Nos Testemunhos dos seus Contemporâneos, de Leonardo Coimbra, após o contributo de Eudoro de Sousa encontramos o 21º, de António dos Santos Graça (1882-1956), um notável etnógrafo e jornalista poveiro, intitulado Leonardo Coimbra, professor do Liceu da Pova do Varzim, que narra essa fase da vida de Leonardo, de 1912 a 1913, com pormenores emocionantes e que bem patenteiam a força anímica luminosa do grande orador e pedagogo. Foi o caso de ao ser nomeado para professor do liceu, o que gerou receios dos mais conservadores, entre os quais o médico Caetano de Oliveira, que pedira a Santos Graça que tentasse evitar a entrada desse perigoso "anarquista e destruidor de crenças" no meio calminho ou conservador da Póvoa. Nada de mais ilusória tal fama e a breve trecho Leonardo tornara-se querido de toda a gens poveira, sobretudo após um discurso no Teatro Garrett, com fins de beneficência, em que «a cada momento a plateia levantava-se num aplauso entusiástico, jamais visto na terra.»
Dirá ainda este notável etnógrafo dos barcos (e sua simbólica) e pescadores da Póvoa do Varzim: «Como professor, teve sempre a estima e a mais alta consideração pelos alunos. A Bondade era uma das pautas do seu carácter e onde se mostrava realmente uma pessoa superior. O cuidado pelos humildes e desvalidos enchia-lhe a alma. (...) Era, sem dúvida, um amigo dedicado ao seu amigo. Alma aberta e leal, que ao abandonar a nossa terra deixou em todos nós, em cada poveiro, um amigo que muito lhe queria.
Não admira, pois, que a sua morte dramática e brutal caísse nessa terra poveira como um raio que fulminou os nossos corações, já cheios de saudade pelo Mestre querido da nossa juventude.»
O 22º contributo, enviado de S. Paulo, em Junho de 1948, do jornalista Paulo de Castro, pseudónimo de Francisco de Barros Capachuz (1911-1993), notável democrata e lutador anti-fascista em Portugal e no estrangeiro, preso e deportado por mais de uma vez, e exilado no Brasil desde 1946, sob o título de Evocação, consegue fazer sentir a genialidade desafiante, desconcertante e trágica de Leonardo. Todo o artigo é valioso, e é com dificuldade que seleccionamos: «(...) Ia caminhando até à avenida dos Aliados, depois até um café onde ficava na companhia de seus alunos e alguns operários, vindos para o interrogar, contrariar ou agradecer um pouco da espiritualidade que se desprendia do seu diálogo ágil e encantador.
Leonardo Coimbra foi um desses homens a quem vulgarmente se chama de temperamento trágico. Ele imprimia a tudo o que o rodeava um sentido de transcendente inquietação, de nervosismo visceral, de pânico metafísico. Foi como Antero, um homem de tipo faustico, mas enquanto o primeiro conseguiu atingir uma serenidade aparente ou real e certa inteligibilidade convivente e especulativa, Leonardo Coimbra foi durante toda a vida um homem desconcertante e perturbador, um caso específico de inclassificação do ponto de vista humano e até filosófico (Nota: Numa página admirável da Luta pela Imortalidade, ele responde indirectamente aos que o acusavam de bergsonista).
O mais competente dos seus biógrafos, Sant'Anna Dionísio, descreve-o como homem alternadamente idílico e agitado, por certos ângulos amorável, por outros, satânico, em certos momentos tocado de angústia religiosa, em outros impelido por desalinhos arbitrários, ora místico, ora naturalista - e possuindo apenas esta característica constante: a curiosidade de saber.
Uma outra constante de seue spírito que impora pôr e relevo, se o quiseremos considerar na sua totalidade, é o amor entranhado, diríamos quase totémico, ao círculo da sua afectividade, compreendendo a família, os amigos e os discípulos. (...)
Leonardo Coimbra não era um homem de adesão definitiva a nada, exceptuando o seu mundo afectivo. O discurso que pronunciou no teatro S. Carlos em que fora previamente entendido que seria de adesão, quase finalizou em escândalo, pois, ao atacar o bolcehvismo, como sistema totalitário, ele atacou igualmente o nazismo e o fascismo e todas as formas e pretextos de esmagamento da pessoa humana. Terminou citando uma profecia de Gogol tão surpreendentemente herética para um auditório tão ortodoxo, que o público emudeceu de espanto.
Assim foi Leonardo Coimbra até ao fim, um semeador de perplexidades, um catalizador de cultura, um homem seduzido pela multiplicidade dos caminhos mais propícios à problemática do que à conclusão.
Longe de nós esboçá-lo como um cidadão exemplar à maneira de Antero ou de Raul Proença (...) Em Leonardo Coimbra há também humildade, quando longe de tudo o que lhe inspirava intuito de combate tinha momentos de elevada compreensão, de afectividade, de lirismo e de veemente exortação às melhores virtualidades humanas.»
O testemunho de Paulo de Castro, que vale ainda por ser o de um anti-fascista que admirava muito Leonardo, foi concluído assim: «Mesmo quando a nossa interpretação seja diferente da sua, há uma essência que nos transmitiu, e que conservaremos como mensagem de um dos espíritos mais complexos, brilhantes e inquietos que nos foram dado a conhecer». S. Paulo (Brasil) Junho de 1948.
Já o 23º é um profundo estudo acerca de Leonardo Coimbra e a política do seu tempo, já que a autoria é de um dos seus principais discípulos, Álvaro Ribeiro (1905-1981) e que, embora portuense, por Lisboa impulsionaria a chamada Escola da Filosofia Portuguesa, congraçando à sua volta a segunda geração de admiradores e estudiosos de Leonardo e que muito escreveriam posteriormente. Traça a evolução social e psico-filosófica, desde os tempos em que o estudante Leonardo Coimbra aparecia nos comícios a fazer discursos incompreensíveis, de corpo varonil, gravata à Lavalliere, «um revolucionário do grupo mais temível, proferindo tolstoianas palavras de esperança e amor», e narra como, já bastante depois da proclamação da República, em que passara de anarca ("os avançados") a republicano, alguém o acusara, num comício eleitoral em que ele criticara os extremismos, de já ter sido anarquista, Leonardo replicara magnificamente: «- Sim, senhor. Também mamei, também gatinhei, mas, palavra de honra, não fiquei toda a vida a andar a quatro patas. E agora que tenho os braços livres para os erguer em prece, dou graças a Deus por me ter feito à sua imagem e semelhança».
Perante a crise ideológica da I República, com os políticos incapazes em aplicar os princípios e programas, Leonardo expõe e desenvolve «uma doutrina democratista, um pensamento político original e autónomo, que inteiramente se distingue do republicanismo dos seus contemporâneos e compartidários. Raras vezes se prestou a devida justiça à iniciativa isolada deste doutrinador».
Comentando a passagem "rápida e fulgurante" de Leonardo como ministro da Instrução Publica em 1919 e 1923, e a sua luta contra todas as forças da oposição, o que gerou a Questão Universitária e «que proferisse na Câmara de Deputados a sua obra prima de eloquência parlamentar» considera, e é sempre uma lição para nós este "morrer para renascer", que «Leonardo Coimbra perdeu a questão universitária. Nem a Faculdade de Letras foi transferida de Coimbra para o Porto, nem foi dada execução à reforma de estudos filosóficos. A cidade do Porto, berço do Infante D. Henrique, obteve, porém, um benefício para a sua Universidade: a existência de uma Faculdade de Letras, de que Leonardo Coimbra foi mestre, ou melhor, grão mestre. Leonardo Coimbra teve de passar pelo ministério para chegar ao magistério, e para reconhecer que a escala de valores consentida pelos políticos seus contemporâneos estava na razão inversa da ordem tradicional.»
Aluno directo de Leonardo, Álvaro Ribeiro saberá descrever bem a originalidade do funcionamento da Faculdade de Letras e o magistério de Leonardo. E embora não mencionando os aspectos tão valiosos da sua doutrinação juvenil anarquista, fraternalista, republicana, espiritualista, que se manifestaram em tantos artigos na Nova Silva e na A Águia, sem dúvida que o resumirá bem, ainda que com algum acanhamento da sua universalidade, no último parágrafo da sua comunicação:
«A experiência política de Leonardo que fim do pessimismo anarquista ao misticismo cristão, mediante um democratismo original e singular, não seguiu uma carreira rectilínea, desenhada pela vontade estóica na cidade cosmopolita e geométrica; mais se assemelha a uma curva descrita pela ansiosa procura da equação entre o amor humano e o amor divino. Na ordem da eticidade, todos os actos políticos de Leonardo Coimbra exprimem a mais elevada intenção do filósofo, sem quebra de coerência, sem mancha de oportunismos, embora numa linha de públicos insucessos e de privados desgostos.»
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Leonardo Coimbra, por Eduardo Malta. Pintura que era de Sant'Anna Dionísio.
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Do 24º contributo, Duas palavras simples, memórias dum seu aluno num trimestre no liceu da Póvoa de Varzim, no ano de 1913, o poveiro professor primário Eduardo Dias Ribeiro Padrão, e que desencarnou em 1956, destacaremos a bem realista fotografia de Leonardo em acção: «Era Leonardo Coimbra uma figura simpática e risonha. Todos nós gostávamos dele e das lições que nos dava.
Sempre que ele realizava conferências, a sua eloquência arrebatava o público que acorria para o ouvir. As mulheres, sobretudo, comoviam-se com a sua palavra ardente, sempre tocada da mais pura poesia. Era para elas um ídolo.
Tive uma irmã (com que saudades a evoco!) que algumas vezes o ouviu; e entusiasmava-se, - mais do que por isso, transfigurava-se - quando se referia a este Homem extraordinário que possuía o dom da palavra, sempre eloquente, substancial e burilada no melhor ouro da língua portuguesa. (...) Ficou-me sempre gravada no espírito a sua figura inconfundível, em cujo todo se adivinhavam as crepitações do génio. (...) Morreu como um justo. Aproximando-se de Deus, na hora imprevisível do seu trágico fim, mais se engrandeceu aos nossos olhos. Até nisso foi grande e dramática a sua existência».
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Leonardo Coimbra pouco antes de partir para os mundos espirituais, precocemente e por isso deixando alguma perturbação e saudade nos seus amigos mais próximos.
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O testemunho 25º é do Manuel Couto Viana, e intitula-se Já lá vão quarenta anos, e narra o impacto e influência exercidos por Leonardo Coimbra num grupo de estudantes e amigos, que s e reuniam no café Central, na praça D. Pedro IV, no Porto, pois ele «aparecia frequentemente lá, discutindo e persuadindo com o seu verbo fácil e profundo, atraindo pela simpatia pessoal que de si irradiava e pela bondade com que acolhia todos os que dele se aproximavam (...) Trazíamos debaixo do braço, a alardear cultura, A Força e a Matéria, de Büchner, e A Origem das Espécies [de Darwin], mas não tínhamos coragem nem pachorra para demorar os olhos no recheio dessa e doutras brochuras, compradas no Lelo, onde amiudadamente entravamos a vasculhar os escaparates. Líamos sim, avidamente Hugo, Zola, Tolstoi, Gorki e creio que já nessa altura Dostoievski, cujos dramas sociais, por eles tratados nos seus romances, nos emocionavam até às lágrimas e geravam em nós a maior revolta contra a sociedade burguesa.» Narra ainda o grupo Os Amigos do A.B.C, que «tratava de iniciar operários no conhecimento das primeiras letras e de lhes formar o cérebro na doutrina anarquista - então familiarmente designada, entre nós, pela palavra "Ideia"», quem sabe com que forças ligadas ao ideário e poética de Antero de Quental. Mas explicará:«Não éramos contudo, apologistas da acção directa, porque o não era também Leonardo Coimbra. Nunca ouvimos da sua boca uma palavra de incitamento à violência ou uma expressão de ódio. Nas conferências em que combatia o Positivismo, contra o qual vigorosamente se insurgia, nunca ouvi Leonardo Coimbra descer à injúria ou ao ataque pessoal. Tudo tratava no campo elevado das ideias, apesar da sua obsessão, que era, por essa altura, a de arrazar o credo positivista (...)
O certo é que no Porto universitário dessa época, de febris preocupações políticas, avultava a sua figura, a despeito dos que o detestavam ou malsinavam - sem se atreverem a enfrentá-lo ou a medir com ele forças no plano da cultura. Leonardo Coimbra era efectivamente já alguém por essa altura de 1908», ou seja, no fulgor dos seus 25 anos.