terça-feira, 30 de julho de 2019

Os últimos voos da revista "A Águia", em 1932. Artigos de António Sérgio e Leonardo Coimbra. 1932.

                                
Os últimos três números da revista nortenha A Águia, órgão do movimento da Renascença Portuguesa, são para além de raros valiosos pela qualidade da colaboração e por serem como que o canto de cisne de um projecto que durou vinte e dois anos e gerou uma das melhores revistas literárias portuguesas de sempre.
Como sabemos, foram publicadas cinco séries, a primeira logo após a proclamação da República em 1910 e a última, com Comissão Directiva de Leonardo Coimbra e Sant'Anna Dionísio, já no ano de 1932  e saindo nela à luz apenas três números, raros, embora o raríssimo mesmo seja  o 10-11 da 4ª série do qual só se conhecem cinco exemplares.  Ora lendo o nº 1, de Janeiro-Fevereiro, resolvi gravar a leitura comentada (e partilhar no Youtube) de um artigo de Sant'Anna Dionísio sobre Antero, político e uns dias depois, resumir, noticiar ou transcrever partes de outros artigos, brevemente, o que realizaremos aqui em duas partes.
                                   
O texto de abertura deste número é de António Sérgio, um dos importantes pensadores da revista Seara Nova, fundada em 1921 e com uma orientação mais de intervenção crítica política, económica, educativa e social, tendo feito bastante (no que a Censura deixava passar)  frente ao Estado Novo de Salazar, e que num artigo Sobre a Reforma do Legislativo faz uma apreciação ao estado político e legislativo de Portugal, e conclui apelando, como foi sempre a sua linha, a uma reforma da educação, deste modo:

«As sugestões apresentadas neste artigo têm somente um objectivo: o de provocar o interesse pelos problemas tratados e o de servirem de base para um debate de ideias. Repetimos ao terminar, que não acreditamos nos remédios legais quando não sejam acompanhados de educação. Quando falamos de educação, não falamos do abc; educar, para nós, é treinar os jovens na iniciativa, no trabalho do espírito criador e livre na mentalidade crítica e experimental. Precisamos de uma escola inteiramente diversa de tudo quanto tivemos até aqui. Para revolucionar a fundo a educação portuguesa, para fazer uma escola absolutamente nova, não há sacrifícios que não nos devamos impor. O esforço, aí, tem de ser gigantesco, e a despesa enorme. «Buscai o reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras coisas vos serão acrescentadas, disse Jesus Cristo no seu sermão; revolucionai a educação do povo, e todas as outras coisas vos serão acrescentadas» poderemos e deveremos nós dizer. 
Porto, Junho de 1929. António Sérgio.»
Observe-se o idealismo crítico de Sérgio, admitindo ou aspirando a uma escola absolutamente nova, e a assunção algo religiosa e revolucionária da reforma da educação, para a qual sempre lutou também com muita publicação acerca do cooperativismo e de intervenção cívica e ética...
                            
Vem em seguida um poema de Teixeira de Pascoaes, o poeta e pedagogo do Saudosismo e do Panteísmo Lusitano, e um dos líderes fundadores da revista e do movimento da Renascença Portuguesa (com Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra), intitulado Ao Mocho, «Ó rei dos poetas da tristeza...».
 E segue-se a primeira parte de um artigo do fulgurante orador e filósofo Leonardo Coimbra, A Máquina e a Alma, de reflexões e interrogações acerca da aceleração do ritmo de vida da sociedade moderna e os múltiplos efeitos das crescentes influências da máquina, da electricidade e da velocidade sobre o ser humano. Algumas afirmações e compreensões são intuições do que se iria passar e seria interessante ouvi-lo hoje quando a desmaterialização dos seres e a multiplicação da comunicabilidade informativa é cada vez maior através do digital, com todos os perigos que isso causa ao humanismo dos seres,  à sua capacidade de sentir, viver, ver e reflectir em harmonia com a Natureza e como almas, indivíduos e não autómatos ou formatadas entidades numéricas de aderentes, consumidores ou contribuintes.
 Deste artigo profundo e valioso,  após a sua introdução em que cita, para ilustrar a luta entre a máquina e o homem, o Nobel indiano Rabindranath Tagore, e os russos Gladkov e Zamiatine, e suas obras, transcrevemos algumas partes e ideias, nomeadamente as seguintes:
«O materialismo morreu porque a própria matéria científica se dilui  em movimento, vibração, comoções do éter, apenas singularizadas por abismos ou vórtices, que são um pálido fantasma da matéria evanescente.  
A máquina que aproveitava os sólidos e os líquidos substitui-se a máquina de vapor que mais dilui a tranquila preensão material do homem antigo, ao mesmo tempo que o levava das velocidades comparáveis à sua própria velocidade de caminhante para velocidades monstruosas.
Ao lado do vapor foi aparecendo, mais incoercível ainda, a electricidade, oferecendo ao homem o desvario das velocidades gigantescas.
A vida acelera-se: as notícias humanas sulcam o planeta como as palavras de Júpiter outrora riscavam o furor de sua cólera perante os olhos pávidos dos homens; as comoções de bem e de mal, os entusiasmos redentores e as cobiças assassinas cobrem o planeta com a pressa e a soberania que outrora transportava o sorriso luminoso de Apolo. [Que descrição antecipada da propaganda, manipulação e sensacionalismo informativo que caracterizam o séc. XXI.]
Os homens apressam-se. Para onde, para quê?
Para mais pressa, para que não retardatários, se furtem ao esmagar do desvairo que avança, ou para que, solitários e míseros, se não vejam abandonados nos desertos infecundos que os outros abandonaram. A vida moderna é um zigue-zaguear de relâmpagos, uma cacafonia de vozes interferentes, uma louca vertigem de velocidades...
Um ritmo cada vez mais acelerado precipita a sua carreira e o respirar opresso da humanidade será hoje, na harmonia pitagórica das esferas, a voz do nosso planeta»...
                                          
  Após esta original intuição do que pode ser o vibrar rítmico e sonoro da grande alma portuguesa, algo desequilibrado ou ofegante pela velocidade excitante e as suas cacofonias, mas sendo essa a sua nota actual, face à  maravilhosa música das esferas do sistema solar ouvida e admitida por Pitágoras, e invocada também por Leonardo Coimbra, este, mais à frente no artigo, certeiramente visionará assim o futuro: «A máquina pode destruir cidades, a máquina pode produzir a fome de populações inteiras, a máquina pode distribuir aos domicílios o veneno ou o micróbio, que semeie o solo desolado do planeta duma imensa sementeira de cadáveres.
Devaneios?
E se os homens repetirem a grande guerra? [A segunda veio mesmo. Esperemos que o imperialismo não lance a III ...] [Em 2020, algo disso brotou da China, de modo ainda misterioso e com efeitos tremendos nas sociedades].
As Ucronias de Zamiatine (1884-1937) e de Wells não são simples brinquedos de imaginações ociosas, e, em qualquer dos casos, trágica é a perspectiva.
A própria tendência que Ortega y Gasset julga ver na arte para a desumanização resulta em parte da fixação da retina do artista pela libertação caótica de energias informadas, dominadas por leis. [E a libertação das imagens e energias através dos écrans de computadores e telemóveis, ainda mais próximos das retinas e tão penetrantes que chegam a poder ser nocivos à saúde?] 
A representação mais fácil da realidade, sob a pressão da velocidade da nossa civilização cinemática, é a de um mundo onde das casas do homem às formas da natureza tudo se dispersa em vibrações, em movimentos que noutros se vão perder.
Ora o homem, que é natureza, é forma, ideia e alma, como a natureza é também forma e ideia - se esta se perde em movimentos difusos, também aquela, pela sensibilidade, começará a fundir-se na mesma dissipação cinemática.
E se ainda lhe resta alma para reflectir encontrará, em si e no meio, uma natureza ofegante, estertorosa, diluída, dispersa em fugazes sensações. A natureza deixa de ser uma expressão de alma, por ser uma apresentação de ideias, para ser o tropel de uma fuga, o arranco dum assalto (ainda é ligeiro humanismo... pois é só zoologismo) e em breve uma coreografia de trechos desarticulados do cinematismo universal.» 
Após este discernimento dos perigos da diluição ou mesmo desintegração da forma da alma na sua relação com a imagética e vibratoriamente vertiginosa vida moderna (e nossos dias bem mais, com todo o alienante televisivo, e o digital e virtual)  o  artigo prossegue em interacção com as ideias de Einstein e de Henri Bergson (1859-1941), que Leonardo Coimbra conhecia e de algum modo dominava, pois escrevera bastante sobre as teorias deles, aproximando-as e discernindo a dificuldade da harmonia entre a alma-intensidade, intuição e vontade, e a simples alma-extensividade e inteligência. E liga ainda esta sua reflexão a outros pensadores que mais lhe diziam:
«Eis a natureza perdida em exteriorização cinética, e eis a alma perdida em inteligência, ou fazendo a sua redenção num cinematismo intensivo de condensação fremente, de vibração em ponto metafísico do ser, em pura vontade (1) de afirmação de vontade, vontade e mais vontade...
A vontade negativista de Schopenhauer feita o epiléptico frenesin de afirmação nietzscheana perpassa em todo pensamento moderno.
No limiar do desvairo cinetista [de movimento] é Schopenhauer negando o ser mutável como ilusão e cegueira duma fome insensata, é, entre nós, Oliveira Martins reduzindo o ser ao não-ser e é o grande Antero, esbatendo-se, sumindo-se na serena paz do Inalterável». 
Estas últimas afirmações são algo inesperadas mas mostram-nos a visão que lucidíssimo Leonardo Coimbra tinha de um certo budismo ou da não-dualidade e vazio de Schopenhauer, que negam o valor do ser mutável ou incarnado, e de Oliveira Martins e de Antero de Quental, ao primeiro atribuindo até o não-ser, em geral mais dos budistas mas talvez por ele ser algo mais materialista do que espiritualista, e a Antero como que desculpando-o da sua crença ilusória que pelo suicídio poderia chegar à Paz inalterável ou do Inalterável, dualidade esta que se pode conjecturar mas que não se saberá nunca qual estaria mais activa ou admitida em Antero nesses dias e horas finais, bem como em que Paz pensava ele entrar, se a de esquecimento, se a de perdão, se a do descanso, se a da niilista extinção num nirvana de extinção...
 
 Claro que se pode mesmo pôr em causa se tal Paz total existe, como certas imaginações religiosas geraram de ampliações exageradas ou de semi-ilusórios paraísos e nirvanas. Paz na morte que Antero, para além de poetizar algo doentiamente ou niilisticamente várias vezes, consagrou também já religiosamente no final da sua edição dos Sonetos com a apreciada imagem do "já descansa o meu coração na mão de Deus". Eu proponho ante tal conformista e habitual "descansa em paz" que antes se deseje: "- Avança luminosamente!"...
Saibamos nós aproveitando e comungando com todos estes nossos antecessores, chegar a uma maior harmonia do corpo, alma e espírito. em inter-relação controlada ou harmoniosa com a mutabilidade intensificada ambiental e planetária e  assim conseguirmos tanto agir ecológica e justamente como entrar, sintonizar ou comungar com a elevada e íntima música das esferas, ou voz do silêncio e voz do mestre, e ligar-nos assim mais ao Ser Espírito e mesmo à Divindade interna... 
      Pintura de Bô Yin Râ, dos mundos e sons espirituais, e a montanha sagrada.

Sem comentários: