quarta-feira, 31 de julho de 2019

Os últimos voos d' "A Águia", 2ª parte: Artigos de Teixeira Rego, Sant'Anna Dionísio e José Marinho.

                                   
Continuando nós a compulsar, da V série da revista A Águia, o nº 1 de Janeiro-Fevereiro de 1932, após o texto de Leonardo Coimbra, já comentado na 1ª parte deste artigo, segue-se um poema de Eduardo Salgueiro que dedilha o tema do Ser e não-Ser que caracteriza a vida, e um artigo de José Teixeira Rego acerca da pedra filosofal. Pouco conhecido este pensador, que pertenceu ao núcleo dos professores da Faculdade de Letras do Porto sem sequer ter formação universitária, era dotado e grande espírito investigador e dado às etimologias, utopias e até esoterismos, apresentando teorias em geral com originalidade. Sant'Anna Dionísio, com quem convivi, falava dele como algo excêntrico, mas estudioso e sabedor.

Neste artigo Teixeira Rego continua na senda da sua valorização do ectoplasma, dessa matéria que os médiuns exudariam e que permitiam as aparições, para no caso dos alquimistas considerar que os ingredientes utilizados em certas fases dos processos laboratoriais, dos quais nomeia a saliva, o sangue, o sémen, a urina e um tipo de leite, serviam para criar um  plasma onde se poderia inserir a vida ou fazer crescer o homúnculo. Assenta tal em algumas descrições algo mistagogas dos alquimistas antigos ou das operações em Paracelso, paracelsianos e outros, ou em passos de Goethe, estabelecendo até analogias com a iniciação maçónica.
É uma hipótese extravagante, embora em certos alquimistas a criação do homúnculo, de um ser humanal artificialmente tivesse sido especulado ou tentado e noutros um certo tipo de magias evocatórias se tivesse realizado.
Cremos contudo que eram operações alquímicas de aperfeiçoamento de substâncias, com fins curativos ou então sobretudo pelo trabalho pessoal  em processos morosos contribuía-se para uma purificação, concentração e vivência espiritual e portanto imortalização do ser humano, não no seu corpo físico (ainda que mais trabalhado e até preservado), mas no espiritual. Esta interpretação e consciencialização não encontramos todavia em Teixeira Rego, algo mais cingido ao material e terrestre.
O artigo seguinte de Barros Basto é uma aproximação a vários textos da Bíblia que referenciam Tarsis, tentando daí e duma povoação com tal nome na zona das minas de cobre de Rio Tinto, em Huelva, concluir que essa região-cidade seria a antiga Tartessus.
 Segue-se o valioso artigo de Sant'Anna Dionísio, Antero, político, que gravamos a leitura comentada e do qual citamos alguns extractos no artigo do blogue com a gravação, aos quais acrescentaremos mais este tão, tão actual: «Mas não se julgue que a clarividência de Antero apenas se revelou na análise retrospectiva dos erros da nacionalidade; na sua obra há também advertências proféticas, e tremendas. A sua convicção de que a Democracia é incompatível com a centralização resultava da descoberta duma cousa, que por ser tão comezinha e palpável, ninguém geralmente dá conta dela: é a monstruosa tautológica económica em que vivem as nações com uma burocracia exagerada, com um funcionalismo em desproporção com as suas actividades criadoras.  «O funcionalismo, escrevia ele [Antero] em 1868, é o triunfo da centralização»... « e pode sem ironia dizer-se que uma nação centralizada não chega à sua plenitude enquanto uma metade dos seus cidadãos não estiver constantemente ocupada em vigiar, governar e corrigir a outra metade. Mas toda essa gente vive: vive, absorve... e não produz. A ruína das nações centralizadas começa aqui. Não há relação entre o que sai do trabalho e o que exige o consumo. Para acudir às necessidades do dia é preciso hipotecar o futuro. Mas no futuro há uma hora em que chega a ser o presente, e nessa hora aparece por tal forma enfraquecido e sobrecarregado, que já para viver precisa pedir a um outro futuro mais longínquo o dobro e o triplo do que lhe tinham pedido a ele... É neste momento que o fisco, até ali simples organismo como os outros se desmascara e deixa ver o monstro cruel, tirânico e disforme que é realmente. Nesse momento de brutal fraqueza, toda a política se resume numa única palavra: dinheiro! Todo o programa do governo se resume numa única frase: é necessário que o povo pague. O Estado transforma-se numa horrível máquina de triturar fortunas, homens, vontades, contanto que desses restos sangrentos possa extrair um pouco de ouro. Mas para isso é necessário ser forte: e o Estado fatalmente se encontra, toma a feição de um exército sempre em armas, no meio de um povo mal submetido, até assumir a sua verdadeira forma, a tirania, uma tirania administrativa e fiscal, como a de Diocleciano em Roma, como a de Luís XIV em França, como a que talvez vejamos dentro de pouco anos em Portugal» [Prosas, II vol., pág. 74].
[Continua o comentário de Sant'Anna Dionísio]: Aos precursores da República que pregavam ditirambicamente, nos comícios, a revolução mas que não diziam, porque os desconheciam, quais os erros e as injustiças que essa revolução devia corrigir e reparar, e aos homens que depois de 1910 herdaram o mesmo espírito balofo e vago, entregando-se a uma política timidamente reformista e oportunista, desacreditando as ideias de que se diziam depositários, faltou essa corajosa lucidez com que Antero tão rigorosamente descobria nas legendas frias da história as causas íntimas e profundas do crepúsculo da nacionalidade, e adivinhava, na luz pálida desse crepúsculo, as ameaças da noite treva que nos cobre».
Sant'Anna Dionísio» 
Que actual esta visão de Antero, do gigantismo do Estado nas mãos dos partidos e consumindo tanta riqueza, exigindo tanto imposto para que os governações e deputações rotativas se mantenham, mesmo que à custa do Bem geral... 
E, finalmente, noticiemos a secção Bibliografia onde encontramos recensões de José Marinho a dois livros: a História das Conferências do Casino, por António Salgado Júnior, onde José Marinho a dado passo anota: «Em mais do que um ponto do seu último capítulo, para nos falar das várias concepções e cultura dos autores das conferências, da substituição dos objectivos políticos por objectivos sociais, e propor uma solução para o problema do conteúdo do Programa dos Trabalhos para a Geração Nova ultrapassa felizmente o autor os estreitos limites que se impusera.
«Andaremos longe da lógica, pensando que o Programa seria uma sistematização declarada das ideias do Cenáculo, aquelas cuja sistematização conjecturamos nas páginas anteriores?» É muito possível que assim seja. Em todo o caso, tratar-se-ia de uma sistematização do que estava dito e feito, mas também de uma teoria, de um programa, como o próprio nome indica. E não duvidemos de que o seu programa em cultura e política, enfim, o seu programa revolucionário era o germe do nosso. Esperemos, entretanto, que a sua obra futura nos esclareça este ponto e os outros pontos e nos dê uma verdadeira história das ideias, intenções e valores dessa geração, que a nós tanto importa conhecer. Bem se compreende  que as nossas aspirações, tendências e exigências do momento politico e social nos levem a meditar o que foi, pensou, quis e fez a geração de Antero. Esperemos que o autor nos dê a sua prometida História da Literatura Moderna, e no-la dê a tempo de a podermos utilizar na consciência que procuramos ter de nós e do momento em que vivemos.»
 
 A outra recensão de José Marinho (1904-1975) é ao livro de aforismos de Sant'Anna Dionísio (1902-1991), intitulado Pensamento Invertebrado, interessante também por  serem então bem jovens e amigos,  e ambos discípulos de Leonardo Coimbra. Nela Marinho destaca o pessimismo geral de Sant'Anna, excepto em alguns passos, citando um deles iniciado assim "Se admitirmos que a vida é um élan para espiritualizar o mundo", e vendo-o como um apelo importante a solucionar-se o problema do bem e do mal não por um Deus exterior mas "pelo encontrar em si mesmo possibilidades divinas". E concluirá a recensão ao Pensamento Invertebrado, dizendo: «É esta uma obra nascida do amor da verdade e daquela espécie de inquietação que aos portugueses, de ordinário, se não revela em suas almas./ E traduz, como mostrei, possibilidade de um ainda maior e necessário aprofundamento reflexivo».
No fim, secção Revistas, há referência às dificuldades que a A Águia passava e o elogio da Seara Nova. Eis a nota, certamente também de José Marinho: «Dentre as diversas publicações recebidas com mais assiduidade temos que colocar em primeiro lugar, pela particular simpatia intelectual que ela merece, a Seara Nova; à qual endereçamos as nossas saudações pela perseverante actividade doutrinária que continua a desenvolver num país e num momento histórico tão hostil como este em que vivemos. Dos mais recentes fascículos recortamos: Raúl Proença - Estudo sobre os batráquios; Sant'Anna Dionísio - A burguesia e o espírito revolucionário; António Sérgio - Para a anulação racional do deficit económico; Rodrigues Lapa - O prof. Oliveira Guimarães plagiador; Vitorino Nemésio - Raúl Brandão íntimo; Câmara Reis - Pobre de pedir; Diogo Macedo - A Escultura em Portugal; Rodrigues Lapa - Ainda os plágios do sr. Oliveira Guimarães; João Gaspar Simões - Raul Brandão e o "Anjo da morte".»
Seguir-se-iam os dois últimos números, e do conteúdo e autores deles talvez ainda falaremos.
E eis dado o resumo e os passos principais de um dos últimos testemunhos de uma revista que ainda hoje nos transmite ideias forças valiosas e assim religa as gerações sucessivas da  Tradição cultural e espiritual portuguesa e perene. 
 

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