quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

"O Rosto e a Obra", 7ª parte da entrevista a Pedro Teixeira da Mota, por António Paiva.

Eis-nos na sétima parte (das talvez 14) da entrevista, primeiro oral e depois ampliada livremente para constituir o livro O Rosto e a Obra, Autores portugueses da Espiritualidade, 12 entrevistas, pelo António Paiva, editado pela Espiral Editora.

«António Paiva - E as outras vias de excesso, tal como referi de início, a de Gurdjieff?

Pedro Teixeira da Mota - As vias de excesso, ou diria até de extremos, mais típicas, além das drogas, foram as da alimentação, do sono, da dança, da música, da sexualidade, do álcool, da guerra e a da violência sobre os discípulos, em geral com a justificação de se lhes quebrar o ego. Ora todas estas metodologias têm as suas limitações, defeitos ou perigos, seja delas próprias, seja pelos terrenos pessoais dos mestres e discípulos, além de que não são elas em si mesmo o que gera a realização, pelo que nada garantem, sobretudo no domínio do espiritual.São apenas meios psico-somáticos para aumentos da percepção dos sentidos físicos e psíquicos, confrontações internas, transmutações de energia, expansões de consciência, e nesse sentido alguns dos exercícios que Gurdjieff ensinava ajudavam as pessoas a sair de automatismos, bem como os modos violentos com que por vezes interagia provocavam realmente reacções fortes.
Contudo, em geral, as pessoas muitas vezes em grupos esotéricos acabam por se satisfazer e iludir com as vidas miraculosas dos mestres e seus poderes, em complexas graduações de iniciações, em correspondências astrológicas, kabalistas e de tarot, ou em ritos e vaidades, e deixam-se manipular por doutrinas e instrutores semi-aldrabões.
Perdendo a noção e a capacidade de estarem bem conscientes do contexto causal e holístico em que estão integradas e num sentido evolutivo ou libertador, acreditam em mistificações que não se podem comprovar, fantasiam as realizações que os instrutores ou mestres alardeiam, começam a criar dependências do sentirem-se bem num grupo ou no amor do mestre, começando assim a limitar-se, distanciando-se de uma verdadeira religação espiritual e divina. “Coisificações”, fixação em esquemas, perda da fluidez e vida espontânea, chamava de certo modo a tal o nosso genial Leonardo Coimbra, que entre nós exerceu um mestrado, onde estiveram por exemplo Sant'Anna Dionísio e Agostinho da Silva, dois seres com quem dialoguei a sós, alma na alma, bastantes vezes e que deixaram ensinamentos valiosos, em especial Agostinho da Silva, com um percurso bastante universalista e particularmente lusófono e do culto do Espírito santo, de algum modo um mestre de alternativas ou mesmo de uma certa Nova Era portuguesa, dos anos 70 a 90, mas ainda lido ou falado hoje. 

Há então os excessos de quantidade e os de valorização de algo, desequilibradamente, erradamente, unilateralizando-se fenómenos que são tão multidimensionais como relativos. Por exemplo, há quem pense, depois de ter estudado, adoptado ou praticado alguns aspectos do tantrismo, que através da relação sexual podem atingir algum tipo de iluminação e vão utilizar tais conhecimentos, técnicas ou capacidades algo mecanicamente, ou indiscriminadamente, ou em grupos. Ora é evidente que a energia sexual está ligada com os níveis mais íntimos e sagrados do ser e da relação humana e, se a queremos ligar com o nível espiritual, a relação que existe entre os dois seres tem de ser muito pura e elevante e não algo que se pratica com quem quer que seja, quase como um exercício físico ou que pouco toca ou chega aos chakras superiores.
Momentaneamente, certos tipos de excessos podem ser naturais e harmonizadores e libertarem problemas recalcados, tensões, frigidez, num processo de catarse e que dá mesmo certa plenitude, mas essa clarificação ou expansão do nosso ser psíquico não se deve tomar como a iluminação, mas apenas como uma iluminação de um aspecto da nossa vida.
Quando se é jovem, com mais forças, a capacidade ou tendência para excessos é mais natural, e a questão é saber não se desgastar neles demasiado. Mas mesmo ao longo da vida, por vezes devemos mesmo arder mais, amar-mos mais algo e alguém e sair dos limites, embora criativamente, luminosamente.

António Paiva– Portanto também não gerará iluminação forçosamente a abstinência?

Pedro Teieira da Mota – Claro, tudo é relativo, depende de tantas circunstâncias e contextualizações, tanto mais que, para mim, não há a iluminação mas sim certas realizações luminosas. Qual é o efeito principal da ascese? É a capacidade das pessoas saberem que podem dominar a sua natureza instintiva, os seus desejos e prazeres, a sua parte animal e corporal, através do seu Eu que decide teoricamente em função de valores superiores ou alinhado com o Espírito. Isto é importante, porque de facto um dos aspectos principais da nossa vida é conseguirmos desenvolver um Eu acima das identificações corporais e dos hábitos sociais, e assim permitir que a consciência espiritual se desenvolva mais em nós.
Esta consciência e corpo espiritual vai sendo feito ou talhado através de todos os sims e nãos, dos actos e renúncias, de desenvolvimentos e esforços ao longo da vida, num processo que nunca pára. As asceses representam portanto um controlo das nossas forças anímicas não as deixando animalizarem-se, superficializarem-se ou serem muito manipuladas socialmente, como nos nossos dias de múltiplos incitamentos a diversos tipos de consumismos tanto acontece, ao que se tem acrescentado ultimamente as restrições covídicas, por vezes quase que sádicas e com tantas consequências negativas...
Porque nós somos eus-espíritos, envoltos num potencial grande de milhares e milhares de forças anímicas, temos imensas de possibilidades de acção, sentimento e pensamento. Ora como a vida moderna exponencia a relacionalidade por meios tecnológicos de um modo gigantesco e encontramos milhares de ofertas para diálogo, aprendizagem, consumo e distração, tudo isso pondo a nossa ascese, no seu sentido de desprendimento do ilusório e concentração no essencial, bastante enfraquecida e até fora de moda.
Esta oferta imensa de bens e relacionamentos tanto nos dispersa e faz-nos perder a concentração isoladora e mais aprofundante, como permite infinitas possibilidades de comunicação, aprendizagens e partilhas, neste aspecto sendo um factor grande da divulgação de ensinamentos de todos os ramos de saber, por vezes numa democratização de conteúdos que estavam bastante mais rarefeitos antigamente. Neste aspecto, a revolução digital originou uma nova Era de rede plena de muitos dos saberes e tradições, e com possibilidades de amplas intercomunicações, embora certamente o contacto presencial seja em geral melhor ou mais forte.
As asceses tradicionais permitem-nos não nos dispersar tanto pelos prazeres sensoriais ou ainda egóicos e até intelectuais, nomeadamente dos canais televisivos, dos jornais fracos, de leituras inúteis ou cor de rosa, contrabalançando-os com um certo recolhimento. Os tipos principais de prazeres que desafiam mais a pessoas quanto ao seu controle são assim a leitura, a alimentação, a bebida, as drogas, o prazer sexual, os banhos, os luxos, as posses, as roupas, os carros, os canais de televisão, as férias, o tempo que se passa nas redes sociais, etc., e é pelos nossos usos e reacções que nos vamos esculpindo, sublimando, evoluindo, ou o contrário...
Podemos ainda referir na ascese a Palavra, o uso das palavras-sons-orações, tanto mais que ela faz parte de tradições religioso-espirituais tanto do Ocidente como do Oriente, e vemo-la nos discípulos de Pitágoras, nos monges cartuxos de S. Bruno e seus conventos contemplativos, no dhikr dos sufis, ou mesmo nos mauna yogis, na Índia, que cumprem votos de estarem meses ou anos sem falarem. 

O kavi yogi Shudhananada Bahrati, com quem vivi em Madras dois, três meses, trabalhara ou escrevera muitos anos em silêncio, com Sri Aurobindo e a Mãe, em Pondichery, e com Ramana Maharishi. Dessa ascese brotara muita visão e poesia escrita. E assim é a lei, poda-se de um lado, fortifica-se e recolhe-se noutro. Ou como dizia o escravo romano Epicteto: Sustine et abstine, sabe abster-te e sabe susteres ou sustentares algo, aguentar.

AP. Como vês então o silêncio?

PTM. O silêncio desenvolvido conscientemente tem muitos efeitos benéficos, seja para ouvirmos melhor os outros em diálogos, seja para discernirmos melhor a energia das pessoas e das palavras, seja para se conservar mais energia interna, que depois se poderá manifestar melhor quando falamos, oramos, escrevemos, seja para podermos ainda ouvir ou ver o espírito.
A natureza transmite-nos e ensina-nos muito o silêncio, mesmo com todos os seus sons, tal como o céu nocturmo e estrelado, sulcado volta e meia por algum meteorito ou estrela cadente que nos faz brotar uma exclamação, uma palavra carregada de sentimento e de significado e que é como uma fecundação da imensidão do céu.
Tal como a tradição egípcia, que muito desenvolveu a noção da palavra justa e verdadeira e de um julgamento quanto à nossa honestidade na transição para o além, imagino que quando uma pessoa chega ao fim da sua vida e passa pela balança da sua consciência, de guias ou mesmo da divindade interna, vê em si mesma, o efeito das palavras que proferiu ou, quem sabe, ouve-as de modos difíceis de se imaginarem, talvez sendo determinado por elas na sua textura hologramática de palavra-vibração-partícula-onda, num agregado subtil e multidimensional.                                          Pode ser que tenha proferido milhões de palavras e que algumas dotadas de uma energia espiritual, duma intencionalidade profunda e luminosa, e porque partiam de um silêncio interior bem cultivado que as afeiçoara e as fortificara, tenham gerado não só bons efeitos como também até uma alma mais pronta a funcionar no mundo subtil espiritual com luz, amor e elevação.

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