No dia 27 de Maio de 1871, no centro de Lisboa, no Largo da Abegoaria, na sala do Casino Lisbonense, Antero de Quental pronunciava a segunda (e a primeira, cinco dias antes, também dele, O Espírito das Conferências fora mais uma apresentação do Programa das Conferências Democráticas, publicado a 17 de Maio) das famosas Conferências Democráticas, tendo como título e tema Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos.
Já realizamos neste blogue uma transcrição e comentário aos cinco primeiros parágrafos, que são como que uma apresentação de ordem metodológica ao diálogo e fermento que as palestras aspiravam a ser, e assente numa visão muito profunda e elevada do ser humano e das suas capacidade de procura da verdade, e vamos agora partilhar, o começo da conferência propriamente dita, transcrevendo o sexto parágrafo, pela sua tremenda actualidade, enquanto lembrança do que fomos e sugestão do que podemos ou devemos ser, perante as tendências cada vez mais alienantes, uniformizantes e opressivas manifestadas pelos governos ocidentais, liderados ou obedientes ao imperialismo anglo-saxónico do petrodólar e mais recentemente, face ao sar corona, a exagerados lockdowns e confinamentos.
Leiamos então o jovem líder Antero de Quental, com sublinhados meus, nesta sua obra prima de análise vigorosa histórico-filosófica, tanto idealista como realista, tão elogiada entre nós no séc. XX por pensadores como Sant'Anna Dionísio e Eduardo Lourenço.
«Meus Senhores:
A Península, durante os séculos 17, 18 e 19, apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos no primeiro período da Renascença, durante toda a Idade Média, e ainda nos últimos séculos da Antiguidade. Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local, e originalidade de génio inventivo. Em parte alguma custou tanto à dominação romana o estabelecer-se, nem chegou nunca a ser completo esse estabelecimento. Essa personalidade independente mostra-se claramente, na literatura, onde os espanhóis Lucano, Séneca, Marcial, introduzem no latim um estilo e uma feição inteiramente peninsulares, e singularmente característicos. Eram os pronúncios da viva originalidade que ia aparecer nas épocas seguintes. Na Idade Média a Península, livre de estranhas influências, brilha na plenitude do seu génio, das suas qualidades naturais. O instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra. a unidade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma dessas divisões as comunas, os forais, localizam ainda mais os direitos, e manifestam e firmam, com um sem-número de instituições, o espírito independente e autonómico das populações. E esse espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava, singularmente democrático. Entre todos os povos da Europa central e ocidental, somente os da Península escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo do castelo feudal não assombrava os nossos vales, não se inclinava, como uma ameaça, sobre a margem dos nossos rios, não entristecia os nossos horizontes com o seu perfil duro e sinistro. Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem distinta. Mas o foro nobiliário generalizara-se tanto, e tornara-se de tão fácil acesso, naqueles séculos heróicos de guerra incessante, que não é exagerada a expressão daquele poeta que nos chamou, a nós espanhóis, um povo de nobres. Nobres e populares uniam-se por interesses e sentimentos, e diante deles a coroa dos reis era mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa. Se nessas idades ignorantes a ideia do Direito era obscura e mal definida, o instinto do Direito agitava-se enérgico nas consciências, e as acções surgiam viris como os caracteres.»
Leiamos então o jovem líder Antero de Quental, com sublinhados meus, nesta sua obra prima de análise vigorosa histórico-filosófica, tanto idealista como realista, tão elogiada entre nós no séc. XX por pensadores como Sant'Anna Dionísio e Eduardo Lourenço.
«Meus Senhores:
A Península, durante os séculos 17, 18 e 19, apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos no primeiro período da Renascença, durante toda a Idade Média, e ainda nos últimos séculos da Antiguidade. Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local, e originalidade de génio inventivo. Em parte alguma custou tanto à dominação romana o estabelecer-se, nem chegou nunca a ser completo esse estabelecimento. Essa personalidade independente mostra-se claramente, na literatura, onde os espanhóis Lucano, Séneca, Marcial, introduzem no latim um estilo e uma feição inteiramente peninsulares, e singularmente característicos. Eram os pronúncios da viva originalidade que ia aparecer nas épocas seguintes. Na Idade Média a Península, livre de estranhas influências, brilha na plenitude do seu génio, das suas qualidades naturais. O instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra. a unidade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma dessas divisões as comunas, os forais, localizam ainda mais os direitos, e manifestam e firmam, com um sem-número de instituições, o espírito independente e autonómico das populações. E esse espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava, singularmente democrático. Entre todos os povos da Europa central e ocidental, somente os da Península escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo do castelo feudal não assombrava os nossos vales, não se inclinava, como uma ameaça, sobre a margem dos nossos rios, não entristecia os nossos horizontes com o seu perfil duro e sinistro. Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem distinta. Mas o foro nobiliário generalizara-se tanto, e tornara-se de tão fácil acesso, naqueles séculos heróicos de guerra incessante, que não é exagerada a expressão daquele poeta que nos chamou, a nós espanhóis, um povo de nobres. Nobres e populares uniam-se por interesses e sentimentos, e diante deles a coroa dos reis era mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa. Se nessas idades ignorantes a ideia do Direito era obscura e mal definida, o instinto do Direito agitava-se enérgico nas consciências, e as acções surgiam viris como os caracteres.»
«Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local e originalidade de génio inventivo.» |
Realcemos ainda assim, e portanto, a necessidade de conseguirmos defender melhor os direitos e liberdades tanto individuais como locais e comunitários, face ao centralismo nacional ou europeu frequentemente vendido a interesses não populares nem sequer nacionais, ou ainda da verdade e bem comum internacionais.
Este discurso a ser pronunciado actualizadoramente, nos nossos dias, por Antero de Quental, em que direcções se encaminharia? Teria ele muito a verberar tanto nos políticos como nos portugueses? Fundaria ele um novo partido, apoiaria algum ou poria em causa as mentalidades egoístas e a partidocracia?
Inspirados por Antero de Quental, saibamos pelo menos desenvolver caracteres justos e profundos e, unidos por interesses e sentimentos nobres e do bem comuns, agirmos virilmente e deste modo aprofundando a auto-consciência da energia, da ética e do espírito em nós, para o Bem de muitos.
Faces do Gerês transmontano ecoando Antero: «Espírito de independência local e originalidade de génio inventivo.». Saibamos vencar as covinagens.... |
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