segunda-feira, 22 de julho de 2019

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (5º cap.), por Pedro Teixeira da Mota. Com video de palestra.

                          
29 de Abril de 2013, Segunda-feira, já 22:01. Teerão.              Missão principal (da vinda ao Irão) cumprida: a palestra sobre a vida e obra de Hafiz correu bem. Ainda estavam a ouvir na sala de conferências da Universidade Azari algumas pessoas, umas vinte e tal, e transmiti com mais intencionalidade para seis ou sete delas.
                     
Talvez devesse ter-me detido noutras, mas é difícil estar sempre atento ao fluir interior e aos receptáculos exteriores da nossa mensagem. Olhei e falei mais para as três ou quatro professoras principais, para as amigas Marzieh e Shafagh e uma desconhecida de olhos negros e bem redondos, ao fundo, e pouco mais identifiquei de destinatários nos ouvintes, mesmo com a calma em que fui proferindo o improviso, pautado pela tradução de Nasrin.
É o problema de estar a falar de longe, e sem conhecer a maior parte das pessoas e em que temos de ir distribuindo a mensagem para todos em geral e de quando em quando tocando em alguém particular. Mas julgo que as pessoas gostaram, como me disse a Nasrin, e algumas vieram cumprimentar-me à saída.
                    
        Nasrin, a professora, e a Sepideh, a sua ajudante, duas almas muito luminosas...
                    
Almoço no restaurante edificado à moda antiga, com tijolos e abóbadas, com um canal de água pelo meio, e bem fresco, pois fica também a nível subterrâneo. Encontrei uns pratos ou ingredientes vegetarianos, comendo com a Nasrin, a Nassim, a Marzieh, a Sepideh e a Shafagh.
                      
A seguir ao almoço fui com a Marzieh (de verde) e a Nassim, uma das alunas de mestrado da Nasrin que assistiu e agradeceu no fim, até ao complexo cultural e Museu Niavaran, onde visitamos três palácios-museus, dos séc. XIX e XX, com belas janelas de vidros coloridos e  fabulosos tecidos e tapetes antigos,juntando-se já no jardim a Shafagh, que também presenciara a palestra.
 
 
  Dialogámos, recitaram poemas de Hafiz (acima no tapete) e por fim, ao anoitecer, descemos para um café-bar, no meio do jardim adjacente ao museu, com luz esverdeada a realçar as árvores e com assentos à oriental e até narguilé (cachimbo grande com água). 
 
Juntou-se entretanto a nós o namorado de Marzieh e tomei um sumo de cenoura, e elas outras bebidas ou gelados. Shafagh, de amarelo, leu um ghazal ou poema de Hafiz e houve boas conversas. 
Saímos, já noite caída, com elas a cantarem ou recitarem de cor os belos poemas de Hafiz em voz alta enquanto caminhavam, num movimento de alegria dinâmica gravado por mim. 
 E eis-me chegado a casa, e já meditado, agradecido, banhado e jantado levemente…
 Poema:

O que farias tu se o Amor subitamente te ditasse:
Não podes mais estar sozinho, une-te e vive a dois,
Quando te julgavas livre de tal forte desafio
E podendo desfrutar da solidão a teu belo prazer?

O que pensarás se o teu sentir te obrigar a amar
E já não poderes dizer que não ao teu coração,
Nem a quereres ser sempre forte e solitário,
Em vez de sacrificado, doce e solidário?

Pode ser, porém, que a Graça divina te resgate
E te retire de tal fusão intimista humana
E te atraia para Ele e a Sua imensa sabedoria
E possas continuar como um peregrino do Divino.

O que te poderá acontecer se continuares a amar
Quem quer que sintas no teu coração a vibrar?
Serás levado para o Céu e para o mundo dual.
Ora a Deus, Pedro, para que ele te possa guiar.

Tu que me fazes sangrar o coração no temor do Amor,
Que magia ou encanto te deu Deus, e assim brilhas
E a minha estrela à tua contemplação só aspira?
Não olhes para trás, Pedro, e vive na plena Luz o presente.

Ó sol poente da minha vida, porque me surges tão rosado,
Vendo apesar da brancura nívea da alma o avermelhado?
Ó alma da minha alma, vem, ilumina-me, sê uma comigo,
Para a minha essência eterna flamejar mais como o Sol divino.
                              
Um dia intenso este 29, a noite anterior passada em casa de Marzieh, onde pude lavar a roupa (Afeteh, sua amiga íntima, reparara que as minhas calças não estavam muito limpas…) e pô-la a secar, tendo dormido bem na sua vasta cama com edredon leve de flor azuis e vermelhas, sobre fundo branco, dormindo ela no quarto da irmã, no andar de cima em casa dos pais, justificando tal incómodo com o facto de aproveitar para pôr a conversa em ordem entre as duas que se dão muito bem.
O pai, médico psiquiatra, ainda veio conhecer-me e dialogar. Calmo, pausado, escreveu e ensinou muito, até pela rádio, mas ouve com atenção a minha compreensão do corpo espiritual e do despertar, dentro do ecumenismo ou espiritualidade intrínseca a todas as religiões e não limitada por elas e seus dogmas ou doutrinas menos acertados.
Sinto que alguns aspectos de menos sujeição da minha parte à leitura literal dos textos religiosos, e portanto não limitado por dogmática, o surpreende um pouco, ou talvez force a sua mente a ir por um caminho que não quis ainda aprofundar…
Acordara cedo, neste dia da conferência, às 6:40: lavar, ler um ghazal à sorte de Hafiz, meditar um pouco e depois dormitar até às 7:40. Levantar, ler, escrever e meditar e, por fim comer levemente, já com a Marzieh.   
                           
Seguimos para a Universidade num táxi que apanhamos mas onde já ia sentado no banco da frente um gentleman, muito bem vestido, professor retirado, e que, depois de uma animada conversa, acabou por prometer (e cumprir) assistir à minha conferência.
Incrível a sincronia do nosso encontro, pois tivera uma bolsa Erasmus para fazer conferências no estrangeiro e estudara bem Hafiz. E eu publicara um livro de Erasmo, conhecendo bem a sua vida e obra, e preparava-me agora para partilhar algumas interpretações originais da da obra de Hafiz.
Veio ter connosco à sala dos professores, onde eu já fora apresentado a vários membros do corpo docente e conversado um pouco, e rapidamente estabeleceu conhecimentos e contactos. Confessar-me-á à saída, simpaticamente, que gostara muito da minha palestra e que era mesmo um conhecimento de nível muito profundo o que eu transmitira.
Falei calmamente para transmitir conhecimento e espiritualidade, sobretudo às estudantes, tentando despertá-las para escreverem poemas como os de Hafiz, e para deixarem-se entusiasmar, tal como acontecera a Goethe ao ler pela 1ª vez os ghazals, e que escrevera então, em tal espírito e estilo, o seu Diwan, a sua antologia de poemas amorosos-dolorosos ao estilo persa.
Seleccionei alguns aspectos da espiritualidade de Hafiz e fui citando ensinamentos dos seus poemas respeitantes à respiração, à sensibilidade, à natureza, a práticas respiratórias e meditativas e à consciência do corpo psico-espiritual e que são tão necessários nos nossos dias de tanto stress, tentando ainda transmitir-lhes o impulso para tal…
Após a conferência estivemos de novo nas instalações dos professores e professoras e ofereceram-me duas dois livros escritos por elas, um sobre Hafiz e outro sobre William Blake, tudo num ambiente de grande alegria ou mesmo felicidade… 
         
São já 23:56, quase a findar o dia. Relembro ainda o almoço no restaurante da Universidade com cinco professoras e alunas, e depois com Nassim e Marzieh a tentativa de entrar no conjunto de museus e palácios do Sa’Dabad, afinal fechado, descendo-se daí a pé por várias ruas, uma delas com obras num prédio e com os troncos das árvores do passeio envolvidas em panos, para as protegerem de esfoladelas ou poluentes. Uma prática bem valiosa e exemplar, boa testemunha do amor que os iranianos têm à natureza e particularmente às arvores em Teerão, hoje em dia com grave poluição dos automóveis.
                                      
                                        

Por fim, visitamos o Niavaran, conjunto cultural de casas apalaçadas transformadas em museus com a revolução democratizante de 1979. Um deles logo à entrada permitiu-me bons momentos de transmissão de espiritualidade a Nassim, pois contém várias obras de arte simbólico-espirituais das quais lhe fui explicando os sentidos semi-ocultos, algumas até ligadas com a espiritualidade indiana.
Nassim e Shafagh estão bastante interessadas na espiritualidade já que as suas teses de mestrado são a de Nassim sobre o Pir-e-moghen, e a de Shafagh a comparação entre os místicos poetas S. João da Cruz e Attar, nomeadamente nos sete níveis da alma. Noutras dependências apalaçadas há alguns tapetes e panos muito belos, um dos quais de oração e outro com a figura de Hafiz, contendo dentro de si dezenas de personagens.
 No amplo jardim adjacente recitamos sucessivamente em persa, inglês e português um ghazal de Hafiz, lido por Marzieh, Nassim e eu.
                     
Uma fonte a jorrar água com força faz-nos descalçar, a mim e a Marzieh e a molharmos e purificarmos os pés. Depois ensino alguns exercícios de energetização na relva, alguns mesmo com saltos e movimentos, e Marzieh revela-se uma boa bailarina e bem descontraída, enquanto que Nassim está mais rígida. Marzieh alegra-se pela nossa espontaneidade de estarmos a exercitar-nos sobre a relva, quando teórica e por costume ela não devia ser pisada, mas a combinação de Hafiz e da espiritualidade viva rompe barreiras…
Shafagh virá juntar-se a nós e, sentados num murinho, pés sobre a relva para harmonizarmo-nos mais, brota um ghazal de Hafiz cantado em conjunto por elas três e que eu gravo, seguindo-se um outro.
                            
Depois foram novos poemas e explicações na casa de chá com narguilés (que não fumámos, claro...), e onde se juntou o namorado de Marzieh.
                     
Shafagh leu um poema e depois Nassim outro e comentamos a separação dos que se amam poder ser dolorosa, tal como Hafiz poetisa no caso de Leili e Majnoun, (1), e os ventos ou brisas como mensageiras entre o Amado e Amada, ou entre o mundo espiritual e os humanos, fazendo eu algum comparativismo com o Japão, onde no Shintoísmo (de Shin -espírito, to -  caminho), elas são sentidas e acolhidas nos seus santuários, quando se está a fazer a veneração, como sinais dos deuses ou dos espíritos. Por fim, viemos para casa, no jardim ainda com elas a cantarem e depois Marzieh e o namorado a trazerem-me a casa abnegadamente.
Posso escrever, para finalizar: Dever cumprido, isto é, a palestra foi realizada e apreciada.
Nota:
1 Leili e Madjnoun (لیلی و مجنون), são o par de amorosos mais amado, lido e glosado de toda a história e literatura persa, com uma origem indeterminada na Pérsia antiga mas que Nizami, no séc. XII, fixa com grande qualidade. Um amor extático, total, acima de todo e qualquer obstáculo condicionante, numa entrega unificadora total mesmo face a uma impossibilidade exterior. O seu criador poetizou um amor intenso que não foi autorizado pelos pais e fundiu  o amor humano e o amor místico, pois a visão da beleza de Leili que atrai Madjnoun é, muito mais que a física, a espiritual, a da sensibilidade interna, a do coração, unificante.  Criou um par mítico  para poetas místicos sucessivos enriqueceram as peripécias e os estados interiores do amor impossibilitado de se realizar com  os conhecimentos espirituais e vivências da Unidade que o amor acesso em nós gera e irradia e que almas místicas e amantes conhecem.

2 comentários:

NAZARÉ MONIZ disse...

Que interessante, encontrar aqui o seu texto! Penso ser parte do seu livro que me deu a honra de ler há uns tempos. Não tinha visto as fotos, que são muito bonitas e correspondem ao que eu tinha imaginado através da leitura. Obrigada pela partilha.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Viva Nazaré. É verdade, só a Nazaré, como grande viajante e artista, e o Rui Fazenda, também tal e espiritualista amigo do Irão, é que saborearam "manuscrita" ou privadamente as pessoas e locais maravilhosos do Irão que peregrinei, e que espero agora poder ir disponibilizando para mais pessoas. E assim até impulsionar a mais viagens ou peregrinações a essa terra e civilização tão antiga e luminosa!