quarta-feira, 24 de julho de 2019

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (9º cap.), por Pedro Teixeira da Mota.

3 de Maio, Sexta, 21:53. Chegar a casa e dar mil graças por tanta beleza e espiritualidade neste dia de visita ao jardim ou pequena quinta nos arredores de Terão da família da Nasrin, dialogando com ela, as suas sobrinhas e o cunhado, porque falam inglês, e recebendo uma refeição fabulosa com ash, kuko, vegetais em creme-pasta, salada, legumes cozidos, iogurte e, à sobremesa, duas variedades de subtis intensificações da doçura do trigo germinado, parece que tradicionalmente pisado em almofariz e cozido prolongadamente.
 
 
 
 Sexta-feira é o dia santo e de descanso na Pérsia e assim aproveitamos para sair dos afazeres de Teerão e desfrutar um pouco do ambiente rural dos arredores, numa convivência familiar muito agradável. Logo de manhã fomos a uma padaria comprar o pão típico iraniano para levar e o seu processo de manufactura faz lembrar o da Índia
 
Li as linhas das mãos das três filhas e do pai e do que vejo e intuo, algo é confirmado, pois a mais nova tem uma linha de afectividade e amor imensa, bem como uma grande interioridade, vivendo para o seu mundo íntimo, o que foi bem visível sobretudo na infância. O pai confirma. A que estuda psicologia é também muito sensível e de grande interioridade, e foi com ela que senti mais afinidade de alma e de coração; a mais velha é mais enérgica ou dinâmica, criativa nas artes e webs, e tirou também várias fotografias às árvores e flores, em especial as rosas. 
 
 
  Cozinharam nas brasas umas beringelas, serviram antes uns aperitivos na eira, sentados no chão sobre tapetes, com o jardim em frente, mas para almoçarmos entramos para dentro da pequena casa térrea e eu escolhi a posição da cabeceira, donde podia ver e falar mais à vontade, tirando algumas fotografias da variedade de pratos. A irmã da Nasrin afadigava-se e a mãe também ajudou, mas também eu ajudei a levar os pratos e a transportar um sofá.
 
 Acompanhei as orações ao lado do cunhado de Nasrin, e pronunciei também uma minha, inspiradamente.
 
                                         
Depois do almoço discutimos e esclarecemos traduções possíveis de poemas do Gulistan com as duas irmãs e a Nasrin. Dei uma volta ao jardim e estive a explicar ao pai das três jovens como se devia podar as videiras, plantadas há dois anos, pois não o tinham sido, lembrando que a altura certa era Janeiro, Fevereiro. Arranquei várias vergônteas e expliquei a famosa arte “da poda”, que o Francisco do Gilde, Guimarães e depois um vizinho no Vale da Figueira, Agroal, Tomar, me ensinaram nos meus tempos de agricultor. Por fim, já na tarde, no terraço, ainda vieram uns pratos com morangos, servidos dentro de meloas cortadas ao meio e de forma ondulada, além de kiwis, laranjas e pepinos, tudo disposto muito artísticamente
 
 
 

                                       
À saída colhi umas rosas que estavam já muito desenvolvidas e ofereci às três filhas e à Nasrin, a mais velha delas oferecendo-me-a depois e por fim também a mais nova, dada a minha apreciação delas. Eram perfumadíssimas. A psicóloga segurou na rosa e aspirou a sua fragrância com delicadeza ou sentidamente, retendo-a depois consigo de um modo que me tocou como imagem e como estado de ser interior.
                                        
Deixada a mãe (com quem devia ter falado mais) e o irmão na casa de Nasrin (e que devia ter visitado, já que me perguntou se queria mas como já era tarde não senti tanta vontade), ela leva-me a visitar o monumento aos mortos ou mártires da guerra do Irão e do Iraque, junto a uma armação em ferro que serve para celebrações. 
                           Um povo marcado pela guerra, e com um culto aos mártires único no mundo
No centro desse espaço ajardinado, situado numa zona alta da cidade, estão cinco túmulos, sobre uma vasta plataforma de mármore, dedicados aos mártires desconhecidos.
 Algumas pessoas vão chegando e oram por eles a Deus, tocando com um ou com os dedos na tumba, algumas vezes, talvez como a transmitir-lhes energia, ou quem sabe testemunhando por eles perante Deus. É um gesto invulgar para a tradição ocidental, embora o gosto de tocar em tudo o que é sagrado seja uma constante no género humano.
 Será sobretudo um toque de amor, um sinal para o outro lado, um simples transmitir amoroso, assente sempre na ideia da comunicabilidade das forças anímicas, sobretudo entre seres que se amam, não importa as distâncias e intensificando-se com certos objectos ou relíquias?
         
Outras pessoas lêem orações, certamente do Alcorão. Uma jovem dos seus vinte e tal anos sai a chorar, provavelmente filha de um dos mártires. Ofereço uma das rosas perfumadas que recebera do jardim da Nasrin e medito e oro em seiza, sobre o mármore, diante de uma das lápides aos soldados desconhecidos. Sinto bastante força espiritual, um local sagrado, com certa comoção do heroísmo perpassando.
         Com a rosa, prestando a minha homenagem e enviando sentimentos-pensamentos luminosos..
 
Fotografo a cidade espraiada pelo horizonte, e um jovem vem ter connosco, talvez nos seus 40 anos, um ar fino e de certo sofrimento.
                    

 Entabula conversa com a Nasrin e eu aproximo-me, fotografo-o e pergunto o que diz e se esteve na guerra. Sim, e a sua grande tristeza é não ter morrido como mártir. Esteve um ano na guerra, mas queria morrer. Respondo-lhe que se Deus não o deixou morrer é porque queria que ele continuasse vivo.
 
 Ele persiste na sua lamentação e tristeza, tanto mais que morreram muitos amigos, mas eu explico-lhe que ele tem de aproveitar enquanto está vivo para crescer no seu coração espiritual e na sua compreensão do Universo e na sua consciência de ser um espírito luminoso. 
Incha-allah, Deus queira, replicar-me-á. Oferece-nos ainda duas notas comemorativas da guerra, emitidas por um banco, em estado novo, belas, de valor diminuto ou simbólico, que guardo.
 
 
Depois subimos ao cimo do monte perto da casa de Nasrin e com uma bela vista sobre a imensa Teerão, ao anoitecer. Sentamo-nos num banquinho com os pés no ar, junto a uma jovem que pergunta de que país sou. No caminho há ainda algumas fogueiras a acenderem-se para umas espetadas ou churrascadas, num ambiente alegre que atrasa a chegada da noite e envia belas vibrações de convivialidade até às estrelas que começam a despontar...  
Mas não nos detemos muito e seguimos para uma mesquita vizinha...
                                   Entradas purificadoras, sacralizadoras.... Amor a Deus, Allah...
 
 É a do Madhi, a daquele que virá e que é o 12º Imam (líder), oculto até agora. Bela, e ao anoitecer ainda mais sugestiva, separamo-nos à entrada, e eu fico pela zona posterior do interior, seguindo o ritmo de um fiel que adora à minha direita. Depois vem um homem, que se apresenta como tendo sido avisado da minha presença, e faz-me avançar mesmo na altura em que vão começar a oração, para as filas mais da frente.
                                 
                                 
Pego um selo-moeda de argila que estava no chão e aí vou eu fazer duas sessões de oração e ouvir a leitura de uma página do Alcorão, aconchegado na continuidade dos fiéis que por fim se apertam a mão e sorriem.
Alguns momentos belos, estes de comungarmos o Divino, em unidade com os outros, sentindo-se um pouco a milícia dos homens crentes tementes ou amantes de Deus…
                                       
À tarde recebera uma rosa da filha mais velha, e que depois foi oferecida por mim para os mártires da guerra. A segunda está comigo, deu-me a mais nova e tem um perfume fabuloso. Dozes vezes o aspiro ou respiro, na última vez já a oferecer a fragrância aos pais e antepassados, tal como no caminho de Santiago que fiz há alguns anos, nos seus 700 e tal quilómetros em 28 dias, e em que ao fim de alguns dias de peregrinarmos oramos já pelos antepassados mais antigos e as origens…
Ofereci às três irmãs três rosas do jardim encantado delas, fiquei com uma e uma delas ficou com outra, e contudo as rosas são eternas pelo menos enquanto houver Terra e Humanidade e continuarão a inspirar-nos e suavizar-nos… Não foi dito pelo profeta que a rosa é a flor de Deus? 
O coração humano é uma rosa divina, menos ou mais aberta...
 Assim vou-me preparando para deitar, pois amanhã começa um novo dia e bem cedo para poder visitar alguns aspectos da arquitectura antiga dos bazares, com umas pessoas de arquitectura. Já fiz agora sob as estrelas alguns exercícios e movimentos dinâmicos no terraço com vista sobre Teerão, bebi o chá de ervas iranianas e melhorei um pouco o artigo acerca de Saadi. Mas preferia falar na palestra sem ler o papel…
Já 1:02. Meditei com a revisão do dia, como recomendara às jovens irmãs, e relembro ainda ontem, no santuário Emamzade Davood, o fiel que veio ter comigo para mostrar-me, com a ajuda da tradução de Nadar Agahi, a árvore de descendência de Adão, que se encontrava esquematizada e afixada num desenho na parede, e apertar-me a mão sentidamente, não sei se também como pedindo-me desculpa de se socorrer de crença tão mítica e desajeitada para os nossos dias, para comunicar comigo e trocarmos as nossas vibrações no apertar ou cruzar as mãos com alma...
Lembrei-me então do aperto de mão que eu hoje fiz ao antigo combatente, com a alma semi-perdida na bruma dolorosa dos companheiros mortos, tentando passar-lhe certa correnteza espiritual e a mensagem: - Ergue-te, arranca-te do passado, sê criativo e feliz…
Um grande povo e país, que desejamos que se afirme luminosamente…

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