sexta-feira, 15 de março de 2024

"Na Era do Fruto Permitido", um livro de biologia, agroecologia e arqueologia, história das mentalidades e utopia, do Alfredo Cunhal Sendim.

No extenso e milenário  Montado do Freixo do Meio, próximo de Montemor-o-Novo, realizou-se recentemente a apresentação do livro na Era do Fruto Permitido, do Alfredo Cunhal Sendim, o qual, com as suas actividades e projectos agro-florestais, tem sido um excelente impulsionador da transformação de pessoas em praticantes de produção biológica saudável e harmonizadora, ou então seus consumidores mais conscientes.  

Poema do Manuel Calado: Em tempos de confusão/ No Paraíso Perdido/ Vamos criar, com paixão,/ Novo Fruto permitido...

O título do livro tem na ligação profunda à Terra e à agro-ecologia uma da suas raízes mas outra é a sede de saber e cultura do Alfredo, o seu amor estudioso das transformações evolutivas da humanidade (desde há 2,5 milhões de anos) e da sua sobrevivência na Terra (ecosistema do solo, desde há 300 milhões de anos), rumo a um futuro melhor, designável como fruto apetecido-permitido, já não proibido, mas lutado, obtido e de certo modo permitido, seja no sonho utópico, seja na realidade do nosso mundo contemporâneo em que tantas forças asfixiantes das melhores tentativas se exercem frequentemente.

Imagens da mesa de apresentação pelo fotógrafo Joel Canavilhas.

A obra foi apresentada por Alfredo Cunhal Sendim, Ana Luísa Janeira, Manuel Calado e Pedro Teixeira da Mota numa bela tarde outonal, cheia de sol forte e no meio de centenas de simpáticos cogumelos, arrebatados aos seus solos e gnomos, mas que serviram para os visitantes matinais os descobrirem e colherem e, em certos casos, identificar, podendo levar os comestíveis, os outros ficando para uma calda freixiana que fortificará a terra e as produções onde for derramada.

A Fátima Gravinho, do grupo de não-violência de Shantidas e da Manuela Lourenço, e produtora de roupas de lã com tingimentos naturais, à conversa com o António Mantas, agrónomo e historiador da agricultura biológica em Portugal.

Num dia de festa de colheitas, confraternizado por cerca de duzentas pessoas no já tradicional almoço de produtos locais, acompanhado de uma feirinha de artesões e produtores locais, cerca de umas cinquenta pessoas assistiram à apresentação dos frutos principais do extraordinário projecto que representa no panorama nacional o Montado do Freixo do Meio e as suas actividades que ligam em verdade o passado mais remoto, com o futuro do vasto amanhã, havendo ainda  a atribuição de prémios aos melhores projectos locais e regionais agrícolas e artesanais  apresentados por oito participantes.

O Alfredo, o Pablo Casero e uma das premiadas do concurso de projectos.

Quanto ao livro, embora pequeno no tamanho, é bem grande no conteúdo, um in-8º de 90 páginas, com uma bela capa e ilustração do amigo Joakim Manik, e está  dividido em sete capítulos, e no 1º,  Na Era do Fruto Permitido,  explica a génese da obra: as conversas comigo na loja da Herdade do Freixo do Meio no Mercado da Ribeira, as leituras de Agostinho da Silva e as suas teorias da passagem da humanidade de recolectora a agricultora, e de Epicuro como um propugnador dum saber moderado, responsável e transformador do mundo, a influência de Wenceslau de Morais e sua grande osmose com a Natureza, o diálogo com Lurdes de Castro e sobretudo constante com o activista Pablo Casero, e ainda a frequência dos livros e bibliotecas, e como tudo isso o fortaleceu na sua decisão de querer alcançar um conhecimento melhor sobre a orgânica do Universo e ser "autor, realizador e actor no teatro do mundo", e partilhá-lo... 

No 2º parágrafo, Esse Teatro do Mundo, Sobre a orgânica do Universo, Alfredo vai nomeando as pessoas com quem foi dialogando, os autores lidos, e as teorias ou peças do puzzle que se foram encaixando, seja para a sua visão do mundo, seja para os seus projectos, e assim vemos passar Edgar Morin e a sua simplificação da complexificação, Paulo de Magalhães e a importância duma visão sistémica e protectora da bio-diversidade, a realização  a partir das leituras de Goethe, Espinosa, Monod, Antero de Quental e Fernando Pessoa  de que o «Espírito é reactivo, pan-relacional e auto-organizativo».

O pensamento de Espinosa sobre "Deus que é o mundo", e dialogado com um seu bom conhecedor Fréderic Lenoir, destaca-se e moderniza-se com o cientista Monod que afirma, o que é, direi, algo discutível para os mais espiritualistas:«A velha aliança rompeu-se; a humanidade sabe finalmente que está sozinha na imensidade indiferente do universo, onde emergiu por mero acaso. Como o seu destino, o seu dever também não está escrito em lado nenhum. Cabe-nos a nós escolher entre o Reino ou as trevas" diz . Uma coisa é certa, depois de Monod não dependemos de qualquer transcendente para explicar este teatro, podendo a partir daí, sem subjugações forçadas, edificar uma ética fundamentada na objectividade da natureza, deixando para cada um o tratamento do que não vê». 

Eis sem dúvida uma visão valiosa, e merecedora contudo de uma boa cogitação nossa para que não seja apenas  uma posição materialista e simplificadora ou contestatária de tanto ideologia e crença religiosa e filosófica, frequentemente sem dúvida meramente imaginativa ou discursiva e não fundada na realidade.

Refere em seguida Claude Lévi-Strauss, com o seu pensamento algo pessimista de que «o mundo começou sem a humanidade e vai acabar certamente sem ela»,  e o começo dos seus tão importantes diálogos com um vizinho, o arqueólogo Manuel Calado que abre as portas da história científica do passado, embora reflictam sobre o mito ibérico de Gargoris e Habidis, e lancem o aviso que se o fim dos dilúvios aconteceu há 12.000 anos, propiciando uma boa estabilidade para a humanidade, o caos climático que se adivinha agora pode dar lugar a novas purificações pela água. 

                                      

O capítulo III, A Humanidade Incluída, é o mais longo,  rico e complexo, pois nas suas 36 páginas traça a história da humanidade primitiva, em termos arqueológicos e de mentalidades, a partir de um cruzamento de leituras e sobretudo conversas que nos fazem assistir à passagem do nomadismo ao sedentarismo, citando o historiador Ruther Bregman e a sua teoria de que as pessoas são boas, e que é o "acesso atribulado ao poder" e às notícias do mundo que desequilibra e fanatiza as pessoas, e como a nossa auto-domesticação correlacionada com a oxiticina foram as responsáveis, com a geração genética, e a selecção natural, pelo nosso sucesso na evolução no mundo dos primatas. 

Nesse sentido do alargamento consciencial da pessoa no grupo ou todo, dialogará com o antropólogo Juan Luis Arzuaga, ligado ao tesouro de Atapuerca, que explicará como o "corar representa uma auto-denúncia em benefício da comunidade", ou Campillo Alvarez, que é a bacia de Eva e o seu tamanho e não a costela de Adão, que permitiu a evolução a que chegamos, ou com o biólogo Rui Oliveira, bom conhecedor da aprendizagem social já existente nos peixes e que pela cognição simbólica e a linguagem atinge em nós os níveis actuais de conhecimento e sua transmissão.

Em seguida dá uma visão da evolução da Humanidade desde o fim do Holoceno, dos caçadores recolectores, até ao Mesolítico, com as comunidades de Muge no Tejo,  e no Sado, com os seus concheiros, e que viveram milénios já com dignidade humana comunitária. E depois como com o Neolítico passamos de um atitude eco-centrada, de agro-ecologia, com seus direitos e deveres, para uma antropo-centrada e de domínio da natureza, face à qual somos superiores. 

Relata as descobertas arqueológicas com o Manuel Calado nos próprios terrenos do Freixo do Meio, e como o fogo, as mós de pedra e a cerâmica permitiram a utilização conservada e para troca da bolota e do seu pão ou biscoitos, iniciando uma sociabilização acelerada e um enriquecimento.

Perpassa em seguida pela  agroecologia ancestral, com as suas «queimadas, rotações, sementeiras, plantações, enxertias e poda», que perpassou nos anos 60 no japonês Fukuoka, um teórico e praticante bastante divulgado então, e critica, na linha de James C Scott (Against the grain, a deep history of the earliest states, 2011) a linearidade da visão dualista ou de monocultura propugnada desde o século XVIII por Jethero Tull, segundo o qual a evolução fora no sentido de recolector, agricultor, monocultura, estado, civilização, quando as práticas de recolecção e a agro-ecologia ancestral sempre subsistiram e são compatíveis com estados civilizacionais avançados.

Manuel Calado, Alfredo, Maria Luísa e o Pedro.

Analisará com a ajuda de Manuel Calado a passagem do nomadismo recolector para um crescente sedentarismo com a estabilização climática, o desejo de comunidade e a pastorícia, destacando-se importância da domesticação da cabra e da ovelha que chegaram vindas do Crescente Fértil antes da agricultura e suas hortas, e daí que o báculo fosse um símbolo de poder sagrado, sobrevivendo alguns exemplares votivos belíssimos, em xisto e marfim,   em museus, tal no Nacional de Arqueologia aos Jerónimos, ou, na imagem seguinte, no museu de Geologia à Academia das Ciências.

As  conversas com o notável fundador da Escola Livre, José Pacheco, que envolveram o Ailton Krenak, Jared Diamond, Viveiros de Castro e o Paulo Freire, foram também importantes para clarificar a passagem das fases harmoniosas e comunitárias do neolítico para as conflituosas, violentas, dualistas que separaram as pessoas e as viraram umas contra as outras, aguçando um individualismo, seja pessoal seja de tribos em lutas de sobrevivência, poder ou supremacia.

A evolução das sociedades, mentalidades e práticas agrícolas ibéricas é narrada em alguma páginas com contributos vários, até se chegar à romanização e depois, com a queda do império romano e o afluxo dos povos do norte da Europa e depois dos Árabes gerando-se uma nova época harmoniosa, comunitária e de agro-ecologia, quando se extrai do ecosistema apenas o suficiente para se viver, surgindo na Alta Idade Média os "casais", no modelo agroflorestal, recolectivo, do montado. 

                                        

Alfredo vai assim considerar que já vivemos muitas pequenas Idades de Ouro na nossa História, comunitárias, integrais, igualitárias, pacíficas, particularmente no Neolítico (anterior ao enriquecimento proveniente das tecnologias, acumulações de recursos, agricultura de monocultura, estratificação social, dualismo ético e separador da unidade com os outros e com a Natureza),  nomeando já na história lusa as relações nos portos dos fenícios na nossa costa, a prosperidade romana, a auto-organização popular do início da Idade Média (os municípios e seus homens bons, tão valorizados por Alexandre Herculano),  as festas do Espírito Santo, os Descobrimentos e até a mobilização por Timor, sem dúvida um dos últimos actos da grande alma portuguesa.

Para concluir esta sua dinâmica e moderna investigação e apreciação da evolução da humanidade, da sociedade, da ética e da agricultura, Alfredo Cunhal Sendim deixará como linhas de trabalho para as gerações futuras:

«Desenvolvimento pessoal. As festas do Espírito Santo. O Estudo da Pré-história. O estudo da evolução  e do funcionamento da mente humana. O estudo da evolução da Humanidade. O estudo da Agroecologia e da gestão dos ecosistemas.»

A parte final do livro, de 16 páginas, intitulada propriamente A Era do Fruto Permitido, é a mais utópica e pioneira e Alfredo inicia-a com a citação dum poema do seu amigo e cooperador Manuel Calado: «Em tempos de confusão/ No Paraíso Perdido/ Vamos criar, com paixão,/ Novo Fruto permitido...», lançando-se depois num projecto da realização da nova era, do quinto império, ou da era do fruto permitido, para o qual, após referir os contributos da oração e meditação, do desenvolvimento pessoal, do Eneagrama, dos círculos de aprendizagem do José Pacheco, e da ultrapassagem do dualismo por um posicionamento integral, para o que delineia um modelo de transição, exemplificado a partir da ilha de S. Jorge nos Açores, bastante original, bem pensado e quem sabe se um dia, qual nova ilha da Utopia de Thomas Morus e de José V. de Pina Martins, se concretizará.  Não iremos aqui parcelar e limitar tal pioneiro projecto da Era do Fruto Permitido nas nossas terras e ilhas do Espírito Santo, até para ter mais razões de ler o livro. 

A obra conclui com pequenas biografias de alguns amigos que participaram mais nas conversas, o Avelino Ormonde, o Francisco Rodrigues Casero, ou Paco Casero, o Manuel Calado, o Pedro Teixeira da Mota e o Rui Filipe Oliveira, seguindo-se duas páginas de valiosa bibliografia e seis páginas com as referências a setenta e uma notas ou citações inseridas no texto.


Eis uma obra valiosa e concentrada que poderá certamente estimular  estudos, encontros e aprofundamentos, o que por si só o Alfredo o faria, e com seus livros, amigos e autores queridos,  quem sabe para uma nova edição, tanto mais que a primeira foi sóbria ou parca na tiragem. 

                                   

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