quinta-feira, 25 de julho de 2019

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (10º cap.), por Pedro Teixeira da Mota

                       
                       
4 de Maio, Sábado, 23:01. Teerão.
Tive sonhos fortes de noite: num que gravei até, com Luís R. e Paulo B. a serem levados por um grupo e um homem que não quis que eu e uma mulher lhes déssemos boleia. Era agigantado, a dar uma pequenas facadas nela e eu a lutar e a acordar. A ideia que ficou era a de que os dois estavam apanhados por certas forças negativas. Depois um sonho sexual, com certa força e saída de energia invisivelmente; e, por fim, a aparecer a amiga psicóloga transpessoal Marta, talvez porque ontem dialogara acerca dos aprofundamentos modernos da psicologia com a jovem estudante de psicologia.
                     
Dia belo a findar, começado com um nascer do Sol bem acompanhado por nuvens e logo colorido e forte. Veio cá ter afinal apenas a jovem sobrinha de Nasrin, Zahra, e depois de termos ido a pé, observando belos aspectos da vida do povo iraniano (tal como as crianças indo para a escola), e tomado um táxi colectivo, fizemos uma bela visitação pelos jardins do complexo histórico-cultural do séc. XIX o Sa’Dabad, bem arrelvados e floridos, com altos cedros, avenidas de plátanos e arbustos florindo na Primavera, entrando-se em quatro dos talvez dez ou doze museus históricos, etnológicos e de ciências naturais.
                          
                          
                          
                                
                 
                  
                    

Tanto no interior em pinturas murais, como no exterior numa estátua, surge desferindo contra o "mal" uma flecha Rostam, um dos heróis da Pérsia antiga, filho do rei Zal e de Rudaba, imortalizados por Ferdousi, no seu famoso Shah Nameh, o Livro dos Reis, escrito no séc. X e que influenciou muito provavelmente a canção de gesta europeia ou mesmo a tradição do santo Graal, nomeadamente com o Jam-e-Jam, a taça ou vaso do conhecimento universal e da satisfação dos desejos que Jami possuía, e que será depois continuada e glosada por místicos e poetas, tais como Hafiz e Saadi. Entre nós o grande pensador Antero de Quental refere Ferdousi e o Shahnameh e, embora hajam maravilhosas miniaturas iluminadas dele nos melhores museus e bibliotecas do mundo,1, em Portugal ainda não foi sequer traduzido numa antologia.
  Realço das várias dependências o Museu de Caligrafia Mir ‘Emad, com este nome como homenagem ao grande calígrafo e poeta do séc. XVII Mir ‘Emad al-Hussani Sayfi Qazvini (961-1024), pois vale mesmo a sua visita, com exemplares antigos belíssimos, nos diversos estilos (kúfico, ta’liq, nasta’liq, shekasteh), além de especimenes pré-islâmicos. Não se podia fotografar, como me disseram após ter tirado uma fotografia que apanhou Zahra e uma caligrafia, mas como estavam a almoçar os três funcionários na zona da entrada ainda pensei tirar uma outra, mas resisti…
 
 
 
 
 Fizemos algumas meditações, a primeira junto ao Museu da Água e ouvindo-a correr junto de nós e fluindo purificadoramente com a nossa respiração, a segunda, mais demorada, sentados sobre blocos de cimento a imitarem troncos de árvores, entre duas fiadas de altos plátanos, e fui ensinando e transmitindo-lhe muito, pois como ela é estudante de psicologia e gosto bastante dela, ainda flui mais a inspiração e a dádiva ou diálogo-partilha. 

                                 
                          
                            
Ainda admiramos o Palácio Verde mas por fora, construído na segunda década do séc. XX, belo embora híbrido pois a parte detrás está num estilo antigo indo-iraniano, muito conseguido, e a da frente com influências do estilo renascentista europeu.
                        
 

Quando saímos do Sa’Dabad caminhámos para uma mesquita grande ao lado do bazar principal de Teerão, onde nos separámos à entrada e tendo ela de envergar mais uma túnica por cima das suas roupas.
                   
                   
                        
 Se isto incomoda um pouco ou se aumenta a sensação de descida do manto divino sobre nós (de tão grande tradição na espiritualidade de vários povos e denominado burda no Islão), ou mesmo se estende ou expande a nossa consciência para mais um corpo ou nível espiritual, não sei, mas certamente algumas mulheres cobrir-se-ão com sentido ritualístico e místico, verdadeiramente eficaz na intensificação ou melhoria dos seus estados de alma.
                 
                        
                 
                           
Detive-me mais junto ao santuário, talhado em ourivesaria magnífica, que encerra o túmulo do mestre ou santo, muito venerado pelas pessoas, que vão passando e tocando com as mãos nas janelas em filigrana de metal, recebendo com fé imemorial as barakas, ou bençãos, debaixo de mil jogos de vidros e azulejos coloridos e geométricos, cristais e luzes, e orei, senti o fogo interior do coração acesso e dei graças à Divindade viva em nós, Deus...
                         
                        
Neste culto dos santos, profetas, mestres e Imams, que são intermediários com o Divino Absoluto, os Iranianos Shiitas são muito místicos e devocionais, tal como os indianos e os sufis, enquanto que no Islão sunita acentuou-se demasiado, em geral, a transcendência de Deus e ficando os seres mais limitados à sharia, à lei e seus deveres, embora também haja nos sunitas grandes sheiks e pirs, ou mestres, e ordens, ou tariqas, sufis. 
Em verdade, as pessoas com capacidades devocionais sentem mais facilidade em exprimir o seu amor por seres conhecidos e socorrem-se destes mestres, destes amigos de Deus, os awalia, e assim o amor e o Amor-aspiração a Deus crescem, desenvolvem-se mais, ao mesmo tempo que se comunga e ama os seres luminosos nos mundos espirituais e que nos podem inspirar e apoiar...
                         
                           
Não tomara pequeno almoço e fomos avançando nas nossas actividades e diálogos até às 16 horas, quando depois da visita e oração na mesquita, num restaurantezinho não longe do bazar, comemos uma malga do típico e muito nutritivo ash: sopa de massa, feijão, legumes, e uma colher de iogurte e de ervas em molho por cima. O pão comprido e chato é gratuito, mas com uma sopa tão substancial até se come pouco. Sem dúvida um bom e tradicional recurso para os vegetarianos no Irão.
                    
                      
E depois, de sobremesa, um sumo de cenoura, já junto ao bazar, que ainda atravessámos na parte central antiga, com uma armação de madeira e umas balustradas ao alto, e onde se acumulam lojinhas com centenas de produtos invulgares, além dos legumes, em especial condimentos, pickles, oleaginosas, doces com a Zahra a guiar-me na compra de um germinado de trigo, que provara ontem no jardim da avó dela.
                     
                     
                     

Destaco os momentos de grande paz e unidade após as meditações, olhando a natureza, as árvores, o verde e o céu algo “advaiticamente”,2, ou seja, focando na Unidade divina que permeia tudo.
                          
                          
Sobretudo mais visível na paz esverdeada que une as árvores do bosque ou ainda nos glóbulos de vitalidade no espaço infinito do céu, ficando Zahra a saber da existência do prana ou seja destes glóbulos-partículas de vitalidade que rodopiam no ar, que ela consegue ver também, e que já se interrogara se seria dos olhos, ou se era mesmo exterior…
                    
                    
Cheguei a casa pouco depois das 17:00; descansar e ler uns minutos, e às 18:00 ir pela montanha acima, pois já há dias que andava com vontade de o fazer. Primeiro pela rua, sempre a subir, e depois resolvi entrar num atalho algo escorregadio ou derrapante de terra areosa e, quando cheguei ao cimo, reconheci que estava na zona já visitada com Nasrin, Kani, Marzieh e mais pessoas, com a via larga por onde muitos habitantes de Teerão vêm ao fim do dia apanhar ar puro e exercitar-se.
A estufa dos bonsais apareceu de novo e visitei-a e fotografei-a, admirando a potência enorme de tais concentrados de árvores e que possivelmente albergam seres elementais curiosos, como já aliás algumas árvores abertas, e ao contrário bem volumosas, nos jardins do Sa' Dabad sugeriam.
 
 Destaco ainda algumas flores belas, rosas e lírios ou íris, com o seu violeta tão sagrado, bem como trechos escarpados da montanha, que bem me apetecia subir, e as vistas maravilhosas sobre a cidade de Teerão, imensa, branca…
                            
                            
                            
                                  
                            
                            
Regressado este amplo e calmo apartamento, releio o Bustan, de Saadi, com as suas histórias ora divertidas ora instrutivas.

Notas:
1- Há alguns exemplares muito antigos valiosos e belos do Shahnameh, de Ferdousi, como por exemplo, no Instituto dos Povos da Ásia, em Leninegrado, datado de 1524; o da biblioteca particular Arthur Houghton, talvez o mais belo, de 1534; um do séc. XV ainda, no Museu de Arte de Cleveland; e outros no Museu Britânico, na Biblioteca do palácio Topkapi, de Istambul, etc. 
 2 - Advaita é expressão sânscrita significando, etimologicamente e na tradição filosófica e espiritual indiana “não-dual.” Ou seja, a Unidade divina, a Consciência Absoluta, Brahman, é só verdadeiramente quem é. Um sem dois, nem muitos, que surgem só com a Manifestação e que no fim dela serão reabsorvidos no Um, Brahman, o Absoluto. Esta Unidade perpassa por tudo e todos, apenas a devemos reconhecer e aceitar. É como o vasto espaço, indiferenciado e que nós contemplando podemos intuir. Na tradição islâmica, conceitos como Tawid, a Unidade de Deus, e sobretudo o Wajud, têm bastante semelhança, e parecem  indicar o mesmo nível de alta realização possível: a do substrato divino do Cosmos e que nos momentos de paz e recolhimento por vezes conseguimos sentir mais, ou melhor, realizar, comungar, ser…
 
                     Uma taça, vaso ou graal de comunhão, a erguermos, Jam-e Jam... Noor...

Sem comentários: