quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Conto espiritual: Dos eremitas solitários e dos seres unidos amorosamente.

  Escrito em Junho de 1998 e melhorado e finalizado em 1-II-2024.

Fora um eremita no mundo, embora pouca gente se desse conta pois  nada exteriormente o denunciava; mas  era-o interiormente na  forte valorização da religação espiritual e porque a vida social estava reduzida ao mínimo necessário e justo e pouco o afectava ou influenciava. O mais importante para si era mesmo o sentir interior, a liberdade de pensamento, as suas leituras e escritas, práticas e orações, meditações e contemplações, e o ajudar natural.
O
azul do céu não era só o atmosférico que apreciava pois também interiormente o recebia, com gratidão, nas suas meditações, e aprendera ainda a unir-se  com o verde das árvores e arbustos, o cinzento dos penedos de granito e o castanho da terra humilde e discreta que amava e com a qual se envolvia periodicamente em subidas e nascer do sol, peregrinações e comunhões nas faldas do Marão, da Estrela e do Gerês.

                                        

Cavara terras, ensinara almas, apontara caminhos, rasgara regos, semeara palavras e ideias e abrira sulcos para o céu. Mas as contas subitamente saíram-lhe ao contrário pois quando menos esperava um anjo sob a forma humana viera-lhe ao encontro e a sua vida solitária parecia estar terminada
Diga-se pois que o anjo era uma mulher, com todas as suas características femininas e pessoais e portanto não já era apenas inspiração ou subtil visão a agraciarem-no e a conviverem com ele mas um outro corpo, personalidade, alma e espírito.
Lentamente teve de aprender a deixar-se ser beijado, tal como as dunas pelo vento e a responder na mesma linguagem. E as partículas de areia que voavam e se depositavam na praia eram como as palavras doces que transmitia ou no seu peito se aninhavam e iam alterando a sua paisagem anímica, agora mais horizontal e humanizada.
Natural da província a viver em Lisboa não era, mas um sonho tinha ainda, o de regressar à terra, à pureza primordial na qual o humano encontra, e está mais sensível, os sinais divinos na harmonias da Natureza. Mas dizia-lhe ela que o trabalho a dois era o mais importante e que o cultivar a terra absorveria muito do tempo necessário para o que eles deveriam desenvolver...
Por vezes um espaço entre os dois abria-se ou criava-se, ora evaporado nos abraços de grande fusão e em que os êxtases do coração podiam surgir, ora algo alargado nos encontros com outras pessoas, que assim entravam de algum modo na relação espiritual, afectiva e unitiva, ora beneficiando do ambiente ora ondulando-o.
Era evidente que a fluidez dos sentidos e sentimentos se erguia forte sobre os escombros das antigas regras solitárias, dos ermos, dos conceitos, das orações. E quando tal comunicação amorosa irrompia mais, gerava-se o desvio das energias ascendentes em direcção ao corpo e alma femininos, o que provocava uma diminuição da consciência meditativa e adorativa ascética metódica e regular, como estava habituado quando vivia sozinho.
Era o tempo de leitura a diminuir, era uma estranha dualidade entre a liberdade e a unidade, entre o solitário e a companhia, com a necessária co-responsabilidade a vigorar mais.
Paulatinamente, ao estilo do final de uma audiência, algumas pessoas das mais amigas e amadas retiravam-se perante a associação nova e tão absorvente e o minguar comunicativo do amor, agora partilhado sobretudo na amiga e amada, o que gerava uma certa frustração, embora aceite como uma poda da distribuição da seiva no tronco da vide.
As forças naturais comunicativas das realizações e riquezas anímicas desenvolvidas ou ganhas eram assim limitadas, sacrificadas. Era como se o arquétipo da união das águas do amar e do mar, das costas e dos litorais, dos montes e dos vales, da terra e das estrelas do céu, se concentrasse só num homem e numa mulher, a sós, quando outros também deveriam entrar nessa obra alquímica mais directamente, embora certamente algo emanava deles para as outras pessoas, mesmo quando estavam dias e dias sem ver ninguém.
Despontavam, assim, algumas interrogações dos subtis sonhos que se erguiam e duma certa insatisfação interior que se formava. Provinha ela contudo de quem? De si mesmo ou da sua personalidade, ou realmente porque outra era sua natureza e missão, e logo afectividade?
Rasgar este interrogador dilema, afastar as nuvens que como um véu cobriam o sol tornava-se imperioso, e assim teria de discernir se estava unificado no que sentia e queria, ou se era apenas um campo de luta de múltiplos desejos e aspirações. compreender e assumir se o mais importante era o despertar e ser espiritual, ou o amar, o estar e relacionar-se amorosamente. Era um ponto quente, ainda não bem assente, controverso: egoísmo e eremitismo ou dádiva e partilha, uma unidade a dois?
Todavia, assim como as páginas do livro ou do breviário se podem tornar cansativas ou repetitivas, assim a relação adquiria alguns desses aspectos criadores de insuspeitadas frustações ou limitações: a obrigação de amar, a culpabilização de não amar tanto, uma aspiração universal geral mais do que particularizada do amor.
Diz-se que a paz só chega após o sofrimento. Ou que os olhos só se cerram quando verdadeiramente cansados. Ou que é preciso morrer para renascer. Caía a noite e cada um regressava a si mesmo após as escritas, meditações e uniões realizadas mais ou menos plenamente.
Sobre a alma passavam as questões e tensões e o futuro era como um mistério fechado ou dificílimo de se abrir ou ver claramente. Só podia orar para ser inspirado, fechar os olhos e entrar no mundo subtil, movimentado e enigmático dos sonhos, onde entramos todas as noites sem nunca sabermos até onde iremos e que indicações ou intuições acolheremos.
Foi então que acordou e viu que tudo fora um sonho, e ali estava ele sozinho na sua mansarda lisboeta, com as andorinhas a chilrearem e a pedirem-lhe que lhes assobiasse, que com elas comunicasse com simpatia ou alegria. Calmamente, alinhou o corpo e alma, fez umas breves orações e, após ter-se espreguiçado, levantou-se do seu leito, e orou na posição do pentagrama e invocando as bênçãos do Alto e do íntimo: «Irradiarei mais o fogo do Amor, olharei o futuro com optimismo, unir-me-ei com o espírito ígneo que é a minha essência, que eu sou,  comungarei com os seres no Dharma ou Dever-Ordem que nos compete pelo Bem da Humanidade e a religação maior à Divindade.» E após meditar-orar, avançou pela aurora e novo dia a dentro...

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