A sóror Maria do Céu (11 de setembro de 1658 - 28 de maio de 1753), foi uma das mais valiosas das nossas místicas pois aos dotes espirituais, devocionais e ascéticos que as caracterizavam acrescentou o de escritora, poetisa, dramaturga e biógrafa.
Ora quando uma religiosa e mística biografa uma outra, e de quem era grande amiga e confidente, poderemos contar certamente com mais fidedignidade, realidade e sensibilidade no que se narra quanto aos mosteiros e às suas abnegadas almas.
Das qualidades da sóror Maria do Céu falam os seus livros, a sua vida, o ter sido duas vezes Abadessa de um dos conventos mais importantes de Lisboa, o da Esperança, hoje reduzido materialmente a um painel de azulejos, mas espiritualmente subsistindo no que nele de perene foi gerado e ao longo dos séculos tem sido cultivado.
Inclui-se nesta tradição Filomena
Belo e a obra que deu à luz bem contextualizada em 1993 na editora Quimera, num
in-8º de 251 páginas, intitulada Relação da
Vida e Morte da Serva de Deos, a Veneravel Madre Elenna da Crus, que fora escrita em 1725 por Sóror Maria do Céu e se conservava inédita na Biblioteca Nacional, onde se encontra também (e digitalizado) o Livro da Fundação, ampliação, & sitio do Conuento de N[ossa]. S[enho]ra da Piedade da Esperança da Cidade de Lix[boa], manuscrito com a bela portada reproduzida e de datação posterior a 1750, e que fala também das duas místicas.
Sendo a maioria das biografias das nossas místicas escritas por religiosos, ainda que por vezes incluindo extractos escritos por elas, é como já dissemos muito valioso ouvir uma voz e sensibilidade feminina a testemunhar as peripécias das vidas santificadoras que tais sorores arrostavam, frequentemente com grandes dificuldades. E o facto da obra nunca ter sido publicada pode levar-nos a pensar que certo femininismo, face a um controle pelos padres religiosos masculinos, pode ter influenciado a sua não publicação até 1995, mas sabemos como a Parca corta vários fios. Haveria outros aspectos que poderiam ter impedido a publicação que Maria do Céu desejava, ou que teriam desanimado algum admirador ou devoto da sóror Maria do Céu de tal empresa?
Se lermos sentida e cuidadosamente a obra, atentos ao que se destaca no conjunto das peripécias da sua vida, observamos apenas três aspectos que podem ter causado isso: a descrição dos comportamentos demasiado rigorosos, ou quem sabe se com algo de sadismo, do seu principal confessor, Padre Fr. Luís da Madre Deus e já no fim da obra, a menção de que tendo ele morrido, veio pedir a Madre Helena da Cruz que rezasse por ele porque "padecia graves penas", ou seja, estava em maus lençóis purgatoriais.
Este caso é paradigmático pois inclui outro factor que poderia ter sido censurador da publicação da obra, e é a existência de constantes casos de contactos da Madre Helena com almas do outro mundo, ora santos, ora freiras, ora religiosos, mas também pessoas do mundo e mesmo o Demónio, e a quem Sóror Maria do Céu chama por vezes Lusbel.
Quando
sabemos que a Igreja Católica prudentemente sempre tentou diminuir
os contactos entre os vivos e os mortos, salvaguardando apenas as
orações por eles, e de facto Helena muito rezava por eles, esta
facilidade de eles irem e virem, aparecerem e falarem, podia ser visto como forte demais, e inseria numa vida de uma freira exemplar, que em
vida e morta foi tida por sábia e santa, uma componente quase de
espiritismo, de comunicação demasiado fácil com as almas dos
mortos, não vistos como dormindo ou completamente passivos, mas
podendo manifestar-se no mundo físico dos vivos. Um comentário de sóror Maria do Céu a uma pergunta (que seria mais de curiosidade do que necessária) da madre Helena ao espírito do seu confessor e que ele não respondeu nem Maria do Céu explicita, insere-se contudo nessa linha algo de livre gnose, de querer saber mais sobre a vida do além: «Há-de se advertir, que ainda que a pergunta fosse desnecessária, contudo aquilo que se alcança a saber da outra vida, sempre aproveita aos que vivem nesta vida». Ressalve-se porém
que tais dons de clarividência e clauriaudiência, e visões e visitas, eram comuns nas
nossas místicas. embora talvez com menos desejo expressado de os compreender bem.
O terceiro aspecto acrescentável foi o ter dispensado os trâmites legais para a realização de uma festividade que ela mesmo introduzira em Portugal e que foi a Festa do Divino Amor, culto que nascera em Nápoles por graça da suor Maria Vialli, e aí ficara ciosamente guardado até, após persistentes e demorados esforços, a Madre Helena da Cruz ter conseguido autorização papal para a celebrar em Portugal.
Anote-se
que neste culto do Divino Amor, quem saiu da capela para onde foi a imagem dele tronar foi uma estátua do Menino Jesus, enviada para o convento da Luz, mas a Sóror
Maria do Céu não dá muitos pormenores sobre as características da
festa, que encontramos porém no Despertador do Amor de Divino em uma irmandade consagrada ao dulcissimo incêndio das almas, do Padre Fernando da Cruz, de 1695 e hoje digitalizado. Adorava-se mais a 3ª Pessoa, o Espírito de Amor e portanto
Jesus estaria em imagem talvez com um coração mais vivo, embora só é descrito que tinha uma aljava e
setas, pelo que algo de Eros teria, e que as setas foram adornadas com pedras
preciosas, alcançando grande sucesso a celebração e a Irmandade, estendendo-se a outros mosteiros por iniciativas de freiras, mas com a madre Helena Cruz sua fundadora a afirmar expressamente que era só uma irmandade espiritual.
Esta festa, algo associada
ao culto do Espírito Santo, e por isso se terá escolhido
para distintivo identificador dos fiéis dessa também denominada Confraria do Monte
Divino, uma pomba dentro dum coração sobre um pano
vermelho, não agradaria talvez a alguns mais ortodoxos e logo limitadores de
excessos de culto ao Amor Divino, algo que na realidade
acontecia a muitas das místicas, e o que levou posteriormente alguns críticos
modernos da religiosidade devocional a considerarem-nas quase como
desequilibradas mentais por frustrações sexuais e afectivas, e por
essas linhas andaram Manuel Laranjeira e Sílvio Lima. A quantos mosteiros se ampliou, por quanto anos se realizou, sabemos pouco embora o Despertador do Amor Divino, dedicado com grande entusiasmo devocional à Divina Pessoa do Espírito Santo, e contendo fabulosas orações, logo na reedição em 1698, antecedido pelos sábios elogios dos censores, tais como «tem virtude para acender na substância de todas as almas o suave fogo do amor de Deus», é «uma brasa viva cintilando faíscas de Amor divino eficazes», explique que, fundada pela Madre Soror Helena da Cruz, a Irmandade do Divino Amor se alargara a quase todos os mosteiros do Reino.
Os
outros aspectos da vida da sóror Helena da Cruz são comum à maioria senão mesmo
todas as nossas místicas seiscentistas e setecentistas: uma
heroicidade tremenda nas penitências, flagelos, jejuns,
ascese. Uma inquebrantável capacidade de obedecerem às superioras ou
aos confessores e directores. Uma perseverante ou quase incessante
prática de oração ou de ligação interna ao divino. Uma grande resistência e aceitação das
doenças e sofrimentos. Lutas ocasionais contra forças negativas ou
diabólicas. Grande capacidade de comunhão e união com Deus e com
Jesus, donde êxtases, raptos, levitações. Discernimento dos espíritos, dos
corações, do futuro, logo grandes conselheiras. Capacidades de cura e intercessão.
O que nos transmite de ensinamentos espirituais Maria do Céu a partir da vida de Helena da Cruz, com quem conviveu em grande amor tantos anos, mais de quarenta, já que a Madre Helena da Cruz chegou apesar de tanta penitência, doença e sangria corporal aos 92 anos?
O que
nos transmite de ensinamentos nomeadamente da casinha e Amor, ou do
Horto do Esposo que edificaram, do ambiente místico em que viveram no convento da Esperança, hoje
ainda ligado ao Fogo pois alberga os Bombeiros Sapadores à avenida D.
Carlos, em Lisboa? Escolheremos alguns:
1º ensinamento: o dito que ouviu de S. Francisco de Assis, e que a confirmou na vocação de religiosa: «Hás-de ser minha». Tal como ela, ou em graus menores, algumas almas poderão ouvir, ou talvez apenas lembrar-se de tal dito, seja pronunciado por ele, seja por outros santos, seja por Jesus, e assim estimularem-se no caminho de aperfeiçoamento e realização.
2º, a excelente caracterização das potências da alma que Soror do Céu faz a dada ocasião: «aquele coração cujo cristal estava tão empoado; aquele entendimento cujo discurso estava tão obscuro, aquela fé, cuja esperança estava tão desmaiada, tornarão a seu primeiro ser». Na realidade, eis boas sugestões de meditarmos sobre o cristal do coração, a claridade do entendimento e a esperança da fé para retornarmos a uma primordialidade...
3º, como a oração pode ser aprazível: «Entregou-se à oração aonde Deus em principiante a tratou como exercitada: começou logo a dar-lhe as suas doçuras, e tendo o néctar tão suave, por não despedir-se dele passava muitas noites neste exercício, até que à hora do despertar, lhe lembrava tinha passado a de recolher». Possamos nós perseverar na oração e merecer desfrutar a doçura e beatitude do Amor Divino.
Ad astra per aspera, o reino dos céus só cede pela força. Sabermos dominar instintos e apetites é essencial no caminho de elevação.
5º, relatando a visão de duas mulheres que lhe pediram os merecimentos de certas mortificações que fizera [interessante intercessão, já que eram já espíritos fora do corpo], o que era sinal divino do seu valor, explicava Madre Helena: «serem os olhos das duas mulheres tão formosas, que representavam quatro estrelas das mais luminosas; estavam estas almas tão vizinhas a ver Deus, que já do céu se lhe comunicavam as luzes». Também referia, que «lhe disseram haverem sido casadas, que a Bem-aventurança fora feita para todos os estados...».
Valoriza assim o estado conjugal, e mostra a pujança luminosa dos corpos espirituais mesmo antes de entrarem no céu ou mundo espiritual, porque já vizinhas de Deus, expressão esta de vizinhança que Erasmo também gostava de usar para a nossa proximidade possível da Divindade.
6º, justifica a tão antiga animação das estátuas:«Os favores com que Deus honra aos que ama, têm tanto de maravilhosos, como de diversos; a uns permite lhe falem os Santos em suas formas, a outros em suas Imagens; e há alguns, que vejam estas animadas; porque como o Senhor dos impossíveis, sem afrontá-los, pode dar espírito ao lenho, como alma ao barro. Com este último e grande favor honrou por muitas vezes à madre Helena, sem que lhe negasse os mais, pois a mim confidente sua, me disse em sua ocasião, que estimasse muito a cela em que me recolhia (havia sido sua) porque nela estiveram muitas vezes os anjos; não estou certa se nomeou também Nossa Senhora, o mais posso afirmá-lo.»
Eis-nos com uma bela descrição da magia divina, da animação das estátuas e imagens, da visitação dos santos e dos Anjos, e como os locais e quartos ficam permeados por tais vibrações mais luminosas.
Finalmente, o 7º ensinamento transmitido por Maria do Céu acerca dum Natal da madre Helena da Cruz:«Em uma destas noites, sou testemunha, rompendo em gritos, por que o amor, ainda que o queiram calar, não podem, com os saltos com que o coração parecia romper o peito para desafogar, quebrou a vidraça de uma lâmina [imagem encaixilhada] que trazia em o seio. Semelhante a este excesso teve, nos que, como eram filhos do amor Divino, não cabendo em a esfera humana, per rompiam em vozes, lágrimas e suspiros. Por muitas vezes viu em esta clara noite os Anjos da glória animados, e vestidos de luzes», chegando mesmo a ver Jesus menino perguntando-lhe «Queres-me muito?»
Eis-nos com mais algumas teofanias do Amor, dos Anjos vestidos de luzes e de uma desafiante locução divina do Amor e do mestre Jesus: "Queres-me muito?"
Fiquemo-nos por estes sete ensinamentos, outros talvez venham, e saudemos e demos graças por podermos comungar com tão valiosas místicas da nossa tradição Espiritual Portuguesa.
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