Eis-nos na oitava parte (das talvez 12) da entrevista, primeiro oral e depois ampliada livremente para constituir o livro O Rosto e a Obra, Autores portugueses da Espiritualidade, 12 entrevistas, pelo António Paiva, dado à luz pela Espiral Editora.
António Paiva – Há um palavrear e há a Palavra, e proferir esta é um acto sagrado?
Pedro Teixeira da Mota – Sim, a palavra pode ser dita, lida ou cantada num acto sagrado de comunhão, abertura, receptividade humilde e intuição com o que ela representa ou invoca. Ou dum ponto de vista mais forte, pronunciada com o poder espiritual da pessoa e da palavra, como no Japão se desenvolveu nos noritos, orações, e no kotodama, a consciência cultivada do poder da palavra, do som.
Ora nas raízes tanto semitas (árabes e hebraicas) como indo-europeias tal consciência e culto sacralizante esteve sempre presente. A civilização Egípcia, que é uma das tradições primordiais das raízes europeias chegara a uma consciência e adoração da deusa Maat, a qual corporizava a Justiça, a Verdade, a Ordem justa, sendo ela quem presidia ao julgamento da alma após a morte. A pena com que era representada no cimo da cabeça, e contra a qual se pesava o coração do desencarnado, representava a leveza das acções e das palavras que devia estar contida ou impactada no coração e certamente também a abertura e elevação aos planos mais espirituais. Tal pena seria uma espécie de canal antena de ligação superior e assinalava tanto a leveza ou vela como o leme da barca consciencial que atravessa ou fende o oceano da ilusão (astral, o bardo) entre a terra e o céu espiritual e divino.
Com o tempo, o Cristianismo e o Islão apagaram bastante a tradição Egípcia, ainda que tenham desenvolvido também a sua visão de um julgamento, da viagem no além, da sacralidade dos nomes de Deus, muito forte tanto nos hesicastas cristãos (dos quais as Narrativas de um Peregrino Russo são um registo fabuloso) como no dhikr ou zikr dos devotos islâmicos e sufis, bem como da palavra verdadeira e do silêncio. Todavia, não tem passado muito para o conhecimento geral, e assim limitamo-nos, o que alguns ressuscitadores da riqueza espiritual egípcia, como o Schwaller de Lubicz (fotografia embaixo), que fez um trabalho fabuloso, ou ainda, entre outros, Christian Jacq, Wallis Budge, Bernard Bromage, Lucia Gahlin e, notavelmente no aspecto religioso, entre nós, José das Candeias Sales, conseguiram brilhantemente.
António Paiva. - Vês então as asceses como parte essencial de uma Ordem Cósmica?
Pedro Teixeira da Mota - Todo o tipo de ascese e disciplina reflecte a procura de integração numa Ordem Cósmica ou numa Vontade Divina, através das suas práticas psico-somáticas purificadoras do interior das pessoas, harmonizando-as no seu dia a dia, vencendo-se assim o dissolvente caos da desordem e podendo-se alcançar-se a paz e vivenciarem-se momentos expandidos ou unitivos de consciência.
Os controlos da dor e do prazer, da energia sexual ou alimentar, vocal ou psíquica são meios para se realizarem equilíbrios e para as energias em geral poderem subir ou subtilizarem-se mais no campo electromagnético de cada um. E depois de controladas, sublimadas, elas ficam mais conhecidas, integradas e obedientes, surgindo uma consciência maior de como as estamos a manifestar e como os excessos podem causar uma diminuição de um potencial, seja geral seja a certos níveis, e quando é que tal excesso se justifica ou é certo, quando devemos dar tudo por tudo...
Quando se é novo a energia é mais abundante e pode ser utilizada a todos os níveis, mas é bom compreendermos que a parte instintiva é muito estimulada também por uma série de comportamentos, imagens, filmes, vídeos, informações. Tudo isso faz com que mesmo o comportamento instintivo do ser normal esteja alterado ao que lhe seria natural e portanto se lhe torne mais difícil, por exemplo, a castidade, uma virtude ou capacidade considerada muito importante no caminho espiritual, pelo menos em dados momentos da vida, ao preservar a energia interior e encaminhá-la para os centros superiores.
Também, por exemplo, a alimentação mais carnívora produz mais instintividade física, e assimila a própria energia anímica dos animais, em especial a do seu sofrimento e desejos. Ou se quisermos, um tipo vibratório de energia electromagnética de que sabemos pouco. Já os cereais, vegetais e frutas têm muito menos a componente do desejo e mobilidade. E dir-se-á que nos primeiros, a carne, pode predispor mais para a violência e o instinto sexual, e nos segundos menos.
Fora da raiz semita que abrange quase todo o Médio Oriente, há na tradição indo-europeia, uma muito importante, além da iraniana e avéstica, que é a que se desenvolveu no subcontinente indiano, com os Vedas e Upanishads, e as suas darshanas ou sistemas de vida e filosofia e com as suas yogas, as práticas ascéticas, harmonizadoras e unitivas, onde se destacaram grandes feitos de domínio do corpo, da dor, da respiração e da mente, com notáveis seres, ora faquires ora já yogis e gurus.
Uma das suas visões da estrutura do Cosmos, a das três gunas ou qualidades da matéria, tem aplicações valiosas na própria alimentação e assim há alimentos considerados como sátvicos, isto é, portadores e causadores da guna ou qualidade de satva, tal os cereais, as frutas e a maioria dos vegetais. Ou seja, a modulação energética deles é equilibrante no organismo e luminosa na consciência e não são como um alimento rajásico, da guna rajas, os que geram mais actividade, paixão, tal o peixe e a carne, ou um alimento tamásico, da guna ou qualidade tamas, caracterizado pelo peso, a obscuridade e a falta de vitalidade, como é o caso dos alimentos requentados ou a entrarem em decomposição.
Dentro desta perspectiva, as práticas ascéticas, ou um mode viver sóbrio, visam em parte equilibrar as três gunas em nós ao longo do dia, seja saindo de estados tamásicos ou pesados, como o sono, a sonolência, o desânimo, através de estados mais dinâmicos ou activos, os rajásicos, para alcançarmos os estados sátvicos de maior luminosidade, os que podemos sentir ou trabalhar mais, por exemplo, seja ao nascer e pôr-do-sol, seja na altura das nossas meditações, orações e contemplações, ou ainda numa continuidade de consciência luminosa e serena.
Podemos dizer que a ascese ou o controle das nossas energias corporais e anímicas visa encontrarmos o nosso caminho do meio, o meio-termo quanto às relações vitais. Seja quanto à energia sexual e como nos relacionamos amorosamente, seja no uso da vigília e do sono, seja na escolha dos melhores alimentos ou os que devemos evitar, de acordo com múltiplas circunstâncias, tais como as estações do ano, os horários e o nosso estado pessoal com as suas idiossincrasias.
Gandhi, por Lanza del Vasto, ou Shantidas, o autor da Peregrinação às Fontes.
Talvez ainda algo influenciados pela tradição não-violenta (ahimsa), yogui, jaina e gandhiana, e sobretudo por conhecimentos dietéticos e por tendência da época, há hoje muitas pessoas que querem deixar de comer carne e serem vegetarianas, macrobióticas ou vegans.
Devemos valorizar uma alimentação saudável, biológica e vegetariana, até para os eco-sistemas, mas não é muito acertado entrar em dogmatismos ou fanatismos pois são muitos os factores em causa e não conseguimos discernir facilmente os efeitos das escolhas no nosso organismo ou as carências que podemos originar.
Sinto que o vegetarianismo é fundamentalmente uma opção de sensibilidade ou mesmo de afectividade, de não-violência, a ahimsa, dos yoguis e do Mahatma Gandhi, de originarmos o menos sofrimento possível, seja nos outros seja dentro de nós, e também de tentarmos diminuir a agro-química e os fármacos que deixam uma marca tão pesada e destruidora dos eco-sistemas do planeta. Já não como carne há mais de quarenta anos, mas volta e meia comi peixe, em ocasiões de ter de comer com outras pessoas em restaurantes. O queijo utilizo, de preferência biológico e de cabra, mas noto que pode obstruir a respiração.
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