melhor as dimensões psico-espirituais do ser humano.
Como a ligação ao espírito individual é fundamental mas não é fácil dada a sua subtileza,  compreende-se que Jung não a tenha conseguido realizar, empenhando-se mais em diversos meios que podem ajudar a limpar e a centrar o inconsciente e o que da personalidade e seus conteúdos mentais deverá renascer para se atingir uma individuação harmoniosa, o que tem a sua razão de ser dado que trabalhava sobretudo com doentes e não com místicos, gnósticos e iniciados, que contudo estudava.
Outro aspecto discutível é Marie-Louise dizer do shaman «é ele que cura os doentes pelo seu transe, acompanha os mortos no reino da sombra e serve de mediador entre eles e os seus deuses. Num certo sentido ele vela pelas suas almas»,
Eis afirmações algo exageradas, tomadas de Mircea Eliade, possíveis num ou noutro caso de bons shamans, mas de modo algum com este tipo de absoluto: quantos deles conseguem ver a ascensão das almas, quantos conseguem acompanhar na visão, ou com meras energias que possam enviar, uma alma no caminho ascensional post-mortem, tão individual, tão subjectivo, tão misterioso?
Estas viagens no além, de que nos ficaram vários relatos iranianos, judaicos, greco-romanos e da literatura medieval cristã e islâmica, e que Marie-Louise referencia e descreve bem, são em geral mais imaginações e visões construídas do que eventos espirituais objectivos, tal como o sair mesmo do corpo, ou ter uma clarividência real e verdadeira do processo da morte e dos caminhos ascensionais.Reflectem em geral as crenças religiosas da época e o que foi mesmo visão ou vivência espiritual, não condicionada por crenças nem apenas imaginação, tem sempre de se tentar discernir.
Bem se pode clamar que o shaman serve de mediador entre os seus pacientes e os seus deuses, pois em geral os deuses representam entidades e planos bem próximos da terra e que nem exigirão grandes mediações, embora certamente quem executa as danças ou orações que mexem as energias faça algo desse trabalho de elevação dos mortos, faltando saber se há uma existência real dos tais deuses no post mortem, para os seres que acreditavam neles, bem como que forças são precisas para as pessoas poderem despertar mesmo e avançarem conscientes nos mundo subtis por si próprias, ou mais provavelmente com algum tipo de guias ou mestres.

Um pouco mais à frente outra afirmação mistificante, exagerada, de Mircea Eliade, algo frequente nele e em geral diminuindo a força espiritual de cada ser: «O shaman, diz Eliade, é o grande especialista da alma humana: só ele a vê, pois ele conhece a sua forma e o seu destino».
Eis uma afirmação exagerada e logo absurda: 1º como se ele fosse o único ou quem mais tem sensibilidade, intuição  clarividência. 2º como se a clarividência que ele possa ter seja assim tão segura que veja o presente e o futuro de um ser. Sabemos bem como a maior parte dos shamans tem uns vislumbres dos planos inferiores do Cosmos, frequentemente ligados a espíritos elementais e de animais. 
Não vamos discutir agora o que entendem por espírito Eliade nem Jung e Maria-Loise von Franz, para eles mais símbolos de que entidades, e a que "forma do espírito" se refere Eliade como vista pelos shamans, apenas sugeriria que para tal afirmação ser minimamente correcta a interpretássemos neste sentido: eles podem ver algumas almas-espíritos, nos seus corpos subtis, já fora dos corpos físicos mas muito provavelmente o núcleo íntimo do espírito, a centelha, escapa-lhes e portanto a forma primordial dele...
Em seguida cita Marie-Louise von Franz várias viagens no além que podem ser vividas em sonhos e como desmembramentos e mortes sucedem nessa linha iniciática de confrontações  e de morrer e renascer e que Mircea e muitos outros antropólogos têm encontrado  em muitos povos, sobretudo africanos e asiáticos mas também europeus e que têm algo de iniciação de jovens para discernir e vencer os males, devendo-se destacar ainda tal universalidade com o dito registado na Antologia grega, "Morrer é ser iniciado" e que entre nós Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa poetizaram belamente, como já abordei neste blogue.
Faltaria ainda discernir a que níveis se peregrina no além, se é meramente no inconsciente onírico, ou se tais viagens acontecem no mundo subtil ou astral e são  fontes de informação fidedigna, tal como também discernir-se se os espíritos que falam pela boca do shaman não são senão falas automáticas (quais escritas automáticas de inspirados, mediuns ou surrealistas) de núcleos do seu psiquismo ou então possessões interiores e em geral de espíritos pouco desenvolvidos ou apenas entidades menores, embora certamente pudesse haver guias bons, mestres de linhagens shamanicas e que ajudavam o shaman incarnado e em acção.. 
Se os centros espíritas em quase todo o mundo são suspeitos nas suas mensagens, sobretudo quando é Jesus ou outro grande ser a debitar banalidades morais, quanto mais não o são as múltiplas canalizações actuais dos mediuns, mestres ou shamans da nova Era, de Elizabeth Claire Prophet a Babaji, de Rampta e Kryon a Denis Walsh, este com a arrogância total de assumir o que escreveu como resultando de uma fala directa com Deus. Ora nestes casos não são mais do que pessoas a falarem por si próprias e a mistificarem, ou então a receberem alguns fragmentos ou influências de entidades astrais, em geral bem menos elevadas do que se afirma.
Talvez neste capítulo um dos aspectos mais interessantes referidos, pelo que pode apontar para o anjo da guarda ou um guia seja o que diz Eliade e seguindo-o Marie-Louise: «Muitos shamans possuem assim uma esposa celeste invisível, outros tem como auxiliar supremo o espírito de um grande shaman defunto, um velho sábio que os conduz, e que frequentemente, durante o transe, fala directamente através da sua boca». 
Pese a certa popularidade que alguns tipos de shamanismo têm ganho dentro dos grupos e actividades estilo nova Era, em certos casos com sessões de Ayahuasca ou de baba de Sapo (que chegaram a matar um amigo português: muita luz e amor para ele),   tal não é o mais indicado para os nossos dias, em especial as incorporações de entidades invisíveis, ou o entrar-se em transe e alguém falar por nós, aspecto primitivos de inspiração e que não levam nem a planos e conhecimentos elevados, ou a estados de harmonia e saúde, pois o verdadeiro diálogo com os mestres ou guias, a haver e é raro, passa-se no nosso interior e sem incorporações e vozes exteriores. Mas certamente o shamanismo nos seus locais tradicionais e milenários e realizados por pessoas dotadas de certos poderes psíquicos e abnegadas terá um papel valioso e importante nas populações locais nos casos em que necessitam de tal clarividência, conhecimentos, poderes, curas e ligações.
Do melhor que transmitem é quando dizem que os shamans inventam as suas canções e orações pois tal é certamente algo que todos devemos fazer: orar do coração, espontaneamente. E eventualmente irmos descobrindo os sons, as invocações, as jaculatórias que harmonizam ou elevam melhor os seres e os ambientes..
Poderemos dizer que os shamans representavam nas populações pré-históricas ou mais primitivas os seres que se notabilizam ou destacavam por certas capacidades de conhecerem alguns tipos de energias subtis, nomeadamente as vitais e anímicas, humanas e da natureza, e de servirem-se de tal para gerarem resultados e efeitos que as sociedades em que viviam precisavam, em certos casos sendo verdadeiramente polos entre a terra e o céu dos mortos e de algumas formas divinas que acreditavam e nutriam.
Uma certa ressurgência destas formas primitivas de espiritualidade que designamos por Shamanismo tem a sua razão de ser face a sociedades actuais tão materialistas e artificiais, despidas de comunhão com a natureza e os seus seres e forças, mas há que ter cuidado para as pessoas não se deixarem envolver em egrégoras ou formas de pensamento de grupos limitadoras e em práticas de ligação com  seres ou entidades meramente etéricas e astrais e despidas do conhecimento do espírito e dos planos mais elevados do Cosmos.
Embora o que conheçamos do shamanismo seja como que a religião natural mais antiga, tanto na Europa e na Ásia, como de certo modo com a África, não devemos mitificar, atribuindo aos shamans, aos feiticeiros e magos tantas capacidades elevadas, e antes cumpre-nos saber discernir muito bem quão perigosas podem ser para o cérebro ou mesmo a psique a ingestão de certas poções.
Embora Jung tenha estado em África e na América do Sul, em contacto com povos imersos na Natureza, Marie-Louise acaba por valorizar mais a sua relação com Goethe que estava muito a par dos teósofos e hermetistas cristãos de então. Nesta mesma linha de valorização da linha goethiana esteve Rudolfo Steiner (1861-1925), com desenvolvimentos impressionantes no estudo das cores, da cura e da agricultura biodinâmica, dado que estaria dotado de uma clarividência, ou capacidade de conhecer os mundos superiores. Sabemos porém que Jung não gostava muito de Steiner e punha em causa a sua clarividência, preferindo provavelmente o seu trabalho dos sonhos,  a observação do inconsciente e o desenho, estudo e contemplação das mandalas, que aliás desenhou genialmente.
Neste capítulo há a descrição dos sonhos que Jung teve ao longo dos anos e que ele considerou como uma viagem no além e no qual interagiu tanto com o seu astral individual como com o colectivo da época, bem patente nos sonhos que antecederam a 1ª grande guerra. Contudo Jung identifica certas personagens arquétipas neles e sente bastante as suas lutas contra as sombras e o mal como o seu caminho e do Ocidente, «atravessar o inferno das paixões« resgatar a sombra e não como «o Oriente que aspira a libertar-se da Natureza e dos opostos interiores». Marie-Louise dedica então umas seis páginas à apreciação e interacção que Jung fez com o Oriente, e em especial com a China, e o seu Tratado da Flor de Ouro.
Valorizando um diálogo ou o desenvolvimento de uma imaginação activa face ao inconsciente, Jung não negava que com isso se pretendesse chegar ao ser divino ou universal, pois era uma fase transitória rumo à personalidade total, ou individuação, em que se adquiria o seu próprio ser. Mas afirmava:  «a Natureza, a alma e a vida são para mim a divindade», no que representa uma certa limitação pois a Divindade ainda que imanente no ser humano e na Natureza também é em si mesma, como fonte, e Ser primordial. Por isso o culto, adoração e  conhecimento da Divindade em si ou na sua manifestação pessoal no íntimo de cada ser, acabou por não acontecer tanto nele, ou não foi tão exprimida por ele, talvez algo limitado tanto por um inconsciente demasiado omnipotente como por um contexto adverso da religiosidade institucional, que ele sentira algo dramaticamente na vida de seu pai, pastor protestante mas morto interiormente para qualquer vivência do Divino.
Que a Divindade, os mestres e os anjos os abençoem e a nós todos, para que tanto das profundezas do inconsciente, como da claridade do espírito, nos chegue a Luz redentora e o Amor criativo e libertador.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Das jaculatórias, aspirações ou exclamações, orações breves e intensas. Exemplos da tradição espiritual portuguesa, e da universal.

Emblema  1 da Pia Desideria, desenhada e gravada por Boetius Bolswert, em 1624. Do peito da alma partem as flechas dos desejos ígneos, piedosos, iluminantes.

Jaculatórias: Todas as exclamamos ou exprimimos, em todos nós afloram, do nosso interior brotam e desaparecem, e o que fica dos seus efeitos entretecido na nossa alma e cérebro, além da melhoria de claridade interior e transformações anímicas, pouco sabemos ao certo, apenas em alguns rasgos de clarividência se discernindo padrões e floreados atingidos ou emanados...

Certamente na vida espiritual de cada um e de cada dia há altos e baixos, tempos em que elas surgem e exclamam-se mais naturalmente e eficazmente, outros em que temos de as escolher e praticar, perseverando mesmo contra securas, desânimos, desalentos.

Como as exclamamos, ou seja como as sentimos e com que sentimentos, intenções e consciência as pronunciamos, influencia bastante o seu alcance e efeitos e por isso se não há sincera adesão, sentimento ou comunhão com elas, se não correspondem mesmo a aspirações nossas, duram pouco, desvanecem-se, afogam-se sobre as ondas incessantes dos pensamentos e preocupações.

As jaculatórias, as orações curtas, tanto abrem um caminho interior como exterior de elevação energético-consciencial e há que estar bem atentos para conseguirmos discernir o tingir ou modelar do espaço subtil e anímico.

As jaculatórias ora invocam ora afirmam um ser ou um estado de energia-consciência, e tanto o pedem, como trabalham, como  adoram, como  irradiam.

Elas correspondem em muitos casos ao japa ou repetição de mantras indianos (em geral recebidos na iniciação), ao zikr ou repetição do nomes divinos islâmicos,  e cada pessoa devia escolher algumas e cultivá-las com regularidade e perseverança, nem que seja uns minutos, para depois se poder entrar em estados mais silenciosos, contemplativos, de amor pacificante ou fortificante...

Podemos ter algumas orações breves ou jaculatórias específicas para certas ocasiões ou situações. Por exemplo, ao sair de casa, assumir-se uma e ver até se há outras que se afirmam posteriormente mais. Ou quando tomamos banho e limpamos a casa, ou peregrinamos nos campos e subimos montanhas. Ou ao deitar-nos e  ao acordarmos, alturas em que podemos observar como elas se encadeiam com outras, ou como se geram com originalidade e se desvendam.

As jaculatórias tanto nos defendem de negatividades e agitações dispersivas exteriores e reforçam certas energias ou qualidades como num dos seus níveis funcionais importantes tendem a elevar-nos a níveis mais próximos da nossa identidade ou ser íntimo, o espírito e, consequentemente ao mundo intelectivo, espiritual ou mesmo divinal e podem comparar-se, ou considerar-se, uma aproximação ao estar na presença de Deus,  ao caminhar diante de Deus, como algumas das nossas místicas antigas tanto tentavam alcançar.

A jaculatória, dirigida a qualidades, seres espirituais ou à Divindade pode ser praticada, observada ou desenvolvida ao nível do corpo, da respiração, da palavra, da mente, do intelecto, do coração e da visão, e é importante tanto o sentir ou mesmo contemplar da sua acção dentro de nós e ou acima de nós, como também o afecto, o sentimento, o amor dinamizados, já que têm a ver  com a vontade, com a intensificação sentida de todo o nosso ser e que, por vezes, no seu máximo, ressoa e desperta tanto o nosso querer mais profundo de alcançarmos o nível do que a jaculatória exprime, como também o nosso próprio ser-espírito, sobretudo se a jaculatória o exprime ou invoca mais especificamente, tal: "Viva o espírito imortal", ou a afirmação-oração-mantra dos espirituais indianos de  Sat Chit Ananda, eu sou Ser Consciência Felicidade.

Quando pronunciamos as jaculatórias com todos os níveis do nosso ser em acção a eficácia dela é maior no colorir ou qualificar a nossa aura nessa ligação ou caracterização específica, no unificarmos mais as nossas potências, no abrir-nos mais ao espírito e ao divino, em tingir-nos ou encher-nos mais das forças espirituais e divinas. E o irradiarmos tais energias, quando as proferimos em prol de pessoas com problemas ou que já desincarnaram.

As representações dos santos e santas aureolados exprimia em certos artistas a consciência que tinham dessa unificação ou plenificação anímica, desse brotar da semelhança de Deus, ou seja do corpo de Glória, o xvarnah iraniano, o augoeides grego, que todos possuímos em potencial e que nos seres mais luminosos e abnegados resplandece mais, embora certamente com o tempo tais aureolas e esplendores passaram a ser símbolos indispensáveis da representação dos santos e não correspondendo a uma intuição ou conhecimento do artista que os pintava ou desenhava. Mas ao contemplar-se o ícone e ao pronunciar-se (silenciosamnte ou não) a palavra, invocação ou jaculatória diante dele, tais estados luminosos eram mais facilmente vivenciavéis pelos fiéis.

Suponhamos esta oração ou jaculatória  brotar sentidamente de nós: - "Meu Deus, eu aspiro ardentemente a ti". Ela indica já uma certa ignicidade da alma, ou seja, o centro do coração está em acção, em irradiação, o que se vai intensificar se ela é mantida, usufruída, aprofundada. Na tradição portuguesa, embora seguindo a tradição europeia rosa cruz, um mantra desta linha ígnea foi pesquisado e afirmado por Fernando Pessoa ao parafrasear ou desdobrar as iniciais que encimavam a cruz de Jesus Cristo, INRI, como significando In nobis regnat Ignis, ou ainda In nobis ressurget Ille, ou seja, "Em nós reina o Fogo", ou "Em nós ressurge Ele", o Cristo, Deus, ou o fogo do Espírito.

Viva Deus, santo Amor, é outro mote, tal como o Non nobis, Domine, non nobis sed nomini tuo da gloriam, dos cavaleiros templários, ainda hoje operativos como jaculatórias. Mas certamente as melhores jaculatórias são as que  tendem a exclamarem-se, a suspirarem-se, a arderem de dentro de nós, por vezes para serem mantidas secretamente, apenas emanadas silenciosamente, outras vezes para serem partilhadas em cantos ou meditações e orações grupais.

Na tradição religiosa e espiritual portuguesa houve vários autores que escreveram sobre elas (tais como P. Diogo Monteiro, P. Manuel Bernardes, Frei António das Chagas) e místicas e místicos que  trabalharam mais especificamente certas jaculatórias e transmitindo-as aos seus próximos, umas vezes criando-as por si mesmas, outras vezes adaptando orações tradicionais, tal como a Soror Ignês de Jesus  que abreviara o Pai Nosso e a Avé Maria, ao rezá-las como jaculatórias, dizendo apenas "Pai Nosso que estais nos Céus" e "Avé Maria cheia de graça". Bastava-lhe tal, para em pouco tempo entrar em estados de interioridade e profundidade de  consciência, em sintonia sagrada e divina.

Por vezes as jaculatórias estabilizam-se ritmicamente seguindo a inspiração e a expiração e acalmando o mental, outras vezes entretecem-se e geram escadas ascendentes e ritmicas de sentidos e invocações fecundantes, transfigurantes,

Das jaculatórias cristãs ou portuguesas mais conhecidas poderemos relembrar ainda: "Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos", o "Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, Amen", o "Eu amo-vos de todo o meu coração, de toda a minha alma, de todas as minhas forças", e ainda a clássica da tradição hesicasta e peregrina russa, na sua forma mais extensa (que pode ser abreviada): "Senhor Jesus Cristo, filho de Deus Vivo, tende piedade de mim que sou um pecador".

Para finalizar, oiçamos e recebamos algumas jaculatórias da seiva ardente de duas das nossas sorores místicas. Da Madre Brízida de S. António (1576-1655): "Imensa Bondade", "Eternidade para sempre, para sempre glória a Deus", "Mãe de Deus valei-me", "Meu Santo, lançai-me a vossa bênção". E da escalabitana Soror Inês de Jesus, (1641-1728):"Ó Bondade infinita, ó Pai da minha alma"  e "Ay Amor, Amor, Amor!"

Boas jaculatórias, meditações, unificações, irradiações...

                                                 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

"Pia Desideria" ou "Desejos Piedosos": o III Livro, e os seus 15 emblemas reproduzidos e brevemente comentados.

Com os seguintes quinze emblemas levemente comentados, concluímos a transcrição das gravurinhas devotas do mais editado livro de emblemas do séc. XVII, a Pia Desideria emblematis Elegiis & affectibus SS. Patrum illustrata, isto é, Desejos piedosos ilustrados por emblemas, elegias e sentimentos dos santos Padres, escrita pelo sacerdote e humanista  Herman Hugo (1588-1629) e impressa pela 1ª vez em 1624 em Anvers ou Antuérpia, então o grande centro tipográfico do livro religioso de imagens na Europa dilacerada pela Reforma, quando os religiosos católicos tentavam transmitir as suas ideias  publicando tanto em latim, como em francês, flamengo ou em outras línguas europeias, em Portugal publicando-se a 1ª versão em 1688.

Frontispício da 1ª edição da Pia Desideria, de 1624.

A obra foi ilustrada por notáveis gravadores,  tais como Boetius Bolswert (a 1ª edição), Christoffel Sichem (a 2ª), Antonie Wierix, ora sobre cobre ora sobre madeira. Debaixo de cada emblema estava inscrita em latim a legenda, que era um pequeno excerto da Bíblia (a maioria do Cântico dos Cânticos), desenvolvida depois numa reflexão meditativa em forma de poema e, por fim, comentada com múltiplos excertos (referenciados) de Padres da Igreja e da Bíblia.

Emblema, legenda com versículo bíblico e poema comentário. No emblema um andarilho anímico: quantos de nós não precisamos deles (...) e do apoio-estímulo dos espíritos celestiais?

Dividida em três Livros num caminho ascendente de purificação, santificação e união da alma (com o Anjo que simboliza tanto o Amor, como o mestre Jesus, como Deus), tal como os títulos indicam Gemitus Animae Poenitentis, Gemidos da alma penitente,  Desideria Animae Sanctae, Desejos da Alma Santa, e Suspiria animae amantis, Suspiros da alma amante, cada um dos livros contém quinze emblemas. Tendo publicado já os primeiros trinta, passamos a reproduzir os do último ciclo, Suspiros da alma amante, na realidade o mais pleno de amor unitivo:

O apaixonado deseja saber do ser amado e reencontrar-se com ele. A alma ferida pelo Amor a quem seja, ao mestre ou a Deus sofre enquanto não os vê ou encontra.

Almas mais místicas, e entre nós algumas sorores (tal soror Mariana da Purificação, clarissa do convento da Esperança em Beja), talvez por terem lido a Pia Desideria ou o Cântico dos Cânticos, e por tal se justificado, exclamaram: - "Ajudai-me a respirar melhor com o aroma das maçãs e das rosas, senão despeço-me do corpo e morro de amores."
  
Quando a amada e o amado estão juntos e de mãos dadas florescem as coroas de flores aromáticas, ou seja, os centros de força do corpo glorioso resplandecem e irradiam energias e formas orgânicas belas...
A bússola do coração aponta para quem ele ama e guia-nos na sua direcção.
A Alma que ama profundamente facilmente se derrete e alegra sob o fogo do coração e da palavra do Amado.
O Amor em mim não me deixa presa aos bens da Terra ou do Céu,  e só a ti aspiro e suspiro, ó Amor, ó Anjo, ó Mestre, ó Divindade

- Longe do mundo espiritual, até quando peregrinarei por terras alheias em vez de estar mais unido a ti?
A alma que mais intensamente aspira à Divindade pode sentir como infeliz o estado de estar presa do corpo mortal. Como e quando nos podemos libertar deste jugo? Esta interrogação vivenciou dramaticamente essa alma mística do Absoluto que foi Antero de Quental. Se tivesse conseguido estabilizar uma relação devota com uma pessoa espiritual ou divina provavelmente o seu amor não teria fenecido, e sua vida ter-se-ia prolongado e o seu estado espiritual se elevado...
"Sou como uma ave presa por um fio à Terra e quero elevar-me livremente e ascender para Ti", exclama a alma nos seus momentos de maior devoção amorosa e aspiração divina.
"Livrai a minha alma da gaiola e prisão, permiti-me dar testemunho do teu nome e ser", exclama a alma para o seu espírito, anjo, mestre e forma pessoal da Divindade...
Tal como a gazela ou o veado anseiam pela fonte fresca, assim a minha alma te deseja, ó espírito, ó Amor, ó bem Amado, ó Divindade.
Aspirar a conseguir aproximar-nos da mestre ou da Divindade e podermos contemplar a sua face, deve ser uma prece incessante, um fogo latente no coração...
Que a nossa oração seja a de pedirmos asas para podermos elevar-nos acima das transitoriedades e inutilidades e podermos comungar mais com a realidade espiritual, perene, divina.
Intuirmos ou contemplarmos  o mundo espiritual e o templo da Divindade, mesmo que seja apenas o seu átrio, já é uma graça e a tal devemos aspirar e merecer pela nossa perseverança em nos mantermos sintonizados apesar de todas as dificuldades. Eis uma das mais belas gravuras para contemplarmos e sentirmos mais os raios unificadores do Amor divino.
Fujamos das multidões e agitação, meu amor, e vamos para os montes e montados, onde as aves e os animais se exprimem livre e harmoniosamente por entre os aromas das ervas e flores. Saibamos elevar-nos aos montes ou estados expandidos de consciência e transfiguradores em Luz, Poder e Amor.

domingo, 21 de julho de 2024

Da demanda da vera efigie de Jesus Cristo e da sua óptima contemplação...

Jesus trinitário, e não triteísta, no museu de Folclore de Salzburg, séc. XVII.

Descobrirmos a vera efígie de Jesus Cristo é certamente uma das mais difíceis demandas da história religiosa, artística e cultural da Humanidade, pois apesar de haver milhões de representações de Jesus, ninguém tem conhecimento e autoridade suficiente para afirmar que esta é a mais próxima ou fidedigna, a que se poderia considerar quase feita ao vivo e, portanto, que quem a contemplasse, mais do que as indulgências costumeiras antigas (100 dias de absolvição para quem rezar um Pai nosso e uma Avé Maria diante delas), ficaria com o acesso facilitado ao Mestre, no sentido de tanto ele poder mais adequadamente manifestar-se dos mundo espirituais através de tal imagem, como igualmente os contemplantes conseguissem sentir mais as correntes do seu amor, paz, serenidade, certeza e sabedoria.
Sim, em v
erdade, se alguém sente que está diante da vera efígie ou face de Jesus, que alegria, que responsabilidade, que intensificação energética e consciencial brotam em si por estar diante do Mestre?
Pensar-se-á mesmo: Que responsabilidade, o Mest
re estar na nossa casa, na minha alma. Está ela digna da sua presença, ou a desarrumação ou impureza aqui e acolá não é muito consentânea com a sua radiação sublime?

Ícone português da vera efígie.

 Que privilégio admitirmos, aceitarmos, sentirmos que uma certa pintura, ícone, gravura ou desenho  retrata provavelmente muito fielmente o mestre, ou que pelo menos lhe serve de canal de comunicação para connosco, e portanto podemos sentir os seus olhos e a sua boca falarem-nos....
Que fortificação e enriquecimento do nosso coração e alma, que aperfeiçoamento moral e ético ou ainda alegria e graça se geram na nossa alma pela contemplação da  vera efígie?
Pois tudo isto é exp
erimentável e vivenciável quando selecionamos uma ou outra imagem que se nos configura como um bom canal para as  energias, bênçãos ou mesmo a presença etérica do Mestre.

Ícone ortodoxo...

Para quem não tem tanta inclinação para a meditação interior, ou mesmo para orações mais demoradas, quão mais fácil é apenas contemplar a vera efígie e desfrutar de tal visão abençoadora, na Índia chamada darshan.
O objectivo da contemplação é tornar-nos um com o ser ou realidade apresentado ou representado, e é o coração, a dimensão afectiva e amorosa, que sinaliza a osmose alcançada, com alegria, delícia ou, como dizem na Índia, com beatitude, isto é, ananda.
Um dos ú
ltimos verdadeiros espirituais da Índia, sSri Ramakrishna Paramahansa (1836-1886), mestre do mestre de um dos meus iniciadores, Swami Ranganathananda (1908-2005), disse mais de uma vez nos seus inolvidáveis satsang ou companhia da verdade, que nos tempos modernos o método principal de realização espiritual e divina era repetir-se o nome (nama) de Deus que mais gostarmos, sentirmos,  ouvirmos ou sobretudo o nome incluído no mantra que recebermos numa iniciação.

Fotografia ao vivo de Sri Ramakrishna Paramahamsa, em Calcutá.

Pois nos tempos ainda mais modernos de hoje, em que o predomínio das imagens como fontes de conhecimento (e alienação) é extraordinário, podemos afirmar que a contemplação duma imagem sagrada, na Índia denominadas nas suas formulações geométricas yantra e mandala, e murti, imagem duma forma Divina, é certamente um dos melhores meios de acalmarmos a dispersão mental, purificarmos o seu conteúdo e unificarmos a nossa consciência com o que contemplamos e portanto avançarmos no caminho da religação espiritual e divina.
Entre nós, na Tradição Espiritual Po
rtuguesa, religiosos e sobretudo as nossas sorores conventuais, cultivaram muito a devoção ao mestre Jsus e a Deus através de gravuras ou registos que tinham nas suas celas ou que inseriam nos seus livros de orações, por vezes entrando mesmo em estados intensificados de amor unitivo ao contemplarem-nos. A soror Mariana da Purificação, no preclaro convento da Esperança em Beja,  talvez demasiado na peugada de S. Teresa de Ávila, foi uma das que relatou tais estados derivados da contemplação de uma imagem do seu querido mestre e Deus, que lhe intensificava a sua energia anímica e amorosa forte e exuberantemente, qual shakti da Índia.

Pintura de Bô Yin Râ. Original na sua Fundação em Massagno, Suiça.

Nos nossos dias de tanta desinformação e manipulação, conseguirmos abaixar os olhos em relação ao mundo e aos seus media, e antes os dirigirmos para a vera efígie que mais nos apraz, e em alguns minutos  nos determos diante dela em respiração, sentimento, adoração, gratidão é extremamente benéfico para nós e para todos os que animicamente estão em relação subtil connosco, mortos ou vivos.
Contemplar uma imagem de Jesus Cristo, ou de um outro mestre, mais demoradamente é como erguer um canal de Luz que faz descer sobre nós e os que estão ligados connosco valiosas vibrações, melhorando as nossas inspirações e conexões superiores.
Escolha então a vera imagem que mais sinta que gosta, pratique e verá então os bons resultados que gera...

Dia 21 de Julho de 2024, e XXI no Tarot, o Mundo, a carta da harmonia ou mesmo da perfeição possível. Boas contemplações!

sábado, 20 de julho de 2024

Os shamans, e seus poderes, vistos por Marie-Louise von Franz, Carl G. Jung e Mircea Eliade. Reflexões a partir de "Jung, seu mito no nosso tempo."

                                                             

       Marie-Louise von Franz (1915-1998) no seu livro Jung,  seu mito no nosso tempo, que talvez fosse melhor até  o mito que fizemos dele (como alguns criticaram, algo exageradamente, tal Richard Noll),  partilha muita informação seja de Carl Gustav Jung (1875-1961) seja de ela própria e de Mircea Eliade, que merece a nossa reflexão, pois na verdade transmite algumas ideias e ensinamentos ora bons ora discutíveis ora mesmo incorrectos...
O capítulo V, a Viagem no Além, foi o que nos atraiu e, da pequena travessia das suas letras, ideias e vivências, eis alguns dos aspectos questionáveis ou notáveis:
No primeiro parágrafo encontr
amos logo uma afirmação bem discutível: «Ao lado do sacerdote, que vela sobre o ritual e as tradições da sociedade, encontra-se a figura do shaman, que se distingue por uma experiência individual dos espíritos (ou seja do que nós chamamos hoje o inconsciente) e que é especialmente responsável pela cura de indivíduos e de problemas da colectividade».
A fonte ad
optada por Marie L. Franz é Mircea Eliade e o seu livro o Chamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase
Jung e Eliade, dois fumadores do cachimbo shamânico, dialogando nos anos 50 em Eranos

Ora é enganador, ou então reducionista, considerar que os espíritos são o inconsciente. Podemos quanto muito dizer que o mundo dos espíritos não nos está consciente, ou que quase sempre estamos inconscientes deles, mas considerar que entidades individuais e determinadas são apenas aspectos ou configurações que brotariam do inconsciente é errado.
Tal perspectiv
a só poderemos considerar útil se pensarmos e admitirmos que, no nosso mundo inconsciente e pelos sonhos os espíritos podem-se manifestar mais, uma vez que a nossa racionalidade diminui e um funcionamento psíquico acontece no qual, para além de meras associações e limpezas, pode haver um ver, agir e ser influenciado por entidades nos mundos subtis, os quais se subsumiram no termo inconsciente, na linguagem de Freud e de Jung.
Jung e Marie-Louise von Franz diminuem assim o discernimento duma visão de entidades seja no plano astral seja no espiritual e propõe antes uma espécie de saco vago e amplo, o inconsciente, acessível pelos sonhos, as imaginações, os desenhos e não tanto pela visão determinada espiritual sobre certos níveis do pluridimensional universo.
Neste sentido também o enaltecido caminho para a individuação, de Jung e da sua escola, não é tanto o da ligaç
ão directa com o espírito, ou ao espírito, mas antes uma estruturação psíquica segundo certos moldes arquétipos e que não implica um eu espiritual como a meta e essência de cada ser, mas antes um vasculhar, compreender e ordenar os conteúdos psíquicos internos de modo a que um eu mais são e total se afirme.
Maria-Lo
uise von Franz diz-nos ainda que «é o shaman que cura os doentes pelo seu transe,  que acompanha os mortos no reino da sombra e quem serve de mediador entre eles e os seus deuses. Num certo sentido ele vela pelas suas almas».
                                                

Eis afirmações algo mistificantes
, possíveis em vários shamans, sobretudo os mais dotados de poderes psíquicos, mas de modo algum com o tipo de domínio pleno ou absoluto como nos tentam apresentar.
Quantos shamans antigos ou actuais conseguem ver a ascensão das almas, quantos conseguem acompanhar na visão, ou pela energias que consigam enviar, uma alma no caminho ascensional post-mortem, tão individual, tão subtil?
Uns poucos, os que conseguem ter a visão psico-espiritual aberta, limpa, algo difícil pois as ervas e poções que ingerem podem distorcer os seus finos sensores psico-espirituais...
Bem podem clamar de novo Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz que o shaman serve de
mediador entre eles e seus deuses, quando em geral os deuses representam entidades subtis de planos bem próximos da Terra e que nem exigirão grandes mediações, embora certamente quem faz as danças ou orações trabalha com energias que podem alimentar entidades ou deuses, e impulsionar a elevação dos mortos,  facilitando a abertura dos sentidos das almas dos que partiram para os planos de vida desses deuses, desses anjos da Natureza e de tradições regionais ou tribais.

Um pouco mais à frente encontramos mais uma afirmação mitificante ou exagerada de Mircea Eliade, algo frequente, e em geral diminuindo a força espiritual de cada ser: «O shaman, diz Mircea Eliade, é o grande especialista da alma humana: só ele a vê, pois ele conhece a sua forma e o seu destino».
Afirmação exagerada e algo absurda: prim
eiro, como se só ele tivesse clarividência; segundo, como se a vidência que ele possa ter seja assim tão segura que veja a essência do ser, o seu estado presente e o seu futuro, que dependem de tantos factores. Sabe-se que  a maior parte dos shamans tem uns vislumbres (maiores ou menores) dos planos do Cosmos mais próximos do físico terrestre, frequentemente ligados a espíritos elementais e de animais e aos seus antecessores. Como poderá ele discernir tão facilmente a essência espiritual de cada ser e adivinhar o desenrolar da sua vida, nomeadamente nos planos subtis que tão íntimos são, a não ser que tenha recebido da tradição um mapa arquétipo no qual deduz ou intui a estação da alma desencarnada?


Em seguida refere Marie-Louise como certas viagens no além podem ser vividas em sonhos e como desmembramentos e mortes sucedem nessa linha iniciática de morrer e renascer, que Mircea Eliade e muitos outros antropólogos têm encontrado por toda a parte. Este aspecto é correcto, e os contos tradicionais de enfrentamentos com lobos ou outros seres que nos tentam desmembrar, comer ou matar reflectem iniciações transmitidas por oralidade e vivenciadas nos mundos subtis  e em sonhos, e que visam despertar a força de vontade dos jovens, o discernimento do mal e capacidade de lhe resistir.
Faltará ainda discernir com mais exactidão em que níveis se peregrina no além, e se os espíritos que falam pela boca do shaman podem ser guias elevados inspirando, ou mesmo imagens do Eu espiritual dele, ou apenas possessões interiores por entidades menores ou mesmo imaginações do seu inconsciente dinamizado nessas sessões por vezes bastante intensas e emotivas
Um dos aspectos mais interessantes, pelo que pode apontar para a alma complementar ou gémea, ou ainda mesmo para  um mestre como guia, será o que narram Eliade e Marie-Louise: «Muitos shamans possuem assim uma esposa celeste invisível, outros têm como auxiliar supremo o espírito de um grande shaman defunto, um velho sábio que os conduz, e que frequentemente, durante o transe fala directamente através da sua boca». E assim pode suceder, sobretudo em sociedades tradicionais, com ligações que perduram de mestre a discípulo, mas, repetimos, o entrar em transe, as  incorporações de entidades (que podem ser de todo o género), o alguém falar por nós, são métodos   que não levam  necessariamente a planos e conhecimentos elevados, nem a estados de harmonia e saúde...
´«Ter
a visão dos espíritos, no estado de vigília ou de sonhos, é o sinal mais importante da visão shamanica, diz-nos Marie-Louise,  acrescentando que frequentemente o shaman compreende igualmente a linguagem secreta dos espíritos ou dos animais, em especial das aves».
                                                   
                 Uma shaman na Coreia, povo onde ainda se conserva bastante tal tradição.
Estas afirmações de Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz, embora reconhecendo a importância da clarividência, ou uma ligação tradicional, acabam por ser superficiais pois, mais do que ver espíritos, importa é o nível e o controle que se tem, pois pode ser apenas uma vidência de origem atávica ou genética, e portanto muito terrestre e que não foi obtida por merecimentos e realizações próprias.
Entender que a fala dos espíritos e dos animais e aves é algo ao mesmo nível é pouco exacto, pois são níveis e linguagens diferentes, embora certamente o amor do coração emanado, a empatia e harmonia com eles seja o mais importante. Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz são em vários aspectos mais teóricos, esotericistas do que conhecedores, iniciados e provavelmente pouco ou nunca dialogaram com animais e aves, nem sentiram a unidade com eles, seja individualmente seja em grupo. Nem viram com o terceiro olho  a Luz espiritual que nos banha.

Para concluir este breve apontamento a um livro ainda assim com valor, destacaremos do que relatam ou especulam a afirmação que os shamans inventam as suas canções e orações, pois tal é certamente algo que todos devemos fazer, de modo a libertar-nos de padrões e a conseguirmos orar e  elevar-nos da mente para o coração e deste para o espírito, os mundos espirituais, a anima mundi onde vivamos, para o divino que cada um possa alcançar, e a Verdade que possa discernir e realizar.