terça-feira, 12 de março de 2024

Oração a Antero: reflexões anterianas diante da sua estátua no jardim da Estrela. Com vídeo, e partes das cartas mais imortais, a António Molarinho e a Fernando Leal.

No dia das eleições legislativas, 10 de Março de 2024, após cumprir o direito e dever cívico, resolvi ir ao jardim da Estrela e, apesar do bruá-bruá ou chilrear das crianças, gravar uma  homenagem a ele, que no fundo são reflexões sob a sua inspiração, ditas talvez com solenidade a mais, mas com alguns horizontes belos da Natureza, mesmo que limitada num jardim. São 17 minutos.
Nelas cogito que, embora nós não possamos saber ao certo o que Antero de Quental diria do conflito da Ucrânia, da destruição e genocídio de Gaza ou ainda das eleições legislativas, se lermos e meditarmos os seus ensinamentos, discerniremos melhor a verdade e a justiça e poderemos assimilar tais forças e logo pensarmos e agirmos melhor ou bem. Mais à frente do improviso, contextualizo com as confirmações científicas modernas de Dean Radin e de Rupert Sheldrake as intuições de Antero quando à unidade panpsíquica do Cosmos e ao corpo colectivo e subtil da Humanidade.
E como mencionei as cartas de Antero de Quental a Fernando Leal, a António Molarinho, a Jaime de Magalhães Lima e a António Azevedo Castelo Branco como constituindo das suas mais valiosas transmissões éticas e espirituais, resolvi transcrever parte de duas cartas, a António Molarinho e a Fernando Leal, a quem saudamos luminosamente...

                            

I   Da carta a António Molarinho, inserida no livro póstumo, 1921, Lira Romantica. Meridionais, onde Antero, após ter elogiado os poemas que este lhe enviara considerando-os belos, valiosos e que ficarão sempre como testemunho da sua fase da juventude idealista e sonhadora, afirma a sua descrença da sobrevivência da poesia nos novos tempos históricos,  embora conclua com um  valioso enaltecimento do Bem e Amor que podemos gerar no Universo, numa bela visão. Dediquei um texto a António Molarinho: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2018/08/a-carta-de-antero-de-quental-antonio.html

I - « (...) E todavia essa iminente condenação da poesia pelo destino da história é talvez, no fundo justa. Quero, pelo menos, crer que o seja, para não renegar da fé nas leis superiores do desenvolvimento da humanidade. Essa pesada democracia, esse mundo de trabalho material e de ciência quase tão material como ele, esse monstro de esforço e cálculo, brutal e sem estranhas como agora nos parece, traz talvez em si alguma grande ideia da justiça, que compense à farta as delicadezas e as ternuras que lhe faltam. A poesia tem embalado, com a sua divina melopeia, as dores da humanidade, tem adormentado o sentimento acerbo das suas inenarráveis misérias; mas essas dores, essas misérias não as pode ela suprimir. A ciência e a democracia suprimi-las-ão talvez. [Que belo idealismo, utópico, de Antero....] Como não sei. Ninguém sabe. Mas é essa a fé deste século audaz, e a fé tem sido sempre o pressentimento dalguma grande renovação histórica, dalguma nova revelação da humanidade. Quero ter eu também essa fé e quase direi com Tertuliano: credo quia absurdum. Com tudo isso, meu caro poeta, o momento presente é triste, é amargo. Sentimo-nos tão deslocados! Parece-nos este mundo tão pouco o nosso mundo! Quase que temos a consciência duma gradual fossilização, da transformação lenta da nossa carne e do nosso sangue numa substância estranha, morta, mineral, sentimos que alguma coisa nos soterra e a pouco e pouco nos reduz ao estado de seres paleontológicos, representantes dum período já obsoleto na sucessivas estratificações históricas da humanidade.

É que somos, com efeito, os representantes duma espécie prestes a desaparecer - e é força que se cumpram os decretos do destino...
Desapareçamos pois de bom grado. Não se aflija. No fundo do verdadeiro poeta há sempre um crente. Apele para as energias superiores da sua alma, pense que a arte, por bela e sedutora que seja, não é ainda assim mais do que um reflexo, um símbolo do ideal supremo da vida moral, e que esse ideal, subsistente por si, não precisa de formas, caducas afinal ainda as mais esplêndidas, para se afirmar, pois o que é tira-o de si, da sua substância inesgotável, espiritual, infinita.
Depois a vida, a nossa vida individual e humana, é tão pouca coisa! Se não pode passar cantando, passa-se de outro modo. E ás vezes vale mais isso. Creia que a virtude pode mais e é mais que a arte. E dura mais também: dura eternamente. As obras do bem, ligadas indissoluvelmente à substância do Universo, absorvidas, desde o momento da sua produção, para nunca mais saírem dele, vinculadas, pela cadeia duma casualidade superior, a todas as suas evoluções através dos tempos, dos espaços, dos mundos, vão aumentar o tesouro da energia espiritual das coisas, fecundá-las nos seus mais íntimos recessos e, sempre presentes, sempre activas, eternizam, nessa sua perene influência, a alma donde uma vez saíram. O Universo só dura pelo bem que nele se produz [sublinhado nosso]. Esse bem é às vezes poesia e arte. Outras vezes é outra coisa. Mas no fundo é sempre o bem e tanto basta.
Ame pois a poesia, mas não ponha nela senão aquela parte da sua alma e do seu coração que razoavelmente se pode pôr nas coisas frágeis e caducas deste mundo. Fazendo assim, a poesia o consolará de muitos desgostos e não lhe dará nenhum.
Creia-me muito do seu coração,
Praia da Granja, 26 de Agosto de 1889
Anthero de Quental. »

https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2014/10/fernando-leal-oficial-cientista-e-poeta.html

II - Da carta a Fernando Leal, de 1880, e que brota do mesmo fundo profundo espiritual e ético de Antero de Quental, tal e qual Sócrates e o seu Daimon, voz da consciência ou do Logos, Génio ou Anjo da Guarda:

«(...) É bom, é até necessário passar pelo Pessimismo, mas não se deve ficar nele por muito tempo. O Pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É a síntese das negações na esfera da natureza, a luz implacável caída sobre o acervo de ilusões das coisas naturais. Mas, para além da natureza, ou, se quiser, escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral, que é o verdadeiro mundo, ao qual a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes como ao outro a luta cega, a fatalidade e o pessimismo. Afinal, não vivemos verdadeiramente senão na proporção do que partilhamos desse mundo íntimo e perfeito, ou, mais exactamente, da parte dele que desentranhamos de nós mesmos e fixamos nos nossos pensamentos, nos nossos sentimentos e nos nossos actos. Já vê que a existência tem um fim, uma razão de ser, e o Fernando, embora diga sinceramente o contrário, no fundo não o crê. Lá no fundo do seu coração há uma voz humilde, mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa por que se existe e por que vale a pena existir. Escute essa voz: provoque-a, familiarize-se com ela, e verá como cada vez mais se lhe torna perceptível, cada vez fala mais alto, ao ponto de não a ouvir senão a ela e de o rumor do mundo, por ela abafado, não lhe chegar já senão como um zumbido, um murmúrio, de que até se duvida se terá verdadeira realidade. Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é o Evangelho eterno, porque é a expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as coisas, mas só no homem tornada consciente e dotada de voz. Ouça essa voz e não se entristeça.»
Face de Antero, revestido de toga greco-romano, qual Sócrates, com quem ele declarou mais de uma vez as afinidades que os uniam... Que possam agora dialogar...

E a gravação no olisiponense e tão histórico e harmonizador Jardim da Estrela.

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