domingo, 20 de dezembro de 2020

"O Rosto e a Obra", 4ª parte da entrevista a Pedro Teixeira da Mota por António Paiva.

Avançamos para a quarta parte da entrevista contida no livro "O Rosto e a Obra,  12 entrevistas pelo António Paiva", editado pela Espiral.....
 
António Paiva. – Achas portanto, que as pessoas normais no mundo, que não estão demasiado envolvidas nas suas religiões, cada vez menos crêem nas doutrinas, livros e mesmo nos profetas e filhos de Deus?

Pedro Teixeira da Mota - Sim, as pessoas mais evoluídas, com a consciência já mais desperta, expandida, tendendo ao universal ou também à não-dualidade, ao darem-se conta de tantas limitações e barbaridades feitas em nome de religiões começam a tentar aprofundar outras formas de religação consigo próprias e os outros, com seu espírito, com a Ordem do Universo, com a Divindade, sem estarem dependentes de tantos intermediários desequilibrados ou impuros, seja em livros, pessoas ou concepções e ritos...                                   Podemos pois considerar que mestres, movimentos e grupos espirituais, no seu melhor, têm aprofundado as metodologias de auto-conhecimento e os modos de viver e de se ter uma alma harmoniosa, mais apta à religação com o espírito e com o Divino e que já não estão tão dependentes dos mitos e crenças do passado, de cultos e rituais ligados com tradições ultrapassadas e saudosismos inférteis, ameaças e promessas dualistas e radicais.

AP - Não haverá perigos de as pessoas ficarem numa terra de ninguém e poderem logo ser exploradas por gurus e grupos manipuladores, e acabarem por ficar pior de que quando eram meras ovelhas e carneiros?

PTM - Sim. Esta modernidade de abertura plena a todas as doutrinas, vias e técnicas, e já pouco submetida a dogmas, pode gerar muita mistificação e basta olharmos para muitos ensinamentos transmitidos por “canalizadores” ou médiuns, frequentemente ditos como provindo de anjos, de mestres ascensos, de seres extraterrestres mas que no fundo são bastante mais incursões no inconsciente do que leram ou ouviram, ou então fragmentos que entidades invisíveis lhes transmitem, explorando-os a certos níveis.                           Casos típicos deste tipo de nova Era libertadora superficializante e mistificadora, encontramos nos livros de Neale Donald Walsh, que clama mesmo ser directamente de Deus que recebe, embora numa linguagem tão corriqueira como tendenciosa, em Silvya Brown que dava mensagens do Anjo da Guarda da pessoa por uns tantos (não pouco) dólares ou ainda nos que canalizam uma entidade Kryon, para não falar de outros "canalizadores e decretadores", frequentemente evocando os mestres e mestras ascensos, que Elizabeth Claire Prophet reinventou a partir dos já mitificados mestres que teriam estado em contacto na Índia com Helena P. Blavatsky, uma ocultista também algo mistificadora em certos aspectos, mas que continua a ter os seus fervorosos seguidores apesar de terem sido expostas algumas das suas menos correctas afirmações, autorias e metodologias, entre outros, por Vsevolod S. Solovyov e Réne Guénon, este com o seu Le Theosophisme, histoire d'une pseudo-religion, de 1921, tal como já fizera com o Espiritismo. 
       René Guénon, um crítico da quantidade que mata a qualidade, e das contra-iniciações...
Uma patranhice de reinvenções celestiais foi a lançada pelo francês que se drapejou com o nome de Haziel, com os seus anjos kabalistas, e que tanto alastrou no movimento da nova Era e no Brasil, e em autoras como Doreen Virtue (que depois se veio a arrepender e a renegar esse passado de nova  Era, convertendo-se a Jesus), ou na brasileira Monica Buonfiglio, e que ainda hoje é seguida por muita gente convencida que cada dia do ano é regido por um Anjo, a quem se pode dar ordens, e que quem nasce nesse dia o tem como o seu Anjo da Guarda. Embora passando por tais patranhas, a sociedade livre e dialogante acabava frequentemente por abrir os olhos e ajudar tais pessoas a saírem dos enredos e a evoluírem, pelo que nos anos 80 era frondosa e esperançosa a miragem da nova Era, com tantos “seres luminosos” activos, tantos seminários e, colóquios, tantas comunidades fermentando, tantas profecias de datas fabulosas acontecendo.                                             Todavia, as constantes crises que foram sendo lançadas pelo sistema mundial financeiro e político imperialista, dirigente e opressor, acabaram por diminuir os rendimentos da classe média, e as possibilidades de despertar e de interessarem-se mais por uma vivência harmoniosa e plena na vida em todas as suas dimensões. Por outro lado as propostas e práticas não deram muito resultados bons e visíveis, dada a proporção elevada de instrutores pouco desenvolvidos ou apenas sérios em muitos grupos esotéricos, de curas, de magias, de teurgias, de kabalas, de gnoses, de templários ou mesmo de seitas mais radicais e perigosas que volta e meia vieram ao conhecimento do grande público por motivos trágicos.                                        A última gota de água ou, se quisermos, um tsunami, está a ser o misterioso Corona de 2020, algo mortífero e que, gerido por forças opressivas e políticos frequentemente ineptos ou vendidos, está a enfraquecer bastante a convivialidade humana, as economias médias e muita da actividade ligada à cultura, aumentando fortemente as formas de controle, repressão e escravatura da humanidade.                                       A nova Era grandiosa que se prevera para 2000, 2005, 2011, 2015 e 2020 aparece afinal como uma nova Era orweliana, nada utópica, nada espiritual e por isso mesmo apelando à nossa luta vitoriosa, através do trabalho interior e de redes ou grupos activos.

António Paiva – Mas, apesar de tudo, não és opositor das movimentações de New Age e admites aspectos fascinantes?

Pedro Teixeira da Mota – Fascinantes não será expressão que use. Mas considero que o New Age, no seu início e nos melhores aspectos, enquanto movimento anti-mecanicista, holístico e espiritualizante de busca universal do conhecimento pode considerar-se ter raízes históricas na época do sincretismo hermetizante de Alexandria e no Renascimento e Humanismo dos séc. XV e XVI, com as suas vertentes de reunião das várias tradições (a Philosophia Perenis ou Prisca Theologia), e de valorização do estudo, da palavra e dignidade humana, tão presentes em Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, de tal modo que a tradução da obra completa de Platão para o latim em 1487 foi considerada como abrindo uma nova Era para o Ocidente. 
                   Marsilio Ficino, o pioneiro tradutor de Platão, Plotino e dos textos Herméticos
Tais tendências e aspirações estão presentes nos rosacruzes ou rosicrucianos do séc. XVII, e no magnetismo, ocultismo, espiritismo, teosofia e vinda de mestres indianos para o Ocidente, no séc. XIX, começa a desabrochar nos anos trinta e quarenta do séc. XX, com a física moderna, e um relacionamento maior da ciência, da filosofia e da espiritualidade, com bons pensadores e mestres a fomentarem uma busca intensa de mais conhecimento sobre a consciência e a mente, a alma e o espírito. 
Nos anos 70 e 80 tal floresce em numerosos grupos, institutos e eco-comunidades, tal como Auroville, Findhorn e La Borie Noble, de Lanza del Vasto ou, mais recentemente, Taizé, e infinitos eventos, como o festival Le Monde que nous Choisissons, em 1983, na Bélgica, onde estive, entre muitos outros com valor que se realizaram nos mais diferentes domínios de procura e experimentação de uma visão e paradigma mais holístico da inter-relação da ciência, da filosofia e da religião ou espiritualidade. 
   Lanza del Vasto. discípulo de Gandhi e Vinoba. A sua Peregrinação às Fontes está traduzida.
Portanto, nos seus melhores representantes é a continuidade ou o afloramento do dinamismo ao longo dos séculos de indivíduos e grupos dentro da igrejas, das várias religiões e movimentos, ou simplesmente dos meios culturais, artísticos e científicos, que procuraram aprofundar, melhorar e diversificar o que se tinha tornado visões já não conformes à realidade, doutrinas petrificadas, ritualismos ineficazes, crenças e hábitos limitadores da expansão de consciência e da melhoria das vivências da humanidade.                                        A partir dos anos 60, ao mesmo tempo e em ligação com os hippies, com uso de drogas psicadélicas (no que se destacarão Jack Kerouac, Timothy Leary, Ram Dass e, já a um nível mais recente da psicologia transpessoal, Stanislav Grof), com os movimentos pacifistas contra a guerra do Vietname, com as buscas comunitárias, o paradigma desse livre e multidimensional conhecimento generalizou-se, democratizou-se e entrou-se bastante no campo da psique, dos estados alterados de consciência, no crescimento pessoal, este todavia por vezes mais egóico do que espiritual e libertador. De tal modo que muito do que era esotérico tornou-se exotérico, exterior, público o que se em certos aspectos é bom, todavia, inevitavelmente, sem o controle da antiga relação de mestre a discípulo, sem a qualidade verdadeiramente interior, sem provações iniciáticas e  sem grande discernimento atingido, ainda por cima com tanta quantidade de oferta e de propaganda, tal conhecimento e as pessoas que o obtêm ou alcançam superficializam-se ou são enganadas com muita frequência. A história do ocultismo, do esoterismo, dos movimentos da nova Era, de crescimento pessoal e novas seitas está cheia de mistificações...

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