segunda-feira, 4 de março de 2024

A Mística Portuguesa, por Dalila Pereira da Costa. No dia dos seus 106 anos. Breve hermenêutica do I cap. dos "Místicos Portugueses do século XVI".

A Dalila, sábia, doce, sibílica, na sua sala-biblioteca do andar-térreo na Av. 5 de Outubro 444, Porto, numa fotografia tirada por mim.

Publicada em 1986, a obra Os Místicos Portugueses do século XVI contém posicionamentos ou afirmações que cremos terem sido aprofundados, corrigidos ou melhorados pela Dalila Pereira da Costa (4-3-1918 a 2-3-2012), durante os 20 anos ainda activos das suas realizações, compreensões e publicações antes de partir para o mundo espiritual em 2012. 
                                   
Assim, no 1º parágrafo do 1º capítulo, intitulado A Mística Portuguesa, Dalila mitifica ou exagera um pouco o domínio da Mística, 1º, ao caracterizar o objectivo do conhecimento a atingir "como visão e usufruição da Realidade última, ou Absoluto", algo que na realidade pouquíssimos místicos terão alcançado, e 2º, ao citar o ocultista francês, maçónico e mágico, Louis Claude Saint-Martin: "Todos os místicos falam a mesma linguagem porque vêm do mesmo país", o que é algo inexacto, pois há uma muldimensionalidade psíquica, espiritual e divina tão grande que funda ou alberga múltiplos países, perspectivas e linguagens, gerando diferenças grandes tanto no que se realiza como na capacidade de entendimento pelas palavras, pois as mesmas aludem ou exprimem realizações diferentes de acordo com as tradições e religiões.

Entrando na religião e mística portuguesa, Dalila, sempre navegando ou voando também em si mesma entre o fundo pagão e o cristão, reconhece que nas suas manifestações poéticas a mística lusa assumiu formas panteístas, embora sempre (ou quase, pois houve heréticos e heréticas...) "dentro das normas do catolicismo e da sua teologia", para logo umas linhas mais abaixo afirmar «mas na religião dos portugueses, para além do catolicismo e sua estrutura e dogmas, nela haverá oculto um fundo naturalista, antiquíssimo, vindo de sua religião arcaica, primevamente ligada à Terra-Mãe; e fundo persistindo desde os milénios pré-históricos até aos históricos em formas de piedade, indo desde o culto dos mortos ate às celebrações festivas da fertilidade, em coloração telúrica, cristianizados ambos». E este campo foi por ela muito bem investigado em muitos dos seus livros, e destacaremos a Corografia Sagrada, 1993, e As Margens Sacralizadas do  Douro através de vários cultos, de 2006.

                                                           

Em seguida, após ver bem que neste seu típico panteísmo e naturalismo a nossa mística se situa em oposição à mística do espírito renana, tal do mestre Eckart, tece duas comparações, uma não sendo tão exacta, a de que a mística portuguesa se aproxima do monismo, próprio da mística da Índia, pois creio que não será tanto do monismo, o Advaita, mas mais do Dvaita, do monismo dual, em que além da unidade omnipresente do Brahman ou Divindade, se reconhecem e cultuam as formas pessoais da Divindade. E tece uma antevisão bastante corajosa numa época em que dialoguei com ela nessa ligação do Oriente e do Ocidente, sob a oposição de um ou outro dos seus amigos ligados à Filosofia Portuguesa. Oiçamo-la:«Portugal, como fronteira, traço de união, por opostos, entre o Ocidente e o Oriente, surgirá como o país de cunho mais oriental do Ocidente. (...) Anunciando um novo Oriente-Ocidente, nele se darão combinações novas, de pensamentos (e aqui, de místicas), desconhecidas no Ocidente. E que assim, a este surgirão, como suspeitas, ou insólitas»

Realçará depois os principais afloramentos desse veio de "uma religião naturalista pagã" sublimada, em Frei Agostinho da Cruz, com a sua mística franciscana acrisolada no amor pela serra da Arrábida e por Maria nossa Senhora, e patente ainda em Teixeira Pascoaes e Guerra Junqueiro, aos quais deveremos acrescentar Leonardo Coimbra, nas suas obrinhas Jesus e o S. Francisco de Assis: visão franciscana  da vida.

Dois parágrafos bem importantes seguem-se, no 1º considera que a concepção filosófica e a mística portuguesa não conseguiram na sua escatologia e ascensão abandonar o mundo terrestre e o anímico astral, nem sair do tempo e da continuidade lunar das metamorfoses e gerações, para "uma imortalidade na eternidade celeste" e a "total reabsorção no Espírito", ficando-se por formas de imortalidade limitadas, o que contudo me parece bem mais realista e possível de ser realizado do que essa mítica extinção. E no 2º parágrafo, analisando o pensamento europeu, nomeadamente nórdico e alemão, na sua característica "racional e discursiva", originadora de "sistemas abstractos e idealistas", opostos à natureza, esta vista como força cósmica negativa, e que «assumiu no puritanismo seus exemplos derradeiros, extremados e radicais, e no pensamento germânico, formas de absoluto desprezo e ódio, tal como as que surgem, notadamente em Kant, em Portugal surgiria o contrário desse protestantismo: a exaltação, cântico de louvor e adoração do homem perante a Natureza», bem patente por exemplo em Teixeira Pascoaes, e em especial no livro e personagem Marânus, em que a distinção entre Deus, o ser criado e o mundo se desvanecem, ou em Frei Agostinho da Cruz, onde a Natureza segreda-lhe os segredos divinos, ou eleva-o à fonte da Formosura, privilegiando Maria, como avatarização da Terra sagrada, como a Mestra intermediária da ligação entre a Terra e o Céu.

Frei Agostinho da Cruz, num painel de azulejos do convento da Arrábida..

Admirar-se-á contudo por haver entre nós, como no resto da Europa, «raros casos de formas acabadas e finais de conhecimento místico, como estados unitivos. Conhecimento como aquele que se opera de forma imediata, por via racional, por intuição e via experimental de união com o Absoluto. Via [ou caminho] que, na sua realização perfeita terminará nesse estado de beatitude, como união actual e contínua da alma do homem com Deus».

Estas compreensões-visões enfermam de um certo idealismo, o da possibilidade da tão limitada ou condicionada alma humana, e para não falar do cérebro, poder unir-se com o Absoluto, ou com Deus, e em especial continuamente, se mesmo Jesus, o mestre dos mestres ocidentais, sofre, pede ao Pai que afaste o cálice, e diz que não pode responder a uma pergunta (e ainda por cima sobre a 2ª vinda...) pois só o Pai sabe. Expressões como "realização perfeita", "formas acabadas e finais de conhecimento místico" são absolutizações de realizações bem mais limitadas que alguns místicos ou iniciados conseguiram de religação (num tempo e espaço, ainda que a sua percepção seja alterada ou então desapareça momentaneamente) ao seu espírito, ao mestre, àa forma pessoal de Divindade ou Deus, ou ainda com a presença do Espírito divino como força cósmica e de amor. Quanto ao Absoluto ou à reabsorção no Espírito que alguns admitem tão facilmente, também parece ilusória enquanto o Cosmos estiver em manifestação.

Do último parágrafo citado, passa a Dalila a outra afirmação fruto sobretudo do seu grande amor por Portugal e da sua inserção na corrente mitificante da excepcionalidade providencial da missão de Portugal e dos portugueses que teve como corifeus, por exemplo, o P. António Vieira, Fernando Pessoa, António Quadros e outros. Diz-nos então nessa mitificação exagerada de Portugal: «que outro povo do Ocidente seria o mais indicado para criar formas superiores de um conhecimento experimental, aqui de Deus, tal o da mística, como o português? Ele tão dado a essa forma de conhecimento no mundo e preferentemente usando mais as formas não-racionais, como a intuição e o sentimento, do que as racionais, discursivas? Usando mais o coração do que o intelecto no acto de conhecer», acrescentando uma transcrição da teórica inglesa do misticismo, hoje algo ultrapassada, Evelyn Underhill e outra do tratado anónimo inglês do séc. XIV The Cloud of Unknowing que apenas reafirmam que o intelecto ou a razão não podem pensar o Divino e que este apenas pode ser amado, ou realizado pelo coração, na nudez e obscuridade mental.

Dalila interroga-se em seguida porque teria o português se confinado demasiado à alma e não atingido o espírito, e pensa até, creio que erradamente, que «a mística, na sua forma última, realiza-se justamente na anulação de toda a forma e imagem, para além desse mundo da alma: no mundo do espírito onde, por uma ignição derradeira, toda a forma imaginária [mas não a verídica e essencial...] é anulada, na única luz deslumbrante, como fulguração de Deus: "Na tua luz nós veremos luz", Salmo 35, 10,» como esta citação final que pouco diz e de uma fraca autoridade de realização mística unitiva, que aconteceria entre o salmista e o temível e cioso Jehova.

A inexactidão da Dalila neste passo, creio eu, é a de pensar que nos planos do espírito não há formas e apenas luz, uma posição comum a vários estudiosos do esoterismo, misticismo, budismo e do comparativismo religioso, mas que a ser real impediria a existência dos espíritos individualizados durante a criação ou a fase de manifestação....

Aborda a nossa querida Dalila em seguida e com originalidade o povo português, pois "pertencendo étnica e culturalmente ao contexto céltico ou celtizado da comunidade europeia norte-atlântica, aceitando e usando na Idade Média e  Renascimento os livros de aventuras no mundo da alma que lhe vieram desse Norte, de brumas e claridade, a diferença e inovação por ele concedida a essa comunidade e sua antiga civilização milenária [e Dalila sentia-o genética e animicamente pela sua ancestralidade maternal irlandesa]", é que ele seria o primeiro a transportar essa aventura, antes vivida no mundo da alma, e só a ele até então confinada, ao longos desses milénios de civilização, para o mundo da terra visível e acção nela realizada: e pela primeira vez integrando-a na história da Humanidade».
E valoriza então os místicos escritores e poetas que tiveram as suas intuições, visões e imaginações, taisl D. Manuel de Portugal, Frei Sebastião Toscano, D. Hilarião Brandão e o P. Manuel Bernardes, na Nova Floresta, e as transmitiram com "uma exposição e ordenação" "clara, rigorosa e obedecendo às leis e exigência da ratio, sem nada em si de confuso e obscuro", aos quais acrescenta os profetas Bandarra e Fernando Pessoa que teriam visto o futuro, e que foram capaz de intuir o divino na História e de o transmitir, e que foram elos duma tradição visionária e profética imemorial. Aqui Dalila exagera ou mitifica um pouco a veracidade das suas imaginações ou visões, ao considerar que «a profecia é outra forma afim da mística, e nela se encontrará também essa mesma nitidez e ordenação de uma intuição primeira [ou mera imaginação ou mistificação, diremos]. Bandarra, além da veracidade [?] de suas visões, impressa [e tão manipulada] e declarada na sua mensagem...», e acredita mesmo, exagerando-mitificando, algo seguindo Fernando Pessoa que também à luz, estilo e  imaginações de Bandarra consagrou muitas páginas e até  belos versos, que «os oráculos do sapateiro de Trancoso, serão realizados numa comunhão com a história [certo]; como estado afectivo levado aos limites do poder humano, onde ele se transmutará no divino [exagero]; é sempre partindo duma intuição [ou desejo e imaginação] que aqui se atinge e transmite um conhecimento. Conhecimento que se fará como adivinhação do divino [ou do futuro desejado] na história.»

Observando a inexistência entre nós de místicos que foram teólogos, ressalvando apenas, e com as sua limitações, Frei Tomé de Jesus e sua teologia cristológica baseada na vida, paixão e ressurreição de Jesus (e que Frei Tomé sofreu santamente no cativeiro e morte), Frei Agostinho da Cruz e uma teologia de ascensão Mariana, sentida na intrínseca beatitude unitiva e franciscana, acentuará que na vivência da Trindade entre nós e os nossos místicos há predominância quase total do Filho, de Jesus Cristo, e que se alguns escritores com o P. Manuel Bernardes, Frei Amador dos Arrais e Frei Heitor Pinto abordam a mística e os mistérios da Trindade fazem-no especulativamente como teólogos e não pela vivência ou união sentida dos místicos, pela intuição ou visão, algo que ela reconhecerá contudo em Frei André Dias, um beneditino do séc. XV, estudado e publicado entre nós pelo Padre Mário Martins bom amigo da Dalila, e sobre cuja obra Dalila faz uma boa hermenêutica das suas vivências e ensinamentos mais importantes, com certa comparatividade europeia até, e transcrevendo os passos mais importantes.

As páginas seguintes e que finalizam o I capítulo são bastante valiosas na tentativa de contextualizar a mística portuguesa nas suas características de quente ou do coração e nos seus níveis mais elevados de conhecimento ou união com Deus, com a Deidade ou Divindade e com o Absoluto, baseando-se nos místicos já mencionados e em D. Manuel de Portugal e Frei Hilarião Brandão (que abordará mais detalhadamente noutros capítulos), em Frei António das Chagas, e ainda Nuno Álvares Pereira, Gil Vicente e Leão Hebreu, para além de consagrar algumas páginas belas e sentidas à serra da Arrábida como local desde os tempos islâmicos, já que rábida é nome para convento sufi, que ali existiu, num local telúrico e marítimo eleito ou propicio à aproximação à Divindade, sobretudo  a partir do seu espelhamento na Natureza pura....

Nos restantes quatro capítulos do livro Dalila contextualiza e compara com outras tradições, e aprofunda alguns dos autores citados, trazendo à luz algumas das suas importantes realizações, intuições, efusões e ensinamentos, oferecendo-nos sem dúvida uma obra bem importante quanto ao conhecimento do caminho místico, subtil, espiritual e divino, clarividente, vivencial, amoroso e unitivo, em Portugal.

Muita luz e amor, alegria e Divindade na sua interioridade! 

                                          

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