terça-feira, 23 de julho de 2019

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (6º cap.), por Pedro Teixeira da Mota.

Dia 30. Terça-feira. 9:19. Sinto que o tempo passa mais lenta ou proveitosamente, ou dura mais, pois começara a meditar às 9:07 e agora pensei que já seria mais tarde, mas vejo que não foi tanto tempo fisicamente, embora psico-espiritualmente fosse bem mais longo [ou profundamente sentido], com a repetição dos nomes sagrados islâmicos, a respiração profunda e retenção do ar e, por fim, com o sentir a experiência ou descrição de Saadi, no início do Gulistão,  da "expiração como alegria sobre a nossa alma".
De noite despertei algumas vezes e tive vários sonhos; o primeiro, algo pesado, e em que pusera de novo (em relação aos dias anteriores) a cabeça na direcção sul, fez-me mudar para o norte e assim dormi melhor. Acordei às 4:33, para meditar bem numa hora auspiciosa segundo a tradição indiana, e depois às 7:44 e finalmente às 8:44, para me levantar definitivamente.
São 9:41. Na meditação, um fogacho de luz, uns dois palmos acima da cabeça, quando pensei na “Bem amada” dos ghazal de Hafiz como sendo a alma-gémea, e mandei-lhe alguns pensamentos de amor.
Novo dia pela frente, com sol e a temperatura a irem subindo (26,6%) e a humidade descendo (26%).
 A professora Shokoh Hoseyni vem e lemos do livro Gulistão de Saadi os poemas que eu escolhi como mais importantes para serem sondados e trabalhados.
Almoçamos em casa a lata de feijões com cogumelos que Nasrin e Kani ofereceram à chegada, com pão biológico integral lisboeta. 

Saímos às 15:15 de autocarro para o centro cultural Book City a fim de assistirmos a um colóquio, onde encontramos no gabinete do seu deputado director Ali-Asghar Mohammadkhani algumas pessoas conhecedoras e ligadas ao Irfan ou Sufismo, conversando com dois deles, um dos quais professor universitário e de olhar bem vivo, antes de se iniciar a primeira conferência, à qual assisto ao lado de Shokoh Hoseyni e da jovem estudante Nassim. 
Nassim fora avisada por mim de véspera e, ao aparecer, convidei-a para se sentar à minha esquerda, pelo que me traduzirá partes das intervenções, tanto mais que o seu inglês é melhor do que o de Shokoh, a qual provavelmente quis nestes dias, além de ajudar Nasrin e a mim, treiná-lo inglês. Shokoh, a meio, teve de sair e pude assim receber mais à vontade as breves traduções de Nassim.  
                      
          Mohammadkhani, director deste Book City Institute, e também ele autor, abre a sessão
                      
Falaram Mohammadkhani, o autor turco da obra sobre o Sufismo na Turquia e o tradutor para persa e mais três iranianos, um deles defendendo que o sufismo devia ligar-se ao poder político e influenciá-lo. Estranhei falarem tanto de sufismo e seu activismo quando no Irão oficial se valoriza mais apenas de Irfan, gnose, mística ou sobretudo como filosofia espiritual ou metafísica, já que o sufismo está associado a algum desprendimento dos deveres sociais, hoje mais fortes no Irão, até por defesa contra o bullying norte-americano, e tal diálogo e propostas foi um bom sinal do pluralismo religioso..
                        
No final, aberto o diálogo, a jovem Nassim sentada ao meu lado lança duas perguntas em iraniano, um homem outra e eu uma, em inglês, em duas partes: “Para si, que é verdadeiramente um conhecedor do Irfan, a gnose mística islâmica com mais de 1300 anos, e que tanto encontrou muitos mestres (pirs) como leu muitas obras, quais sãos melhores místicos, ou dervishes, ou pirs das tariqas, os autores que têm mais valor universal e não apenas dentro de um contexto de uma época, de uma cultura ou mesmo de uma subjectividade visionária. Ou se quisermos, tendo em conta que esteve a dizer que Irfan, ou  sufismo pode ser uma ponte entre as religiões, e que está presente em todas a religiões, as quais por vezes ficam algo limitadas e fechadas nos seus conceitos e práticas, quais  serão então os que pertencendo à mística islâmica podem ser mais facilmente aceites e compreendidos por todos?
A segunda pergunta é esta: como sabemos, os ensinamentos de Irfan, ou Taswaud, ou Sufismo têm como objectivo principais sermos bons e estarmos em amor com os outros, e sobretudo conhecermos e amarmos Deus. Ora conhecermos e amarmos Deus, ou estarmos mais próximos Dele, sabemos quão difícil é e por isso muitos mestres propuseram métodos de meditação e de respiração. A questão que eu lhe ponho será então a seguinte: de acordo com a sua experiência quais serão as mais importantes ou valiosas práticas? 
Por exemplo estou-me a lembrar do príncipe mogol do séc. XVII Dara Shukoh, que foi um importante mestre, e que realizou pioneiramente o encontro entre a mística islâmica e hindu, e que dava muito valor ao sultan-al-aksar, a meditação no som interior. Portanto, quais serão as metodologias ou técnicas vindas do Irfan e do Alcorão mais valiosas e praticáveis de modo a podermos estar mais próximos de Haquiqa, a Verdade e de Deus?
Retorquiu-me ele então: Para responder à sua questão muito valiosa, teríamos de estar uma ou duas horas para a respondermos em detalhe, mas quanto à primeira parte da pergunta, qual o meu escritor sufi favorito, dentro do contexto do diálogo das civilizações, culturas e religiões podemos encontrar muitos mas para mim é Rumi. Se traduzirmos ou lermos Rumi, não apenas como poeta, já que ele a usa como simbolismo, mas com os comentários que explicam o Masnavi, e as suas histórias. O meu segundo autor preferido é Hafiz, de Shiraz.
    Sheik Jalaloddin com outros sufis.  Masnavi-ye de Mowlana Jalal al-Din Rumi,     manuscrito iluminado de Tabriz, época Safavid, circa 1530. British Library.
 Quanto à  segunda parte da sua questão, acerca das técnicas de alguns sufis para conhecermos Deus, os sufis dizem “se te conheceres a ti próprio, poderás conhecer Deus”. Para ir para o conhecer Deus é preciso ir através do conhecer o homem. Insan-e-kamil é o Homem Perfeito e é um espelho de Deus. Ninguém viu Deus, ninguém, nem Moisés o viu. Ele viu Deus através do homem. Se vires o Homem Perfeito, então podes realizar quem é Deus. Não deves procurar primeiro técnicas, o que será errado, mas sim encontrar um Insan-e-kamil, um Homem Perfeito, um mestre vivo, que pode ensinar as metodologias correctas.
Há diferentes tipos delas. Eles olham para si e dizem: “precisas de tais nomes de Deus. Deve recitá-los (?) diariamente”. Mas tal não servirá para aquela pessoa ou aquela outra. Há um certo emendar, cortar, ou tecer especial para cada um, de acordo com a sua estrutura base. Não procure por uma tariqa ou confraria, tais como a Kalandaryya (originada no Al-Andaluz peninsular), a Mevlevi (de Mevlana Rumi) ou a 
Shattariyya (do sheikh persa Shattar). por exemplo. Não. Deve encontrar um Homem Perfeito e então sim, pergunte a que ordem, a que caminho ele pertence. Isso são apenas nomes, não é o que importa mais; o mais importante é a essência, a qual o Homem Perfeito já tem realizada e viva em si.
Três dos oradores no final, na livraria; ao centro, o autor do livro apresentado
                              
Já na livraria desta dependência ou filial da instituição cultural Book City, na sessão de assinatura de exemplares da sua obra sobre o Sufismo na Turquia e as suas influências políticas, apresentei-lhe a Nassim, que aproveitou bem a minha sugestão de vir assistir e que pode de novo interrogá-lo sobre o tema que mais lhe interessa, Pir-e-Mogen, o mago da taberna, o mestre zoroastriano, uma figura do sagrado não islâmico dentro da tão especial religião mística islâmica da Pérsia, e que fornece o vinho, ou o amor-sabedoria, o qual provoca o extâse ou a comunhão com o ser Amado, seja humano, espiritual ou Divino, tão desenvolvido ou citado  por Hafiz e Saadi...
Pergunto-lhe ainda: - Quantos Homens Perfeitos julga haver nos nossos dias, uns cinco a dez? E ele responde-me: - Talvez uns seis ou sete homens, já muito idosos. E Pergunto-lhe
então se tinha encontrado ou se estava ligado a algum, e ele replicou, sem se abrir demasiado, que tentava merecer tal…
O autor  é uma pessoa simpática, de boa aparência e consistência mental, ainda que haja um leve ego. É o representante mundial de uma série de grupos sufis. O tradutor, de camisa de xadrez, também denotava bastante paz interior, ou calma, discrição. 
Ao findar ainda pensei passear um pouco e conversar com Nassim, mas o táxi para me levar já estava contratado e eis-me a fazer uma viagem de regresso a casa passando por belos exemplares de arquitectura moderna iraniana, um deles bem flamejante com o pôr do sol, sinalizando e irradiando para quem estiver atento e sensível a tal.
 
 Chegar a casa e ir ao supermercado próximo comprar pão-tosta de sésamo e girasol, uma embalagem de ervilhas e outra de sementes de alfavaca germinadas, além de uma garrafinha de azeite e um pequeno chocolate em promoção, algo que num país com tanta tâmara e fruto seco senti depois ser errado…
Aproveito o tempo em casa para aperfeiçoar o artigo de Saadi, e para ler. Tenho de comprar um casaco pois toda a gente estava bem vestida menos eu, apenas de camisa azul. Sem internet desde que saí de Lisboa, eis-me afectivamente mais solitário, por vezes sentindo o amor a Deus ardendo e movendo-me em rotas peripatéticas pelo quarto.
Foi uma boa conversa a da manhã, com Shokoh Hoseyni, sobre Saadi, a situação actual no mundo e a resistência unida da nação, no Irão.
Já são 1:50 da madrugada e estive a trabalhar o texto sobre Saadi que partilharei na próxima conferência já marcada, numa Universidade em Shiraz. Tomo um chuveiro, e estou pronto para adorar Deus e envolver-me mais na sua Unidade, a qual, englobando todos os seres, obriga-nos a sermos mais diligentes…
Nota:

1 Insan-e-Kamil, o Homem Perfeito, ou o Mestre vivo, palavra persa e turca, um conceito e estado de perfeição explicado e glosado ao longo dos séculos por muitos místicos e sufis. Nur Ali Shah, que morreu em 1800, foi um deles, e no excelente livro que Michel de Miras lhe dedicou em 1974, com um prefácio de Henry Corbin, La méthode spirituelle d’un maître du Soufisme iranien Nur Ali-Shah, há um capítulo acerca do Insan-e-Kamil, onde Nur Ali Shah (via Michel de Miras) transmite a sua visão do ser que através da gnose e da visão se une ao Nome Total Divino e se identifica a Ele unificando ou reunindo em si os pares de opostos como rigor e misericórdia, pluralidade e unidade, não-ser e ser, ou fana (extinção) e baqa (permanência) em Deus. Assim o Homem Perfeito é tanto Profeta como Imam, participa dos Atributos divinos, em especial da Ciência (Ilm), o Poder (Qudrat) e Perfeição (Kamal) e age sem intenções egoístas mas pela Presença divina em si. 

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