domingo, 30 de outubro de 2022

Poesia espiritual, escrita num autocarro no Porto, no livro "Poesias", de João Vasconcelos e Sá, há já uns anos e agora transcrita..

Tendo estado a rever e a arrumar obras poéticas deparei-me no meio do livro póstumo de João Vasconcelos e Sá (1880-1944), Poesias, em duas páginas, dois frágeis ou incipientes poemas escritos por mim, deslocando-me de autocarro no Porto, já há uns anos largos, e resolvi fotografá-los, com os poemas de João Vasconcelos e Sá ao lado, estes tão claros e lúcidos, profundos e perfeitos, seja históricos ou intemporais, seja de amor ou  austeridade. E partilhá-los. Anote-se que as Poesias, editadas em 1959, foram prefaciadas por Maria de Carvalho, que biografa o distinto militar e monáruico, e pelo filho do celebrado autor do fado O Castanheiro e nunca mais e da canção Margarida vai à Fonte, da qual pode ouvir uma versão bem curiosa e antiga, 1908, e que ele escrevera em 1898, e assim viajar no tempo:  https://www.youtube.com/watch?v=dzoVItQHS8w

 

Por entre as ruas do Porto,

no meio dos transportes públicos,

senti, ó Deus que enfim 

era a Ti que eu queria,

que meu anseio apontava a ti.  

 

Sorri, quando debruçado na alma,

a Tua Presença serena senti.

Vinhas ao fim de longos anos

inesperado, calmo e feliz.

 

Meu ser, porém, do futuro interroga:

Quando tempo estarás Tu dentro de mim?

Sei que é o tempo luminoso do Natal

e que as austeridades abriram-Te caminho.

 

Sorvo o ar em golos interiores,

poderia este autocarro nunca mais parar,

que a minha alma estaria feliz

em sentir-te em mim pousar. 


Enfim, peço-te que veja tudo em Ti.

Calmo, sereno, a Tua luz derramando,

na voz sábia e justa, o claro propósito

de abrir e passar a visão da Verdade.  

 ******


Saberias correr pelos campos

cabelos ao vento,

Traçando mil pensamentos

num sorriso de contentamento?

 

Teu olhar doce e sereno

as ondulações agitadas acalmam.

Ó Tu que inspiras a minha alma

não deixes mais o meu ser.

 

Rasgões em todas as pessoas

ecoam suas dores e fomes.

Nossos corpos, um dia cinzas,

alimentarão a flor dum pessegueiro.

 

Contudo, tal como o sol circula nas veias

e nas faces brilha ora a aurora ora o poente

bom seria as nossas almas alagarem as cidades

deste oceano de Amor que nos une...

 

sábado, 29 de outubro de 2022

"Imortalidade. Ante a obra de Antero de Quental". Soneto de Gabriela Castelo Branco, 1924, no livro "Algo," prefaciado por Acácio Paiva.

                                    

 Arrumando livros menos importantes, encontrei alguns de poesia, que resolvi examinar e sentir os que mereceriam algum tipo de leitura ou mesmo transcrição. Folheando um dos em pior estado, intitulado Algo, li o prefácio do poeta (pseudónimo: Belmiro), jornalista e licenciado em farmácia Acácio Paiva, natural de Leiria (1864-1944), contendo palavras simpáticas e confessando modestamente que até se sente envergonhado, por a apresentar: «Não minha senhora: se um de nós precisa de guia, sou eu, trémulo, indeciso, quase no fim dum caminho aspérrimo, caindo aqui e além, e subindo a custo a última ladeira, com uma cruz de demasiado peso para os meus ombros. De amparo, necessito eu, e creio bem que, no caso presente, os papéis se inverteram: a leitura do seu livro logrou dar um pouco de vigor ao meu coração enfraquecido, como o sol aquece e vivifica os organismo depauperados, e assim eu é que me encontro na grata situação de favorecido, devendo a v. ex. o benefício de algumas horas espiritualmente consoladoras e a esperança de que muitas mais me concederá (...) . 

Uma fotografia de Gabriela, inserida numa apresentação do seu livro no Diário de Notícias, provavelmente por Acácio Paiva. De um blogue que não localizei agora; seguindo-se um dos seus sonetos alegres, críticos e ascensionais:

                                   

Agradecia ele então à novel poetisa, esfuziante no seu optimismo dos 20 anos, Maria Gabriela Castelo Branco, nascida portanto em 1905 e que se licenciaria em Letras e se tornaria escritora e jornalista, passando a assumir o nome  Gabriela Castelo Branco, e vindo a publicar, por exemplo, em 1954, Páginas de Jornalismo, em 1966 o livro de poemas Sinfonia, ou a dirigir o Jornal Távola Redonda, fundado em 1961.

                                     

Ora manuseando o livrinho, muito manchado de castanho na capa e com algumas páginas já com picos rosa-arroxeados da humidade infiltrada, deparei-me no índice final, entre os títulos dos poemas, um  que despertou a vontade de o examinar ou mesmo ler. É o oitavo a contar do fim, na página 81 e intitula-se Imortalidade, pelo que quis ver o que a levara a poetizar sob tal realidade misteriosa.

Ora abrindo a folha, leio de imediato IMORTALIDADE, ante a obra de Antero de Quental, seguindo-se o soneto que só agora a meio desta escrita vou ler, com o interesse também de ver como é que , antes da instauração da ditadura militar, em 1928, do Estado Novo e do Salazarismo, a juventude da República sentia e via Antero de Quental, poeta, filósofo, líder carismático,  e que embora há trinta anos anos tivesse partido abruptamente mas provavelmente com a consciência de que já cumprira a sua tarefa ou missão de vida, continuava ainda agora a inspirar almas poéticas, sensíveis, idealistas, esperançosas. Eis o soneto:

                              

«Espírito subtil, mas intrépido e forte,

Ardente como o sol e como ele imortal,

tu deste ao mundo luz e, repelindo o mal,

cantaste em alta voz o Bem, o Eterno, a Morte.

 

Com mão quente e febril formaste uma coorte

de altas filosofias dum estoicismo ideal;

e entre as tuas ideias desprezaste o real...

e esculpiste num cipo o fel da tua sorte.

 

Hoje falam de ti; e a amanhã falarão.

Tua obra não morreu, vive eterna no mundo,

a lembrar o Além, a lúcida Beleza.

 

Filho de Portugal!... de todos és irmão...

mas essa enorme dor, esse pranto fecundo,

... só podia vertê-lo uma alma portuguesa.»

Outubro, 1924

 O que deveremos realçar no belo e profundo soneto, muito transparente e sincero? A primeira quadra descreve magistralmente Antero, reconhecendo nele o "Espírito subtil", corajoso, resistente, flamejante e imortal como o sol, irradiando luz que dissipa as trevas da ignorância e do ódio, o mal animado ou inspirado pelo "Bem, o Eterno, a Morte."

Na segunda quadra, muito realisticamente, ela sente e realça a grande doação de Antero à filosofia e a escrita, passada a intensa época estudantil, e também  a uma vida sóbria e temperada, ainda que dormisse e comesse pouco, e nesse sentido Gabriela vê-o como seguindo o idealismo estóico, filosofia ou modo de vida que foi de muitos dos grandes seres e filósofos, nomeadamente os greco-romanos. Contudo Gabriela Castelo Branco considera que foi demais no mundo das ideias e no menosprezo da realidade, não se inserindo bem nela e logo vindo a esculpir tragicamente o seu nome na ara da sua morte e imortalidade. Apresenta-no-lo talvez mesmo como um companheiro de Jesus, quem sabe mesmo um Christhos, ungido, menor, pois como o arquétipo, o fel foi-lhe dado a beber também. 

O terceto inicial apresenta-nos Antero na eternidade merecida, mestre do Além porque o tentou compreender, e soube-o arrojadamente triunfar,  da lúcida Beleza, da consciência do que é verdadeiramente bom, belo e justo, que sempre animou Antero e que na sua obra tenta investigar ou então poetizar,

O terceto final marca a admiração por Antero enquanto símbolo da irmandade portuguesa, e como ela é fortificada pela passagem na dor, e pela expressão fecundante das lágrimas reais e poéticas e que caracterizam a grande alma portuguesa, fraterna, lúcida, amante do Bem e da Beleza e estoicamente avançando na demanda da verdade e da felicidade, da imortalidade e da Divindade.

Anote-se que Antero escreveu em jovem um texto carta intitulado Sentimento da imortalidade, e autonomizado, mostrando como ele jovem sentia tal possível e natural, e nos sonetos há alguns que, embora sem tal título expresso, abordam-no com sabedoria e esperança, por vezes algo impessoalmente, outras vezes acreditando numa imortalidade individual em corpo subtil ou espiritual, com o soneto "Com os Mortos"

Ao lermos a poesia de Gabriela Castelo Branco sentimos que há vários sonetos que são devedores de Antero de Quental, que ela certamente o leu e releu e no fundo poeticamente o comentou e o continuou. Seria uma anteriana ao longo da vida, os que privaram com ela, sentiram-no, souberam-no? Quem teriam sido as principais mulheres que deixaram poesia ou escrita, testemunhando o seu amor por Antero de Quental e a sua obra, complementando-o assim na polaridade amorosa e divina que lhe faltou e que elas de algum modo subtil eflúvios enviavam à sua alma?

Eis os dois sonetos que na obra se seguem ao consagrado a Antero, e muitos são belos e profundos, ainda que na leveza dos seus 20 anos, algo  anterianos, com um, Esperança, que parece ecoar  juvenil e femininamente um dos mais poderosos sonetos de Antero, Mors-Amor:


Muita luz e amor nas almas de Antero de Quental e Gabriela Castelo Branco, e também de Acácio Paiva. Possam eles dialogar mais próximos da íntima verdade e Divindade!             Lux, Amor!

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Oração pela escrita à Divindade e aos seus espíritos celestiais, para que a Cura e a Paz, a Luz e o Amor se generalizem mais...

Mãos que escrevem e traduzem, cartas e tratados, de sabedoria, lucidez, invectivas, orações: as de Erasmo, por Hans Holbein, filho.... Da sua autoria, publiquei O Modo de Orar a Deus, ainda disponível em alguns exemplares, tal como o Oração, de Bô Yin Râ. Leia, ore, labore!

Oração à Divindade realizada pela escrita, pois esta pode ser, ou tornar-se, uma invocação e concentração de energias e informações várias para que se faça mais luz, ou se movam as energias necessárias à realização do que pedimos ou oramos, ou para nos auto-consciencializarmos e religarmos mais espiritual e divinamente.

Reza-se  com diferentes intencionalidades, objectivos, fins, e em geral por dois meios: brotando da serenidade interior alcançada, ou brotando da intensidade do desejo, da dor, da aspiração, do fogo do coração com que ardemos quando a geramos...

- Ó meu Deus, ó Anjos, curai, harmonizai, inspirai (.... nome da pessoa por quem pedimos)

Importante será ainda vermos como que dos planos espirituais o ambiente  em que estamos e do que pedimos e logo o que a oração em si mesma atrai, já que ela é um acto mágico que liga os mundos e seres para certos objectivos, uma petição ou invocação de auxílios ou apoios para o que se visualiza como desejável para o bem de todos, de muitos ou de alguns.

Algures, lá em baixo, no meio dos biliões de auras emitindo formas de pensamento horizontais e mais ou menos pessoais e egoístas, alguém une as mãos e as suas polaridades e, feito um, apela e faz emergir da sua aura ora flechas ora uma corrente vertical ou em espiral de cores mais luminosas  em direcção ao plano Divino, ou à sua concepção da Divindade, ou aos seres intermediários do Universo espiritual, os tais mensageiros da Providência  Divina, mestres e anjos.

Pena é em geral a corrente gerada ser de pouca ou fraca intensidade e desvanecer-se rapidamente, com efeitos leves ou superficiais. Todavia, há quem consiga concentrar-se melhor e mais demoradamente e logo fazer com que as energias emanadas cheguem directamente aos seus destinos,  ou sejam vistas e acolhidas pelos seres mais activos nos mundos espirituais, que as redistribuem ou apoiam para gerar resultados.

Visualizar-se o que se peticiona, ou o destinatário das nossas preces e partículas-ondas de amor, ou os anjos e mestres a quem pedimos auxílio, ou mais simplesmente afirmarmos o "Faça-se a Vossa vontade" e entregando-nos confiantemente à Divindade ou à providente Anima Mundi, ou Panpsique, ou Ordem do Universo, ou Campo unificado de energia consciência informação, são então métodos ou janelas da oração. Também o uso das formas tradicionais das várias religiões, ou ainda de jaculatórias, ou pequenas orações, ou mesmo de mantras, sons sagrados, sentenças curtas e auto-iluminadoras,  podem ser valiosamente utilizados, cada pessoa devendo descobrir os que lhe dizem mais, ou ressoam, ou que gosta mais...

Mãos unindo e aspirando, orando e harmonizando, por Albrecht Dürer...

Se o corpo está sentado, ou se de pé, ou se assume posições ou movimentos, se de mão juntas ou no peito, ou na garganta ou testa, se abertas em cruz ou em estrela, e ligando mais a terra e o céu, cada um deve sentir por si, mas devemos ter presente que a voz e o som, sem se cair em exageros, podem certamente modular e animar o corpo e alma nas palavras e tons, ritmos e frequências que em si invocam,  irradiando as energias mais anímicas e espirituais e que nos harmonizam, intensificam e religam ao espírito, aos espíritos celestiais, e à Divindade e suas qualidades ou forças.

Esta utilização sagrada da voz intensifica o sentir, o sentimento, o coração, e este é um grande centro (chakra na tradição indiana) irradiador, embora uma fase importante da oração deverá ser depois o silêncio, mesmo que volta e meio se possam repetir mentalmente as orações e mantras para afastar dsitrações-preocupações, e assim se ir tornando meditação-contemplação-adoração-religação...

Nestes dias que correm tão agitados, tão manipulados, tão antidemocraticamente e anti-éticamente regidos e em que parece que o mundo dos valores e o mundo espiritual estão afastados da vida das sociedades contemporâneas, deveria haver mais pessoas, sós, em família ou em grupos, capazes de irradiarem energias poderosas de lucidez, de despertar, de religação Divina, para que mais pessoas deixem de estar tão manipulada e adormecida pelas lengas lengas televisivas e os slogans de domínio ou mesmo de guerra do império do dólar e do euro. 

Mas não é fácil haver pessoas que possam mesmo dirigir correntes de luz clarificadora e de abertura ao Logos (que é inteligência empática, razão justa e panpsiquismo divino) para todos e em especial para os políticos, pois pouca gente acredita que o poder do pensamento ou da oração possa penetrar barreiras por vezes pétreas de fanatismo, nacionalismo e ódio e que de facto  causam aos mais sensíveis desgosto ou repulsão só de pensarem ou visualizarem tais ineptos e corruptos políticos que tantos milhões de mortos, feridos e traumatizados têm causado no mundo...

Mesmo assim algumas das orações tradicionais, no todo ou em parte, tal como o "Venha a nós o vosso reino ou mundo espiritual", ou apenas mantras, tais como Pax, Om Shanti, Om mani padme hum, podem ser invocados, sentidos, desejados, orados, pronunciados, do sangue e do amor da aspiração revestidos e, como setas lançados para o cosmos subtil que cobre ou envolve-nos, na unidade consciencial que emaranha ou liga todas as individualidades e seres...

Certamente que há outras orações bem importantes para perseverarmos na sua irradiação nestes dias de tão importante luta para os destinos da Humanidade multipolar e fraterna e não escravizada aos detentores da banca e do imperialismo mundial, pois a vida continua e o agir localmente implica ajudarmos os que nos estão mais vizinho ou afins, nomeadamente quando  sofrem ou então bem aspiram. Então o apelo, poesia, petição deve brotar do coração forte e clamar, por exemplo, assim:

"Ó Divindade, ó Deus, ó seres e energias divinas que penetrais o Universo, olhai por esta pessoa em risco de morrer. 

Ó Anjos da cura, ó guias e mestres curadores olhai para essa alma a sofrer e para os que com ela se angustiam  e derramai bálsamos de cura e harmonia."

"Ó mestres e anjos, abençoai aquela pessoa ou grupo, para que estejam mais lúcidos e determinados"

Nestes momentos em que tantos milhares de seres sofrem física ou psiquicamente, devemos conseguir recolher-nos no nosso quarto, oratório, templo ou recanto  mágico da Natureza e aí desfechar as orações, apelos, mantras, como setas de aspiração a mais luz, justiça, paz, saúde e prosperidade nos seres e entre os povos, no mundo multipolar e mais justo, fraterno e dialogante que está dolorosamente a emergir, numa luta prometaica, crística, búdica...

"Ó Divindade interna e externa, em cada um de nós e em todos, que sejais mais reconhecida, sentida, orada, adorada, amada, emanada e compartilhada para o bem da Sabedoria e da Verdade e do maior número de seres possíveis, nomeadamente os que mais aspiram a ti ou os que mais sofrem injustamente..."

Possamos nós escrever com amor e sangue, aspiração e direcção justa, possa a nossa vida ser uma e una, na qual o "ora e labora" auto-consciente e perseverante, comunga ou gera mais luz, amor, felicidade, paz e religação à  Magna Terra, Gaia, aos mestres e anjos, ao divino Espírito, à Divindade...

Pax, Pax, Pax Terris....

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Celebrações do aniversário de Erasmo: tradução de partes de cartas suas valiosas, de 1534, por Pedro Teixeira da Mota

 Erasmo, num altar de lar lisboeta

                ERASMO, UM HOMEM PARA A ETERNIDADE

Festejando-se nestes dias de 27 ou 28 Outubro o aniversário de Erasmo, que nasceu entre 1464 e 1467 ( datas incertas), resolvemos celebrá-lo e comungar com o seu espírito traduzindo (do latim e francês) partes de algumas das  cartas escritas por ele nos dois últimos anos de vida pois, tal como entre nós as de Antero de Quental, emanam uma grande lucidez e ironia, sabedoria e amor, para além de serem testemunhos  valiosos tanto auto-biográficos como históricos sobre os seus contemporâneos e acontecimentos.

De Friburg onde viveu os últimos anos de vida, em 4 de Junho de 1534, escreve para o seu grande amigo Boniface Amerbach (1495-1562), que o visitara um mês antes:

Filho do famoso impressor Johannes Amerbach, bom amigo de Erasmo, doutorou-se em Direito em Avinhão e veio a ser um professor da Universidade de Basileia, muito próximo de Erasmo no posicionamento durante as lutas da Reforma, e vindo a ser o seu legatário. Numa pintura de Holbein, de quem foi um valioso protector quando os reformistas ou protestantes mais limitados e assanhados começaram a queimar pinturas e obras, algo que indignou muito também Erasmo.

«(...) Está a ser difícil a digerir  o modo como fui tratado por esse monstro de que te falei [o holandês Quirinus Hagius]. E cada dia ele ultrapassa-se. Suponho que ele tenha sido subornado por heréticos, para se insinuar na familiaridade doméstica,  com o intuito de descobrir todos os arcanos com os quais armado me fizesse perder. Cheguei ao  septuagésimo ano; um tal ataque nunca antes me acontecera, nem nunca  enfrentara um tal monstro . O remédio para ele é um exorcista. (...)» 

Estudos das mãos de Erasmo, por Hans Holbein, filho.

Uma semana depois, a 11 de Junho, para o seu amigo comerciante e banqueiro Erasmo Schets, volta a lamentar-se do comportamento do seu empregado (flamulus) Quirinus:

«Escreve quanto ao que se passa na Inglaterra. Não tenho presentemente ninguém de confiança para enviar. Quem  enviei duas vezes tratou-me tão impudentemente que eu jamais em vida fora afectado com semelhante tratamento ordinário. Estou habituado a monstros, mas com tal monstro nunca tinha colidido . Com toda a  evidência resolvera-se na sua petulância matar-me, sem respeito pela idade nem pela saúde, nem erudição, nem  méritos dos estudos, nem  costumes domésticos. De que antro saiu este  furioso desconheço. Não foi aqui que ele concebeu este ódio (jamais o lesei com uma palavra  e gostava dele singularmente) -mas trazia-o consigo, e ocultava-o. Sem saber acalentei uma víbora no meu seio. A sua improbidade infligiu no meu ânimo uma ferida mais grave do que cem livros de Lutero ou de Nicolas Herborn [frade franciscano, fanático contra Erasmo]. »

A 14 de Junho, noutra carta  a Bonifácio Amernach, queixa-se de novo de Quirino: «Ainda que não seja Cronos, também posso digerir esta pedra, embora este monstro deixasse aqui  ovos de víbora e para em breve  voltar à tragédia antiga. O que fazer com ele, que não tem pudor, nem juízo nem humanidade, resumindo: nada de humano. Ele  infectara a minha casa antes que eu suspeitasse algo dele. Passou-se mesmo com Carinus [um empregado]. Comia à minha mesa, tinha-o como  amigo e estava a alimentar um virulentíssimo crítico. Soube isto depois por Talesius [secretário e homem de confiança] contudo tardiamente,  tal como o pai de família em geral é o último a saber das desgraças da casa».

Gravura de Erasmo, oferecida por José V. de Pina Martins, notável humanista português.

     Numa nova carta a Erasme Schets, a de 30 de Julho de 1934, partilha o santo Erasmo, tal como Eça de Queirós chamou a Antero de Quental, "um génio que era um santo",  a sua confiança na Providência Divina: 

« Eu neste Estio fui de tal modo atacado pela minha doença que esperava pelo fim. Mas a visão de Deus não era essa. É o Senhor. Faça-se o que é bom aos seus próprios olhos. Se ele não me conceder melhor saúde, mesmo que se tratasse de uma viagem de dois dias, eu não ousaria acometer a partida com este pobre corpo. Durante três meses só um dia consegui sair de casa. Tenho porém alguns amigos não estúpidos na tua cidade que me aconselham a evitar os franciscanos.  O Imperador [Carlos V] atribui grande valor a este género de homens. Todavia o meu ânimo suspira pelo Brabante [sua região natal] e os monges não me impediriam [ao estarem contra a sua obra e contra ele], se a minha saúde fosse razoável.»

A carta dirigida a 31 de Julho ao helenista e médico Johannes Sinapius (1505-1560) é bastante valiosa pois mostra como no fim de uma vida de estudo, labor e erudição ao serviço da Igreja, ainda estava a ser atacado por frades de várias ordens : « (...) Saúda Manardius da minha parte e diz-lhe que estou agradecido pela amizade que me testemunha. Uma espécie de má sorte obriga-me a lutar contra muitas víboras; mas prefiro isto a ferir muitas pessoas com as minhas invectivas. Agora entre tantas apologias não há nenhuma invectiva de Erasmo. Não respondo porém a todos. Tenho estado calado em relação ao Vicente  e aos seus bufões dos Dominicanos, nomeadamente em relação ao dominicano Sichem, e a Scaliger, e a Nicolas Herbon, comissário franciscano para este lado dos montes. Vês aqui  uma notável monaquia [jogo com monarquia, mas de monges, monacos]. O último, Nicolas Herborn, violando o édito do Imperador, fez editar em Antuérpia pelos do seu rebanho dos sermões da Quaresma, tidos como pregados em Colónia, nos quais não há nem erudição, nem eloquência, nem julgamento, nem inteligência, nem a menor suspeita de piedade. Ele parece ter feito esta edição apenas para espalhar em litania as palavras de ordem dos Irmãos: "Erasmo é o pai de Lutero"; "Erasmo pôs os ovos, Lutero chocou os pintainhos"; "Lutero, Zwinglio, Ecolampádio e Erasmo são os soldados de de Pilatos, os que crucificaram Jesus". O Imperador [Carlos V] parece dar muito crédito a essas pessoas de que se servem para lançar a semente nos países recentemente descobertos. [Erasmo por vezes criticou os que iam converter os ditos infiéis sem se terem convertido, ou sem se tornarem fiéis do Amor divino antes]. 

Agostinho Steuco. Chegou a bispo, e a bibliotecário do Vaticano, e a sua obra De Perenni Philosophia, que o prof. Pina Martins possuiu,  é valiosa enquanto compilação erudita de temas mais profundos da espiritualidade nas religiões antigas e na igreja católica.

Nunca supus em Eugubino Steuco (1497-1548) tanta irreflexão juvenil. Adverti-o para ter cuidado, pois o seu carácter, truculento e orgulhoso, tinha necessidade de ser dirigido. Em resposta - a uma admoestação amigável, enviou-me uma carta cheia de mentiras evidentes, mas acrescentou um penso para as feridas;  foi como nos seus livros contra Lutero, falando da Alemanha e, depois de ter insistido na ferocidade inata em todo esse povo, na sua barbária habitual, na sua grosseria, etc.,  imagina que pôs um bálsamo sobre as chagas  quando, pretendendo que nada disse contra o povo, afirma ter sentimentos amistosos com o país. É uma impudência eminentemente monacal.

Ignoro o que aconteceu a Lutero. Sem jamais ter sido atacado por mim, mesmo que fosse por uma palavra, ele publicou uma carta tão loucamente furiosa  que ela desagrada mesmo aos que se inclinam para a sua seita, e ainda me ameaça com um julgamento contra mim. Serão necessárias mais palavras?»

Pietro Bembo (1470-1547), entrou na Igreja com o barrete cardinalício que o Papa Paulo III lhe ofereceu em 1539, tal como oferecera a Erasmo, que não aceitou porém. Antes Bembo fora homem de amor e de belas letras.

A carta ao grande sábio irenista  Pietro Bembo, escrita a 16 de Agosto de 1534, tem o condão de nos tocar mais pois é escrita para recomendar o nosso sábio e corajoso Damião de Goes (1502-1574), então com 32 anos, vendo-se bem nela o afecto que os unia, tanto mais que Damião vivera uns meses antes na casa de Erasmo, como seu confabulator, no fundo, um discípulo cardíaco, cultural e espiritual:

«A celebridade do teu nome e a tua grande gentileza para todos fazem com que ninguém  vai para a escola de Pádua sem desejar ser recomendado a ti. Entre eles encontra-se  Damião de Goes, um jovem de família nobre, que dedicou a parte mais brilhante  da sua vida tratando dos negócios do seu rei [D. João III], e que contudo ao mesmo tempo, roubava quanto podia do ócio para os seus estudos. É também Lusitano de nação, de carácter inato nada sórdido, de costumes candidíssimo. O seu rei ofereceu-lhe espontaneamente um cargo na corte, onde ele fora educado desde criança, a saber: ser o responsável do Tesouro. Mas ele preferiu guardar  um tesouro melhor no ânimo. Sob o meu aconselhamento,  escolheu a escola de Pádua como a mais brilhante de todas. De ti não pede qualquer serviço que tu não possas prestar sem incómodos, desses serviços que  não costumas  negar a ninguém. Aconselha-o na hospedagem tanto da casa  como da mesa para que ele possa eleger o melhor. Parece-me a melhor decisão, ter casa e mesa em comum com alguns nobres franceses ou alemães. Está de facto acostumado a uma vida elegante, ainda que  seja  sóbrio. Desejo-te uma saúde muito próspera.»

A Damião de Goes, confabulador de Erasmo, humanista e universalista, vítima dos pulhígrafos e esbirros da época mas espírito perene, muita Luz e Amor Divinos desejamos e invocamos, para que possa confabular nos mundos espirituais com Erasmo, Thomas More, Pico della Mirandola, Marsílio Ficino, Giordano Bruno, José V. de Pina Martins e Fernando Melo Moser, como ele vizinhos e elos da Hagia Sophia, a Santa Sabedoria Divina, e da Humanidade dotada de liberdade, amor e ligação divina, neste momento tão ameaçada pelo império do mal e a Nova Ordem Mundial, do Fórum Económico Mundial.. Que  eles nos inspirem na coragem e na religação espiritual e divina!
  

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

World: Russia thanks USA and European Union for all these years of sanctions against Iran, as now Russia and Iran become one.

 "A friend in need is a friend": Iran is turning into a strategic partner of Russia, let us say, a true soul's brother...
 

«On February 24, 2022, we woke up in a completely different reality than it was before, in the previous three-plus decades after the collapse of the USSR. The collective fuse went to war against us, many old "friends" turned their backs on us, but new ones appeared. With one foot in the rogue club, Russia has received extraordinary support from Iran and North Korea.
"Friend is known in trouble". "Os Amigos conhecem-se nas dificuldades"  

"Quem se esforça e demanda, é encontrado..." The person who really strives and search is discovered and blessed".


The fact that Tehran is behind the scenes rendered Moscow's help in creating its own unmanned tactical aircraft is simply stupid to deny. “Conclusions”, “speculations” and US intelligence data allow us to conclude that the Iranian militarytechnical assistance with UAVs, most likely, will not be limited.
It is highly likely that the Russian army will have to use Iranian ballistic missiles and guided bombs in the future due to the high consumption of ammunition during a special operation in Ukraine. It is simply impossible to get into the emergency reserve, the arsenals may still be needed for the war with the NATO bloc, therefore it is not worth refusing to purchase Iranian missiles and bombs.
In addition to the purely military-technical, Russia and Iran are rapidly deepening economic cooperation. The list of his directions is respectful. So, a few days ago, the managing director of the Iranian Gas Engineering and Development Company (IGEDC), Reza Noshadi, spoke about a deal to sell 40 powerful gas turbines:
85% of the equipment and facilities necessary for the functioning of the gas industry are produced in Iran. Therefore, Iran and Russia signed an export agreement to send 40 Iranian-made turbines to Russia.
Obviously, this is a direct consequence of Western sanctions against the Russian economy. Iran, which has been under restrictive measures for more than three decades, has managed to survive and carry out import substitution of critical technologies. Starting with the localization of components for existing Western equipment, Tehran has relied on R&D and the development of its own technologies. The Iranian MAPNA Group was established in 2013 from a power plant project management company, but has gone far beyond these competencies, also engaging in the development of oil and gas fields, onshore and offshore drilling services, the construction of processing plants, auxiliary facilities, engineering networks , storage tanks, design and manufacture of high-tech equipment, in particular, turbochargers for main pipelines, oil refineries and process units, as well as oil metering units. In 2017, the Islamic Republic became self-sufficient in the production of turbocompressor units used to pump natural gas.
There are discrepancies regarding the deal for the purchase of 40 gas turbines. Some sources indicate that these are power plants for pumping gas through new pipelines. Others write that these are turbines for new thermal power plants, which may be needed both for the development of energy in Russia and for the restoration of post-war Ukraine. We'll see.
The most interesting thing is that Iranian turbines could have ended up in the Russian Federation for a very long time. When that unpleasant story arose with German turbines for power plants in the Crimea, Moscow seriously considered the possibility of buying similar units from Iran, but it did not work out. Later, in 2019, the sanctioned company Technopromexport considered purchasing Iranian gas turbines for the Udarnaya thermal power plant in Taman, but even then the deal did not go through due to fears “what Princess Marya Aleksevna would say.”
By the fall of 2022, apparently, Moscow and Tehran had already stopped worrying about this. But not only drones and turbines marked the rapprochement between Russia and Iran.


Against the backdrop of Western sanctions, it was decided that domestic air carriers would be served in the Islamic Republic, which, over the years of isolation, managed to establish the production of components for American and European airliners. Iranian automakers are ready to supply engines and components for car assembly to Russia.
The Islamic Republic is now turning into our new strategic energy partner. Through the territory of Azerbaijan, Tehran will buy daily 9 million cubic meters of gas for its own needs and another 6 million cubic meters for resale to other countries. Last July, the National Iranian Oil Company (NIOC) and Gazprom signed an agreement on cooperation in the development of oil and gas infrastructure, including the construction of terminals for liquefied natural gas and gas pipelines, worth $40 billion. Negotiations are underway on the construction of two new units at the nuclear power plant in Bushehr by Rosatom specialists.
Iranian Ambassador to the Russian Federation Kazem Jalali said that Tehran is ready to become the main buyer of Russian grain:
Last year, I believe, we were in second place in our purchases in Russia. Next year we, I think, will be number one.
It is possible that in the future it is Iran that will be able to become the main logistics hub through which our hydrocarbons, fertilizers and grains will go for export bypassing the sanctions. In fact, Iran is now turning into the main strategic partner of the Kremlin.
Also of great interest to Russia may be the highway, rail and road, which should connect Iran, Iraq and Syria. Thanks to it, the Ministry of Defense of the Russian Federation will be able to supply the military group in the SAR, bypassing the willful Turkey, reducing the degree of Moscow's dependence on the "sultan".»

https://en.topcor.ru/28917-drug-poznaetsja-v-bede-iran-prevraschaetsja-v-strategicheskogo-partnera-rossii.

Livros (5º) sobre Sonhos. Wilhelm Stekel, Los suenos de los poetas. Apresentação comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                       

STEKEL, Wilhelm. Los Suenos de los Poetas. Buenos Aires, Ediciones Citerea, 1965. In-8º de 340 p. 

Obra escrita em 1912 por um famoso psicanalista, um dos primeiros e mais próximos associados de Freud (mas que mais tarde este repudiou não por discordâncias científicas mas de carácter), na qual Stekel analisa as vidas e obras de muitos pensadores e poetas famosos e os seus sonhos, tais como Baudelaire Thomas de Quincey, Byron, Flaubert, Wagner, Enrique Heine, Maupassant, Strindberg, Georg Christophe, transcreve e comentando ainda sonhos e opiniões sobre eles que amigos lhe contaram em resposta a um inquérito com seis perguntas que lhes enviou, e no capítulo final bastante mais extenso analisa os sonhos religiosos e homosexuais, compilados e comentados num diário pelo poeta Friederich Hebbel. 

Wilhelm Stekel, desde cedo se interessou por todo o tipo comportamentos, ou manifestações sexuais, ou que ele entendia terem tal origem, tendo aprendido com o sexologista Richard von Krafft-Ebing e outros da Universidade de Viena. Escreveu sobre onamismo, frigidez, homosexualidade, fetichismo (para alguns pacientes seria a religião do inconsciente), impotência e perversões, nomeadamente o sadismo e masoquismo, que considerava terem na sua essência a humilhação, práticas estas e sentimentos hoje muito aperfeiçoados pelos agentes da nova Ordem mundial opressiva que se pretende impor na humanidade. 

Discutíveis algumas interpretações e extrapolações, tal a que faz à extensa e famosa descrição de uma voz que Guy de Maupassant no seu livro Sur L'Eau, ouve (ou, melhor, imaginou para o livro) e que para ele era «a voz que grita sem fim na nossa alma (...) que nos critica por tudo o que fizemos e ao mesmo tempo não fizemos, a voz dos vagos remorsos, dos lamentos sem retorno dos tempos passados, das mulheres reencontradas que talvez pudéssemos ter amado, das coisas desaparecidas, das alegrias vãs, das esperanças mortas (...)», assim comentada por Wilhelm Stekel: «Esta voz da consciência, este eudaimonia [felicidade por se estar ligado ou habitado por um bom espírito] de Sócrates, é na maioria das vezes uma repetição dos mandamentos que os nossos pais nos inculcaram na infância. Esta voz aparece também ao ser humano no sonho. Implora, roga ameaça e admoesta. Há uma série de sonhos que constituem sonhos admoestadores. Quantas vezes quem sonha  escuta vozes que parecem adverti-lo e anunciar-lhe coisas de mundos distantes». Ora Steckel não discerne na voz íntima ou voz da consciência um eco ou fala do espírito, ou ainda a voz de entidades dos mundos subtis e espirituais, ou ainda mesmo, como Antero de Quental escreveu, a voz da Divindade imanente. Esta   aceitação de um transcendente-imanente, ou dos mestres e anjos, sempre faltou bastante à maioria dos psicanalistas, embora com Jung e Assaglioli isso tivesse sido em grande parte ultrapassado. 

Sócrates sendo inspirado pelo seu daimon ou anjo...

Bastante discutível foi também a sua ideia de que os sonhos de pessoas mais artistas ou criativas, tais os de Goethe, comparados com o de uma simples camponesa analfabeta,  não tinham grande diferenças, no fundo uniformizados num inconsciente libidinoso, reconhecendo contudo que os escritores e poetas deixaram sobre os seus sonhos muito material pioneiro em relação a Freud, tal como por exemplo Nietzche. Discutíveis algumas das suas teorias, mas que fazem parte da história da psicanálise, tais como as de Freud, enquanto florescências de uma visão exagerada da sexualidade, e que levaram mesmo Stekel, por exemplo, a considerar os médicos como desejosos sobretudo de ver o aspecto sexual dos pacientes. 

Ou ainda a visão tão sombria do inconsciente ou do umbral:«Também Baudelaire vê o seu próprio interior e retrodece espantado. Goethe mostra-nos isso na 2ª parte do Fausto. As figuras horríveis que nos desconrem os poetas, o Quasimodo de Vítor Hugo, Ricardo III, Franz Moor, Zanga de Grillparzer, Mohr de Fiesco, a conversão dos seres humanos em animais selvagens, nas fábulas, são projecções do inconsciente, são objectivações do animal que vive em nós e se aliemnta do nosso sangue e nos arrasta sempre para os abismos: a "besta humana"   A nossa civilização não é mais do que um delgado verniz. Ai de nós quando se abre uma brecha e irrompe a verdadeira [ou animal e terrena] natureza do homem! Estamos todos enfermos do passado. Não conseguimos superar o animal. A velha besta  continua aguçando os seus dentes no sonho e acomete as grades (barrotes) da alma; todo o mundo leva pelo mundo o seu aborto...»

S. Jorge e o dragão, ou alma ligada ao seu daimon, espírito ou anjo, controlando as pulsões semi-cegas, violentas ou desarmonizadoras do inconsciente. Gravura séc. XIX.

No prólogo do livro explicara contudo, com humildade científica, que não insiste muito na certeza das suas interpretações dos sonhos, pois há mais do que uma possibilidade de explicação do conteúdo onírico, e pensa que neles «é possível que   várias verdades coexistam harmoniosamente». E assumindo-se como médico psicanalista pioneiro dirá:«este livro representa um novo contributo para a psicologia do neurótico, ao expor o facto da sua incapacidade de levar a cabo a grande missão histórica para a qual se cria chamado. Devemos a Janet o descobrimento do que os neuróticos sofrem de sentimentos de imperfeição, quer dizer, de inferioridade. Esta concepção não corresponderia à lei da bipolaridade. O Neurótico sofre igualmente uma secreta mania de grandeza, a que chamei "a grande missão histórica". O surpreendente resultado de este livro reside na comprovação de que todos os poetas revelam, em seus sonhos, com maior ou menor claridade, a "grande missão histórica". 

Nascera em 1868, no império austro-húngaro  sendo de ascendência judaica, e suicidou-se em Londres, onde vivia nos anos finais, em 1940, com uma overdose de aspirina, pelas dores que sofria fisicamente. Esta sua obra teve bastante sucesso e anos mais tarde, em 1939, uma outra obra semelhante no tema dos sonhos dos poetas mas mais tingida de beleza e espiritualidade, já que via a pulsão onírica com bases fortes na aspiração à harmonia com a Natureza e à realização da unidade com o Ser  obteve também um bom sucesso. Era a obra A Alma romântica e o sonho: ensaio sobre o Romantismo alemão e a Poesia francesa de Albert Beguin, e que esperamos  apresentar e comentar um dia destes. 

                                  

Que ambos tenham conseguido elevar as suas almas a planos bem luminosos espirituais!

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Livros (4º) sobre Sonhos. Raymond de Becker, Les Songes. Apresentação comentada por Pedro Teixeira da Mota.

                                 

BECKER, Raymond de. LES SONGES. Paris, Grasset, 1958. In-8º 158 p. B.

Nesta obra  Raymond de Becker (1912-1969), um intelectual belga de grande inteligência e cultura, católico militante e participando em dezenas de grupos e revistas, amigo de Jacques Maritan e Hergé, teve uma bem complexa vida devido às suas orientações sexuais e sobretudo à colaboração com o social-nacionalismo da Alemanha quando este tomou conta da Bélgica, dirigindo então o jornal Soir, de 1941 a 1943, e repudiando-o já algo tardiamente pelo que recebeu mesmo a pena de morte, comutada em prisão de 1947 a 1951, instalando-se depois em Lausanne e Paris, onde terminou os seus dias suicidando-se, após uma viagem à Índia. Interessou-se pela temática ocultista e espiritual, sendo amigo de Carl G. Jung e Jacques Bergier tendo escrito este e outro  livro (já em 1965, bastante mais desenvolvido, Les machinations de la nuit) sobre os sonhos, baseando-se em conhecimentos científicos, psicológicos, psicanalíticos, literários, religiosos e tradicionais, transmitindo e até aprofundando alguns níveis deles com qualidade, e este ilustrando-o bem,

 A obra Les Songes tem uma valiosa introdução, na qual giza uma história abreviada do valor do sonho ao longo dos séculos, referindo por exemplo, as incubações, do séc. VI a. C. ao séc. VI d. C., nos santuários de Esculápio, ou já na época quase medieval, no séc. IX em Bizâncio, o tratado da Adivinhação dos Sonhos, do bem-aventurado Nicéforo, patriarca de Constantinopla, e segundo o qual, e com bastantes sentido, «as coisas futuras só podiam aparecer simbolicamente num sonho se fossem chamadas tanto pela oração como pelo domínio das paixões e apetites».

O Sonho de Polifilo, uma obra prima perene...

A obra foi dividida em cinco capítulos, estando o 1º Fontes do Sonho, dividido em quatro alíneas: excitações exteriores, orgânicas, psíquicas e extra-sensoriais. Se as duas primeiras são reconhecidas por todos, e a terceira se refere ao estudo psicanalítico do conteúdo (imagens mas também sensações dos outros órgãos dos sentidos) dos sonhos, já a distinção última  não seria tão evidente para alguns: são os originados nas capacidades das pessoas sentirem ou verem bem para além dos condicionalismos sensoriais do tempo e do espaço terreno ou, no caso de experiências quase-morte, de vivenciarem o que as rodeia física ou subtilmente com outra consciência que a de vigília, e tendo como suporte um outro nível. Algo que ele desenvolverá na quinta e última parte do livro.

No 2º capítulo O Sonho visto pelos Psicanalistas aborda os contributos de Freud e de Jung e como este ampliou e ultrapassou as limitações freudianas, nomeadamente  E no capítulo seguinte, o 3º, à pergunta A análise dos sonhos é assunto reservado a especialistas?, apresenta as atitudes dos psicanalistas,  aponta as regras fundamentais de auto-análise e interroga-se se pode-se dialogar com eles e dirigi-los; ora pela suas experiências de, por exemplo pensar antes de adormecer numa imagem de um sonho anterior, conclui que se a vontade é capaz de introduzir no sonho os temas que ela escolhe, eles são reenviados em geral num contexto imprevisto,  que modifica o sentido e atesta a actividade autónoma do inconsciente». Outro meio de diálogo que recomenda é ao acordar com um sonho, pensa-se nele e no que se quer compreender melhor e readormece-se com tal intenção. Cita ainda um dr. Graeter que considera que cada pessoa tem os seus símbolos pessoais mais eficazes para serem introduzidos e terem efeitos harmonizadores ou curativos. E que quando esteve preso e se dedicou mais à leitura da espiritualidade indiana, particularmente com «Sri Aurobindo que tomava à letra a teoria indiana da universalidade da alma  e concluía que sendo uma com tudo o que existe, todos os seres podem comunicar entre si pelo pensamento», resolvera antes de adormecer concentrar-se na fotografia, e pedir-lhe conselhos para a sua evolução espiritual, vindo a receber uma mensagem significativa por imagem de um disco dourado e uma voz». 

Sri Aurobindo.... Aum...

O 4º capítulo é bastante valioso pois intitulada Do Conteúdo simbólico dos sonhos, foi dividida em: 1ª parte O símbolo como transformador de energia, onde critica a fixação sexual de Freud nas várias explicações dadas quanto a sonhos de seres famosos, e onde valoriza nos símbolos, a sua função captadora dos instintos e da líbido, isto é, da energia psíquica indiferenciada, e como tal é importante para se manter a qualidade cultural dos povos. E uma 2ª parte Exemplos de grandes séries simbólicas: A) Paternal ou masculina (céu, sol, fogo), B) Maternal ou feminina (mar, terra, lua, noite, números pares, multidão), C) e D) Símbolos da alma do homem e da mulher, isto é, do espírito e da vida, e que devem ser harmonizados em cada ser, para que não vejam os outros seres através das suas projeções mas tal como eles são, e de modo a que a essas energias possam fortalecer ou «elaborar um tipo de  guia interior que os amadurece e os transforma nesses seres redondos imaginados por Platão e que não são que uma imagem da personalidade tendo desenvolvido todas as suas possibilidades».; E) Símbolos do Ser em si ou da totalidade, onde apresenta uma excelente visão do processo evolutivo, esforçado e difícil, e por isso certos sonhos pesados,  que vai gerando a individuação da pessoa completa a partir da coincidentia oppositorum, tais consciente-inconsciente, masculino-feminino, unificaçao dos contrários esta que se abre para o «Ser em si que é sempre uma função transcendente, e que se é provocado pela consciência na procura da totalidade, nunca é a sua obra. O Ser em si (Le Soi),[ou o Espírito, ou o Eu espiritual] integra a consciência numa espécie de consciência superior.» Menciona depois bem os principais símbolos do Ser em si, «rosa, roda círculo, estrela, sol, tesouro, jóia, diamante, ovo e criança», esta «exprimindo sempre o Ser em si em formação. a grande possibilidade unificadora do futuro. Mas quando esta possibilidade está já alcançada de algum modo, ela encontra a sua expressão privilegiada em figuras geométricas que Jung chamou mandalas porque elas constituem os temas sistemáticos da meditação».

Uma mandala ocidental, a távola redonda do santo Graal...

 Depois de referir os nomes de Stekel, Freud e Jung como observadores dos números nos sonhos (os pares femininos e os ímpares masculinos), e destacar como a melhor obra, a de Paneth: La Symbolique des nombres dans l'Inconscient, fala das cores, numa interpretação, parece-me algo, superficial: «o azul corresponde ao inconsciente, o vermelho à agressividade do sangue, à emoção, à vida, o amarelo à intuição, à iluminação, o verde à esperança, ao crescimento ao futuro ou devir, à relação justa com a natureza, o negro à morte, à culpabilidade, à matéria primeira, rejeitada e menos prezada e mas rica de potencialidades insuspeitadas», e terminará esta Quarta parte, com uma sábia e instrutiva visão: «Por vezes a consciência revolta-se diante os conteúdos do inconsciente. Mas na medida em que ela não se limita a ignorar ou a recalcá-las mas aceita a confrontação, discutindo num corpo a corpo, integrando o que é integrável, recusando o que sente não conseguir aceitar, a totalidade apesar de tudo constitui-se», e mesmo que ainda incompleta, sendo verdadeira.

A Quinta parte e última, Do Conteúdo Profético e Telepático dos Sonhos, não tem  talvez a qualidade que esperaríamos pois vai condicionar-se aos três problemas que eles conteriam: O seu conteúdo é o resultado duma criptomenésia (lembrança antiga)? Qual a sua implicação afectiva? Que intenção ele busca?, pois nem procura o espírito próprio, nem a acção de espíritos exteriores, que como nós já vimos noutro artigo é uma das hipóteses mais importantes para Bô Yin Râ. Citará as compreensões de Freud e de Jung sobre estes fenómenos que ambos reconheceram existirem, Jung realçando serem intuições e existirem aspectos afectivos a ligar as pessoas que conseguem entre si telepatizar, Freud remetendo a telepatia para ser o meio arcaico original dos indivíduos se compreenderem e que fora preterida na evolução pela percepção sensorial dos sinais sonoros. Mencionará por fim Jan Ehrenwald, Jule Eisenbud, Emilio Servadio e Nandor Favor como os melhores estudiosos dos aspectos telepáticos nos sonhos, que ele contudo na sua experiência sente não serem tão devedores de aspectos afectivos, pois cartas importantes que lhe são enviadas, vê-as chegarem uns dias antes não havendo aspectos afectivos em causa...
Quanto aos aspectos extra-sensoriais dos sonhos pensa que um sonho  desse jaez
«testemunha uma função prospectiva. Ele parte à procura do futuro e na medida da nossa sensibilidade ao inconsciente, cria-a», mas não a limita ao futuro, pois estudando as experiências oníricas de Dunne, considera que há também incursões ao passado, ambas estando incluídas no que Jung chamou «a realidade transpsíquica que é o fundamento imediato da psique.»

Bibliografia sumária...

                                                         
          A última ilustração que coroa a obra é a Alegoria do Sonho, de
Giorgione, numa gravura quinhentista de Marcontoni Raimondi, bem reflectora dos  mistérios dos seres e mundos: