Guilherme Filipe, quando viveu cinco anos na Nazaré, fundindo-se plenamente com as pessoas e o ambiente. Fotografia do blogue de José Queiroga: Homenagem ao Pintor Guilherme Filipe. |
No In Memoriam de Leonardo Coimbra, publicado no Porto em 1950, entre os vários contributos valiosos, belos e sentidos um só provém de um pintor e é o de Guilherme Filipe, que tendo nascido em Fajão, Pampilhosa da Serra, em 1897, quatorze anos mais novo que Leonardo Coimbra, teve uma vida dedicada plenamente à arte, à pintura, aprendendo primeiro com Cândido Sotto Mayor, José Malhoa e António Tomás Conceição Silva e estudando em diferentes centros de Espanha (onde foi importante o magistério de Joaquim de Sorolla) e França, com constantes idas e vindas, exposições e convivências, até estabilizar em Portugal em 1932, e desenvolvendo, dir-se-á, um estilo profundo de realismo social, com as figuras muito humanas mas frequentemente plenas de simbolismo...
A sua primeira exposição em Coimbra, em 1923, e na Universidade, mais complexa na sua pujança inicial, foi apresentada por almas artísticas e sábias como Eugénio de Castro (que lhe arranjara um atelier na Faculdade de Letras), Afonso Duarte, Virgílio Correia, e do catálogo da exposição hoje José Queiroga partilha no seu blogue parte das valiosas apreciações.
Resolvemos transcrever o seu testemunho pelos belos ensinamentos que nos transmite, seja acerca de Leonardo, seja dele próprio. E se lermos a sua biografia, e há-as valiosas online, tal a da sua sobrinha-neta Rita Cortês na wikipédia, e as dos blogues de José Queiroga e do ancestralpampilhosense, compreendemos melhor a riqueza artística, pedagógica, ética e espiritual vivida por Guilherme Filipe com tantas exposições e sobretudo iniciativas culturais, tal no Estoril, em 1934, a Escola de Acção Artística e Intelectual, que funda com Augusto Pina, e patrocinado por Fausto Figueiredo e Guilherme Cardim, e em 1944, na Nazaré, o Jardim Académico de Belas Artes onde se realizaram cursos, conferências, exposições, sessões de cinema, e que ele animou abnegada e entusiasticamente, mencionando-o até neste texto, já que o escreveu quando trabalhava e vivia na bela vila piscatória
Realçaremos ainda as suas amizades com Eugénio de Castro, Leonardo Coimbra, Miguel Torga, Sant'Anna Dionísio (que pintou bem como ao seu filho) ou mesmo os democratas opositores do repressivo Estado Novo, pois integrou a comissão de apoio à candidatura eleitoral de Humberto Delgado à presidência da República, passando desde então a ser mais silenciado ou publicamente inviabilizado.
Este seu testemunho, certamente pedido por Sant'Anna Dionísio, é pois uma boa oportunidade de comungarmos com a sua alma, a de Leonardo Coimbra e o fogo do amor ao bem, à verdade, ao belo e à liberdade que os animava. O título já indica muito, e pena foi que não tivesse debuxado uma vera efígie de Leonardo Coimbra:
INVOCAÇÃO E TESTEMUNHO
«Sou admirativo por natureza. Infelizmente, porém, admiro pouca gente, e quando tenho que fazer a alguém a não admiração por si ou pela sua obra custa-me isso os olhos da cara.
De todas as coisas e de todos os seres esforço-me sempre por encontrar o seu lado bom; porque o mau, se o vejo, uma de duas; ou o escondo, para que, por minha parte, ele não influa na formação e desenvolvimento dos que, por qualquer desvio de natureza são sensíveis ao mal, ou o corto rente como quem corta a parte do corpo afectada pela gangrena, mostrando-o em toda a sua maleza e fealdade.
Há nisto, reconheço-o, qualquer coisa de fatal e desditado missionarismo nato, superior à minha vontade e às eventuais razões de conveniências pessoais. Mas que fazer! Sinto que, ante tudo, é preciso defender a vida, a arte, a beleza e o amor dos perigos que a ameaçam.
Conheci e admirei Leonardo Coimbra [pena não ter detalhado mais, ainda que descrevendo-o bem, como pintor e espiritual]. Era um tipo exemplar de homem, fisicamente bem constituído e intelectualmente bem formado, jorrando de luz de verdadeira inteligência, optimismo e simpatia humana.
Alto, forte, gordo, moreno, corado, cabeça arredondada, cabeleira negra, grandes olhos castanhos duma melancolia profunda, embora vivos, raras vezes o víamos sem um grande charuto na boca, cujas fumaradas eram algo assim como o fumo vulcão do seu espírito.
Em qualquer parte onde se encontrasse, Leonardo Coimbra dominava sempre. A sua presença era daquelas que enchiam o espaço: um salão, a praça pública, o parlamento, o país. Quando falava, a sua voz, o seu verbo eloquentíssimo, revelavam logo nele a força da natureza com Dom de gente.
Tinha as aptidões necessárias para ser o filósofo que a Península Ibérica requeria a continua requerendo. Mas era português, tinha sido nado e criado em Portugal e essa fatalidade perdeu-o para a filosofia e até para a política.
Não foi ele, de resto, o primeiro nem o último dos grandes portugueses que se perderam assim. Se valesse a pena dizer porquê, diríamos que a trágica verdade está em todos nós: somos poucos e temos os encargos de muitos. Toda a energia do povo português se gasta na manutenção da independência material do país. Se há casos individuais em que alguma energia fica para sonhar, pensar, filosofar, pintar, fazer ciência, isto é, fazer Pátria, esses casos nunca podem garantir a independência espiritual, que é essencial porque, além de serem raros, padecem do mal da origem: são devidos a essa estranha coincidência entre a fortuna particular, feita ainda à custa da energia do povo, e uma formação moral em culturas estrangeiras, sem sentido de unidade [uma das falhas constante na nossa história]. E assim, como só por milagre constituímos uma Nação, eu penso que enquanto se não destruir esse monstruoso rochedo da fatalidade nacional, que tantas ondas de talento e de génio tem desfeito, não haverá possibilidade de construir, dentro das fronteiras, a Pátria ideal da cultura em relação com a Humanidade, e desgraçados dos portugueses que nascerem com vocação para as artes, para as letras ou para as ciências.
«Sou admirativo por natureza. Infelizmente, porém, admiro pouca gente, e quando tenho que fazer a alguém a não admiração por si ou pela sua obra custa-me isso os olhos da cara.
De todas as coisas e de todos os seres esforço-me sempre por encontrar o seu lado bom; porque o mau, se o vejo, uma de duas; ou o escondo, para que, por minha parte, ele não influa na formação e desenvolvimento dos que, por qualquer desvio de natureza são sensíveis ao mal, ou o corto rente como quem corta a parte do corpo afectada pela gangrena, mostrando-o em toda a sua maleza e fealdade.
Há nisto, reconheço-o, qualquer coisa de fatal e desditado missionarismo nato, superior à minha vontade e às eventuais razões de conveniências pessoais. Mas que fazer! Sinto que, ante tudo, é preciso defender a vida, a arte, a beleza e o amor dos perigos que a ameaçam.
Conheci e admirei Leonardo Coimbra [pena não ter detalhado mais, ainda que descrevendo-o bem, como pintor e espiritual]. Era um tipo exemplar de homem, fisicamente bem constituído e intelectualmente bem formado, jorrando de luz de verdadeira inteligência, optimismo e simpatia humana.
Alto, forte, gordo, moreno, corado, cabeça arredondada, cabeleira negra, grandes olhos castanhos duma melancolia profunda, embora vivos, raras vezes o víamos sem um grande charuto na boca, cujas fumaradas eram algo assim como o fumo vulcão do seu espírito.
Em qualquer parte onde se encontrasse, Leonardo Coimbra dominava sempre. A sua presença era daquelas que enchiam o espaço: um salão, a praça pública, o parlamento, o país. Quando falava, a sua voz, o seu verbo eloquentíssimo, revelavam logo nele a força da natureza com Dom de gente.
Tinha as aptidões necessárias para ser o filósofo que a Península Ibérica requeria a continua requerendo. Mas era português, tinha sido nado e criado em Portugal e essa fatalidade perdeu-o para a filosofia e até para a política.
Não foi ele, de resto, o primeiro nem o último dos grandes portugueses que se perderam assim. Se valesse a pena dizer porquê, diríamos que a trágica verdade está em todos nós: somos poucos e temos os encargos de muitos. Toda a energia do povo português se gasta na manutenção da independência material do país. Se há casos individuais em que alguma energia fica para sonhar, pensar, filosofar, pintar, fazer ciência, isto é, fazer Pátria, esses casos nunca podem garantir a independência espiritual, que é essencial porque, além de serem raros, padecem do mal da origem: são devidos a essa estranha coincidência entre a fortuna particular, feita ainda à custa da energia do povo, e uma formação moral em culturas estrangeiras, sem sentido de unidade [uma das falhas constante na nossa história]. E assim, como só por milagre constituímos uma Nação, eu penso que enquanto se não destruir esse monstruoso rochedo da fatalidade nacional, que tantas ondas de talento e de génio tem desfeito, não haverá possibilidade de construir, dentro das fronteiras, a Pátria ideal da cultura em relação com a Humanidade, e desgraçados dos portugueses que nascerem com vocação para as artes, para as letras ou para as ciências.
Ora a minha admiração por Leonardo Coimbra estava em que eu via sempre nele o homem capaz de formar a pequena legião de bravos capazes de destruir esse tal monstruoso rochedo da fatalidade nacional.
Se hoje fosse vivo tinhamo-lo certamente no Jardim Universitário de Belas Artes, animando e orientando os seus debates, nesse sentido. Quantas vezes, antes de abrirmos essas sessões, ou já depois de as abrirmos, quando ouvimos gaguejar alguns, impossibilitados de coordenar ideias e construir um pensamento, nos lembramos de lhe enviar um convite para o outro Mundo!... [Bela afirmação da sua abertura à comunicação com os espíritos já partidos].
Pouco nos importaria que não fosse um filósofo ou um pensador feito; e, no caso de o ser, que a sua filosofia ou o seu pensamento não agradasse ou satisfizesse por não corresponder às exigências históricas do nosso tempo. O importante seria que estivesse presente. Porque sendo ele, como era, isso sim, a filosofia em potência e o pensamento em acção, no sentido genésico, a seu lado ninguém permaneceria indiferente aos altos problemas da vida, pois era como poucos homens têm sido no Mundo - um grande agitador das almas.
A garra espiritual de Leonardo Coimbra sente-se nas gerações que formou. E se nenhum dos seus discípulos o seguiu o seu "criacionismo", mas antes o recorda com admiração e saudade, é porque ele foi o verdadeiro Mestre: formou inteligências, criou personalidades.
Era assim Leonardo Coimbra.
Que o seu espírito esteja presente, neste momento excepcional, em que o Mundo vai dar uma grande volta, no seio da História.»
Se hoje fosse vivo tinhamo-lo certamente no Jardim Universitário de Belas Artes, animando e orientando os seus debates, nesse sentido. Quantas vezes, antes de abrirmos essas sessões, ou já depois de as abrirmos, quando ouvimos gaguejar alguns, impossibilitados de coordenar ideias e construir um pensamento, nos lembramos de lhe enviar um convite para o outro Mundo!... [Bela afirmação da sua abertura à comunicação com os espíritos já partidos].
Pouco nos importaria que não fosse um filósofo ou um pensador feito; e, no caso de o ser, que a sua filosofia ou o seu pensamento não agradasse ou satisfizesse por não corresponder às exigências históricas do nosso tempo. O importante seria que estivesse presente. Porque sendo ele, como era, isso sim, a filosofia em potência e o pensamento em acção, no sentido genésico, a seu lado ninguém permaneceria indiferente aos altos problemas da vida, pois era como poucos homens têm sido no Mundo - um grande agitador das almas.
A garra espiritual de Leonardo Coimbra sente-se nas gerações que formou. E se nenhum dos seus discípulos o seguiu o seu "criacionismo", mas antes o recorda com admiração e saudade, é porque ele foi o verdadeiro Mestre: formou inteligências, criou personalidades.
Era assim Leonardo Coimbra.
Que o seu espírito esteja presente, neste momento excepcional, em que o Mundo vai dar uma grande volta, no seio da História.»
Que a alegria, o amor e a graça divina brilhem em Leonardo Coimbra e Guilherme Filipe, e nos inspirem. Aum... |
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