Na
já longa história da Humanidade tem-se acentuado nestes últimos tempos a
crescente necessidade da passagem de uma religiosidade dogmática e
exclusivista, com consequências separatistas, dualistas e violentas,
para uma coexistência mais dialogante e harmoniosa entre os vários
credos e culturas a partir da consciencialização e o reconhecimento dos princípios, seres e
energias, quer individuais quer universais, que estão por detrás ou subjazem as
crenças e dogmas, práticas e realizações psico-espirituais dos diversos povos.
Talvez
possamos referir no Ocidente alguns humanistas dos sécs. XV e XVI
como precursores desta importante transformação ou transmutação do visionamento religioso e deles
evocar Pico della Mirandola (defendendo as suas 900 Teses
baseadas nas tradições caldaicas, gregas, árabes, cristãs, indianas),
Erasmo de Roterdão (com uma vasta obra pacifista e desmistificadora de
estultas aparências e superstições, bem como defensora da religião do
espírito e da caridade), Marsilio Ficino, rastreando muito uma Prisca theologia,
uma revelação divina que já vinha de Zoroastro e de Hermes, Giordano
Bruno (1548-1600), muito pioneiro e ousado não só na sua aproximação ao infinito material e
espiritual como também à subtil centelha divina do Espírito em nós, Thomas More (apresentando uma religião natural universal,
na Utopia), ou ainda o francês Guillaume Budé (1467-1540) com o seu Trânsito do Helenismo ao Cristianismo,
que de certo modo serve de mote para este artigo escrito (primeiro como
uma epístola dedicada a Agostinho da Silva e aos leitores da revista Nova
Águia, nº 3, depois revisto a acrescentado para o Spiritus Site e finalmente melhorado e finalizado neste texto para o blogue.
Já nos séculos XIX e XX poderíamos apontar ou referir, por exemplo, na Rússia, os seus sucessivos pensadores e espirituais que desenvolveram a Hagia Sophia, a santa Sabedoria, ou o espírito do Amor presente em Jesus, como a intermediarização entre a Divindade e a Humanidade, tais como Tolstoi, Soloviev, e em especial Berdiaef, com a sua Academia Livre de Cultura Espiritual, expulso com 160 pensadores no barco que os leva para o exílio da Rússia em 1923, e que escreverápor exemplo: «A liberdade é um dever e não um direito, algo que se afirma e conquista. A aristocracia é um princípio espiritual.» Poderíamos ainda referir a algo mistagógica Helena Petrovna Blavatsky, a co-fundadora da Sociedade Teosófica e em seguida o casal Nicholai e Helena Roerich, estes transmitindo o Agni Yoga e um extenso epistolário, além de milhares de pinturas.
Já nos séculos XIX e XX poderíamos apontar ou referir, por exemplo, na Rússia, os seus sucessivos pensadores e espirituais que desenvolveram a Hagia Sophia, a santa Sabedoria, ou o espírito do Amor presente em Jesus, como a intermediarização entre a Divindade e a Humanidade, tais como Tolstoi, Soloviev, e em especial Berdiaef, com a sua Academia Livre de Cultura Espiritual, expulso com 160 pensadores no barco que os leva para o exílio da Rússia em 1923, e que escreverápor exemplo: «A liberdade é um dever e não um direito, algo que se afirma e conquista. A aristocracia é um princípio espiritual.» Poderíamos ainda referir a algo mistagógica Helena Petrovna Blavatsky, a co-fundadora da Sociedade Teosófica e em seguida o casal Nicholai e Helena Roerich, estes transmitindo o Agni Yoga e um extenso epistolário, além de milhares de pinturas.
Nos nossos dias há cada vez mais pessoas a sentirem a necessidade da passagem da unilateralidade e competitividade das religiões para a coexistência pacífica e dialogante no seio, ou sob as bênçãos, da magna Religião Perene do Espírito.
Não é difícil descortinarmos ou hierarquizarmos os principais factores que contribuem (apesar dos retrocessos pelos fanatismos e até diabolismos) para a crescente unificação espiritual, tal como as populações multi-religiosas, os casamentos entre pessoas de credos diversos, os frequentes encontros de diálogo ou oração juntando fiéis das diferentes tradições e, finalmente, os contributos da comparatividade religiosa, da psicologia transpessoal, do esoterismo ou esotericismo e da mística, por vezes através de seres mais carismáticos ou mais aptos a compreenderem, realizarem e a usarem as terminologias próprias, mas afins, de cada uma delas.
Um meio parece porém elevar-se sobre os demais na sua urgência e magnitude de alcance: a publicação de um ou mais manuais de ensino religioso, mostrando ou ensinando desde cedo às criança como as realidades mais elevadas são as mesmas, ainda que abordadas, descritas ou denominadas diferentemente, e que os ritos, práticas ou experiências são também comuns e idênticos, diferenciando-se apenas nas formas e preceitos exteriores, pois as fundamentações são semelhantes, quer de origem telúrica, histórica ou celestial, quer por razões corporais, anímicas ou espirituais.
É importante que qualquer pessoa que sinta vontade de participar num culto de uma religião possa fazê-lo sem receios ou repulsões, compreendendo o que se está a passar e sendo bem acolhida, participando assim consciente e com gratidão no acto ou cerimónia de elevação energética e invocação de valores, seres e níveis espirituais, e sobretudo da Divindade, que é a Fonte de todos eles. E tal passa-se em comunhão com os mestres fundadores e os seus discípulos, mestres ou santos, ou seja, a Igreja, Assembleia ou Fraternidade enquanto participação numa presença viva, num corpo subtil que anima ou pode inspirar todos os que, no templo ou na comunidade se encontram, para oração, meditação, adoração ou partilha.
Importante nesta participação mais lúcida e despertante será a pessoa sentir-se à vontade ou livre e universal na sua religiosidade ou espiritualidade, pois ainda que seja por nascimento, tradição ou opção de ser membro de qualquer uma das religiões, essa pessoa não ficará fechada nas separatividades e exclusividades, antes comunga na Essência comum espiritual, presente em todos os seres e religiões, que se torna mais sensível ou se manifesta na experiência da oração, do culto, da paz, da luz, da palavra e, portanto da comunhão com o já referido corpo místico já não só da Igreja particular mas da Igreja ou Congregação da Humanidade constituído pelas grandes almas, santos e santas, mestres ou guias, e todos os fiéis de amor…
Neste caminho ascensional da Humanidade, tal como é descrito na Divina Comédia, no de Dante ao Paraíso, conduzido pela divina Sabedoria ou Beatriz, destacaram-se na segunda metade do séc. XX em Portugal algumas individualidades, tais como Dalila Pereira da Costa e Agostinho da Silva, e iremos evocar alguns aspectos dos ensinamentos de Agostinho Silva que poderão impulsionar-nos a compreender e participar mais luminosamente nesta passagem ou trânsito e desafio iniciático dos nossos tempos.
Tendo conversado
regularmente durante vários anos com este notável estimulador de consciências despertas e fraternas, relembro
antes de mais algo essencial nele: «a palavra conversa tem a mesma
origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem
conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao
mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que
entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade.
Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos
converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior».
Em verdade, fui testemunhando nas muitas conversas que travámos a sua universalidade, ouvindo-o defender a unidade espiritual das religiões, meras estradas para o mesmo cimo da montanha de uma vida na terra valiosamente trabalhada, sentida e amada nas suas miudezas e plenificada com a ligação sentida com Deus, o Espírito ou o Todo, ou o que lhe quisermos chamar, conforme ele nos diz numa das suas cartinhas em 1987: «que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça»…
Claro que Agostinho da Silva tinha dentro da sua ampla e fundamentada universalidade e imprevisibilidade criativa certas afinidades electivas, podendo-se até destrinçar ou deslindar veios que o alimentavam e que resultavam tanto de níveis genéticos, geográficos e culturais como também da arcânica (ou misteriosa…) génese da sua individualidade e da sua viagem de espírito descido à terra e depois navegando ou bolinando (expressão que ele tanto gostava…) nos vários mares e continentes.
Ao considerarmos essas forças anímicas e culturais que recebeu familiarmente e já estudante jovem nos contactos com o seu professor, o genial escritor e orador, filósofo e matemático Leonardo Coimbra (ou com o vate Pascoaes, o historiador Jaime Cortesão e outros membros da Renascença Portuguesa, reunidos à volta da revista A Águia), e as que desenvolveu enquanto português das Sete Partidas, e em especial na sua profunda e longa vivência do Brasil, é notório que ele é um elo importante da Tradição Espiritual ou Perene em Portugal, um anel da corrente luminosa que atravessa como um fio as contas do rosário da nossa história, vindo na esteira espumosa ou ardente, por exemplo, de Damião de Goes, Camões, Antero de Quental e de Fernando Pessoa, dinamizando espiritualmente e fazendo avançar mais umas milhas (os que com eles e as suas obras sintonizarem) a travessia no Oceano que nos leva de alguns modos das trevas à luz, do sofrimento ao amor ou mesmo felicidade.
Ora se Antero de Quental encontrara no Budismo e na Filosofia transcendentalista contributos para a sua reflexão sobre o facto religioso, vendo-o já não como ligado a dogmas infundados e a uma realidade social limitadora e decadente ou só devocional, mas antes como meio de libertação social, filosófica, ética e consciencial, isso permitiu-lhe propor tanto um tipo de Budismo coroando o Helenismo, como um Cristianismo de profundidade interior mística, ou ainda um puro espiritualismo supra-religioso.
Será com Fernando Pessoa que encontramos mais funda a demanda ocultista e esotérica, tão ligada às religiões na busca do conhecimento espiritual e divino, e que no seu caso passa, na viajem evolutiva da sua vida, do paganismo transcendental para a gnose iniciática, onde se afirma oposto a todas as religiões organizadas, embora em alguns textos de teorização do V Império ou da Idade de Ouro caracterize-o como a reunificação das várias Religiões, partes dispersas do corpo de Osíris. A sua excessiva atracção intelectual por profecias e mitos, e pelas teorias das ordens de Magia do séc. XIX, em detrimento da pura realização interior espiritual, e logo o seu envolvimento com algumas energias mais complexas, ineficazes ou ilusórias, num meio ainda bastante limitado, a sua frustração amorosa e o seu gostar do vinho, acabaram por acarretar uma morte precoce, não nos deixando o que se poderia esperar do seu génio e fundo labor de pensamento, crença e escrita, do qual os sucessivos inéditos publicados deram bastante conta…
Já Agostinho da Silva, consciente da Tradição Perene, mais prático, viajante e amoroso, viveu e aprofundou bastante prática e convivialmente a vida relacional e espiritual humana e em certos aspectos com bastante originalidade, nomeadamente na demanda do trânsito para a religião universal do Espírito; em primeiro, reflectindo filosófico-teologicamente o misterioso Espírito Santo, na esteira de el-rei Dom Dinis e Isabel de Aragão, Joaquim de Fiora, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, e de certo modo suplantando-os, e deixando-nos várias ideias valiosas neste campo, tal quando escreve em Outubro de 1986 sobre a missão da Comunidade dos Povos da Língua Portuguesa: «guiarem o mundo ao reconhecimento da sua verdadeira essência: a do espírito na matéria esplendendo», acrescentando: «é o Espírito o traço comum de sujeito e objecto, por onde se estabelece todo o diálogo; é o Espírito a fonte indefinível de onde a vida pode fluir sob quaisquer formas, aquelas que eu conheço e venero ou não, e aquelas de que nem sequer posso ter uma ideia; é o Espírito que anima os que estão comigo e os meus adversários; foi o Espírito quem me trouxe o Cristo e quem a outros trouxe Buda, Maomé e Lau-Tseu; foi o Espírito quem me deu Eckhart (1260-1328) e quem me deu a geometria analítica; nele se reconciliam Aristóteles e Platão…».
Esta visão do Espírito, neste passo que não é a de outros textos ou diálogos mas a complementariza, é a da linha do Advaita Vedanta ou do Zen, não reconhecedora do espírito individual mas realçando o universal e único Uno, e é audaciosamente projectada terrenamente por Agostinho da Silva para algo quase impossível nos nossos dias, tão manipulados e de compadrios, mas tão evidente e necessário: «uma política sem partidos, nem sequer o único, é a condição indispensável para que o reino se instaure…»
Talvez algum excesso de optimismo quando viu próximo o reino ou era do Espírito Santo, para o que contribuía tanto o seu franciscanismo (recebida em parte de Jaime Cortesão, que tanto valorizava a vivência simples de S. Francisco de Assis e dos espirituais que o seguiram) como os impulsos fraternos brasileiros, alguns sincretizados no candomblé, isto é, o que nas tradições dos pagés índios foi transplantado e enxertado dos cristãos e das religiões ancestrais africanas, das quais aliás gostava de narrar um conto cosmogónico e bem espiritual de uma tribo do Ruanda no qual Deus, para evitar problemas, deixava uma parte ou imagem de si dentro do coração de cada homem e mulher, a qual deveriam consultar e desenvolver, numa “solução de tornar-se ao mesmo tempo transcendente e imanente (...) ou seja, que o Deus único, pode aparecer de várias maneiras, ser olhado com vários atributos e ter soluções diversas perante um problema».
Da sua ampla transversalidade e abertura religiosa brota já em 1971 o desejo da criação de Cadernos Teológicos, ou talvez melhor Religiosos, afirmando: «não sou mais do que aprendiz de religião, uma espécie de catecúmeno, embora com duas convicções: uma, a central, alicerçada, além de tudo, pelo que meditei no candomblé da casa da grande Olga de Alaketu, e que é a da Fé que me liga às crenças joaquimitas e, portanto, às mais puras dos nossos povos de origem portuguesa ou aos portugueses aculturados, a segunda periférica, a de procurá-la e encontrá-la em todas as religiões, quer as do Deus ausente, quer as do Deus presente».
Original a primeira afirmação: a de ter sido com uma mãe de santo. Olga de Alaketu, que Agostinho, europeu e se aculturando no Brasil, alicerçou mais fundo a fé da vinda do Espírito Santo sonhada e anunciada por Joaquim de Fiora e seus sucessores joaquimistas. A segunda, quanto ao Deus ausente, refere a sua abertura e afinidade com o Taoísmo e o Budismo Zen, que o auxiliavam não só a manter-se no desprendimento e num certo vazio algo franciscano como a sentir que as descobertas da Física moderna confirmavam os dados dos místicos, dos iniciados ou da gente simples de coração, estes referidos na expressão das religiões do Deus presente, não só nos altares ou nas crenças, mas sobretudo nos corações e espíritos humanos.
Oiçamo-lo então ainda um pouco mais neste tema tão actual da religião "universal" (que é o significado etimológico de "católico"...), a do Espírito, sobretudo face aos surtos ocasionais de violência religiosa-racial ou a actos ou afirmações infantis, irresponsáveis ou anti-religiosas de alguns representantes das religiões, da política ou dos media: «Gosto de pensar um Portugal historicamente monoteísta e que estivesse frequentemente procurando o essencial do que já foi ou é, hebraico, cristão e muçulmano; mais ainda que pusesse, objectivo, o que as três religiões têm em comum; que o comparasse em seguida com toda a variedade oriental, africana e índia, e ainda aqui isolasse o comum, para não falarmos já de gregos ou romanos; que fizesse o esforço de sondar ateísmos, e que acabasse por ser o mistério e o silêncio que ficam.»
É o trabalho das novas gerações, sem guerra santa senão aquela contra os nossos defeitos ou vícios, contra o infiel interior, ou contra o que nos torna infiéis à nossa vocação e missão de individuação espiritual, de seres de luz e de amor, de sermos nós próprios, como ele bem poetizou numa quadra:
Em verdade, fui testemunhando nas muitas conversas que travámos a sua universalidade, ouvindo-o defender a unidade espiritual das religiões, meras estradas para o mesmo cimo da montanha de uma vida na terra valiosamente trabalhada, sentida e amada nas suas miudezas e plenificada com a ligação sentida com Deus, o Espírito ou o Todo, ou o que lhe quisermos chamar, conforme ele nos diz numa das suas cartinhas em 1987: «que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça»…
Claro que Agostinho da Silva tinha dentro da sua ampla e fundamentada universalidade e imprevisibilidade criativa certas afinidades electivas, podendo-se até destrinçar ou deslindar veios que o alimentavam e que resultavam tanto de níveis genéticos, geográficos e culturais como também da arcânica (ou misteriosa…) génese da sua individualidade e da sua viagem de espírito descido à terra e depois navegando ou bolinando (expressão que ele tanto gostava…) nos vários mares e continentes.
Ao considerarmos essas forças anímicas e culturais que recebeu familiarmente e já estudante jovem nos contactos com o seu professor, o genial escritor e orador, filósofo e matemático Leonardo Coimbra (ou com o vate Pascoaes, o historiador Jaime Cortesão e outros membros da Renascença Portuguesa, reunidos à volta da revista A Águia), e as que desenvolveu enquanto português das Sete Partidas, e em especial na sua profunda e longa vivência do Brasil, é notório que ele é um elo importante da Tradição Espiritual ou Perene em Portugal, um anel da corrente luminosa que atravessa como um fio as contas do rosário da nossa história, vindo na esteira espumosa ou ardente, por exemplo, de Damião de Goes, Camões, Antero de Quental e de Fernando Pessoa, dinamizando espiritualmente e fazendo avançar mais umas milhas (os que com eles e as suas obras sintonizarem) a travessia no Oceano que nos leva de alguns modos das trevas à luz, do sofrimento ao amor ou mesmo felicidade.
Ora se Antero de Quental encontrara no Budismo e na Filosofia transcendentalista contributos para a sua reflexão sobre o facto religioso, vendo-o já não como ligado a dogmas infundados e a uma realidade social limitadora e decadente ou só devocional, mas antes como meio de libertação social, filosófica, ética e consciencial, isso permitiu-lhe propor tanto um tipo de Budismo coroando o Helenismo, como um Cristianismo de profundidade interior mística, ou ainda um puro espiritualismo supra-religioso.
Será com Fernando Pessoa que encontramos mais funda a demanda ocultista e esotérica, tão ligada às religiões na busca do conhecimento espiritual e divino, e que no seu caso passa, na viajem evolutiva da sua vida, do paganismo transcendental para a gnose iniciática, onde se afirma oposto a todas as religiões organizadas, embora em alguns textos de teorização do V Império ou da Idade de Ouro caracterize-o como a reunificação das várias Religiões, partes dispersas do corpo de Osíris. A sua excessiva atracção intelectual por profecias e mitos, e pelas teorias das ordens de Magia do séc. XIX, em detrimento da pura realização interior espiritual, e logo o seu envolvimento com algumas energias mais complexas, ineficazes ou ilusórias, num meio ainda bastante limitado, a sua frustração amorosa e o seu gostar do vinho, acabaram por acarretar uma morte precoce, não nos deixando o que se poderia esperar do seu génio e fundo labor de pensamento, crença e escrita, do qual os sucessivos inéditos publicados deram bastante conta…
Já Agostinho da Silva, consciente da Tradição Perene, mais prático, viajante e amoroso, viveu e aprofundou bastante prática e convivialmente a vida relacional e espiritual humana e em certos aspectos com bastante originalidade, nomeadamente na demanda do trânsito para a religião universal do Espírito; em primeiro, reflectindo filosófico-teologicamente o misterioso Espírito Santo, na esteira de el-rei Dom Dinis e Isabel de Aragão, Joaquim de Fiora, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, e de certo modo suplantando-os, e deixando-nos várias ideias valiosas neste campo, tal quando escreve em Outubro de 1986 sobre a missão da Comunidade dos Povos da Língua Portuguesa: «guiarem o mundo ao reconhecimento da sua verdadeira essência: a do espírito na matéria esplendendo», acrescentando: «é o Espírito o traço comum de sujeito e objecto, por onde se estabelece todo o diálogo; é o Espírito a fonte indefinível de onde a vida pode fluir sob quaisquer formas, aquelas que eu conheço e venero ou não, e aquelas de que nem sequer posso ter uma ideia; é o Espírito que anima os que estão comigo e os meus adversários; foi o Espírito quem me trouxe o Cristo e quem a outros trouxe Buda, Maomé e Lau-Tseu; foi o Espírito quem me deu Eckhart (1260-1328) e quem me deu a geometria analítica; nele se reconciliam Aristóteles e Platão…».
Esta visão do Espírito, neste passo que não é a de outros textos ou diálogos mas a complementariza, é a da linha do Advaita Vedanta ou do Zen, não reconhecedora do espírito individual mas realçando o universal e único Uno, e é audaciosamente projectada terrenamente por Agostinho da Silva para algo quase impossível nos nossos dias, tão manipulados e de compadrios, mas tão evidente e necessário: «uma política sem partidos, nem sequer o único, é a condição indispensável para que o reino se instaure…»
Talvez algum excesso de optimismo quando viu próximo o reino ou era do Espírito Santo, para o que contribuía tanto o seu franciscanismo (recebida em parte de Jaime Cortesão, que tanto valorizava a vivência simples de S. Francisco de Assis e dos espirituais que o seguiram) como os impulsos fraternos brasileiros, alguns sincretizados no candomblé, isto é, o que nas tradições dos pagés índios foi transplantado e enxertado dos cristãos e das religiões ancestrais africanas, das quais aliás gostava de narrar um conto cosmogónico e bem espiritual de uma tribo do Ruanda no qual Deus, para evitar problemas, deixava uma parte ou imagem de si dentro do coração de cada homem e mulher, a qual deveriam consultar e desenvolver, numa “solução de tornar-se ao mesmo tempo transcendente e imanente (...) ou seja, que o Deus único, pode aparecer de várias maneiras, ser olhado com vários atributos e ter soluções diversas perante um problema».
Da sua ampla transversalidade e abertura religiosa brota já em 1971 o desejo da criação de Cadernos Teológicos, ou talvez melhor Religiosos, afirmando: «não sou mais do que aprendiz de religião, uma espécie de catecúmeno, embora com duas convicções: uma, a central, alicerçada, além de tudo, pelo que meditei no candomblé da casa da grande Olga de Alaketu, e que é a da Fé que me liga às crenças joaquimitas e, portanto, às mais puras dos nossos povos de origem portuguesa ou aos portugueses aculturados, a segunda periférica, a de procurá-la e encontrá-la em todas as religiões, quer as do Deus ausente, quer as do Deus presente».
Original a primeira afirmação: a de ter sido com uma mãe de santo. Olga de Alaketu, que Agostinho, europeu e se aculturando no Brasil, alicerçou mais fundo a fé da vinda do Espírito Santo sonhada e anunciada por Joaquim de Fiora e seus sucessores joaquimistas. A segunda, quanto ao Deus ausente, refere a sua abertura e afinidade com o Taoísmo e o Budismo Zen, que o auxiliavam não só a manter-se no desprendimento e num certo vazio algo franciscano como a sentir que as descobertas da Física moderna confirmavam os dados dos místicos, dos iniciados ou da gente simples de coração, estes referidos na expressão das religiões do Deus presente, não só nos altares ou nas crenças, mas sobretudo nos corações e espíritos humanos.
Relembremos ainda que, nesta linha ecuménica ou de trânsito para a Unidade das Religiões na Religião do Espírito e do Amor, Agostinho da Silva consagrou três dos seus Cadernos de Divulgação aos Colóquios de Erasmo, à Utopia de Thomas More, e à Vida de Vivekananda, o discípulo do místico Ramakrishna (1883-1866), um grande vivenciador da unidade das religiões, da Divindade única que se manifesta sob diversas formas, e acerca de quem já escrevi neste blogue, dado o conhecimento directo que obti dele nas minhas estadias na Índia.
Aliás Agostinho da Silva em 1986, confirmando a importância da sua sintonia com
Ramakrishna (como eu vim anos depois, em 1995, relembrar numa palestra em
Calcutá, no Instituto de Cultura de Ramakrishna), escrevia: «ando muito
pelas linhas de pensamento ou sentimento de um Ramakrishna ou de um
Espinosa, sua contrapartida filosófica, de cristãos, maometanos,
animistas e budistas ou hinduístas, que a todos desejaria abraçar
naquele catolicismo, naquele universalismo».Oiçamo-lo então ainda um pouco mais neste tema tão actual da religião "universal" (que é o significado etimológico de "católico"...), a do Espírito, sobretudo face aos surtos ocasionais de violência religiosa-racial ou a actos ou afirmações infantis, irresponsáveis ou anti-religiosas de alguns representantes das religiões, da política ou dos media: «Gosto de pensar um Portugal historicamente monoteísta e que estivesse frequentemente procurando o essencial do que já foi ou é, hebraico, cristão e muçulmano; mais ainda que pusesse, objectivo, o que as três religiões têm em comum; que o comparasse em seguida com toda a variedade oriental, africana e índia, e ainda aqui isolasse o comum, para não falarmos já de gregos ou romanos; que fizesse o esforço de sondar ateísmos, e que acabasse por ser o mistério e o silêncio que ficam.»
É o trabalho das novas gerações, sem guerra santa senão aquela contra os nossos defeitos ou vícios, contra o infiel interior, ou contra o que nos torna infiéis à nossa vocação e missão de individuação espiritual, de seres de luz e de amor, de sermos nós próprios, como ele bem poetizou numa quadra:
Não peço a Deus nada alheio
com o que em mim há me vou,
só lhe rogo bem humilde
me faça ser o que sou.
com o que em mim há me vou,
só lhe rogo bem humilde
me faça ser o que sou.
Acerca desta ideia de “Fiel do Amor”, a si próprio, ao espírito lembremo-nos do que escreveu em 1-7-87: «os infiéis que hoje importam são os que, pelas restrições económicas, educacionais ou políticas ou filosóficas, são condenados por toda a vida à infidelidade à sua própria vocação, àquilo de único a que vieram ao mundo, e afinal morrem sem ter vivido. Culpados somos todos se nos entretivermos com festas de pretérito: antecipemos as do futuro, que mais para isso somos portugueses e todos os que herdarem ou herdaram».
Talvez que sob a sua orientação, nos seus últimos anos de vida, se pudessem ter feito alguns encontros ecuménicos, aprofundamentos das realizações e doutrinas religiosas ou mesmo festas do futuro, mas por diversas razões tal não aconteceu com a dimensão necessária, ainda que ocorressem conferências, encontros, diálogos bem luminosos.
Mas mesmo já em 1964-65, num artigo da revista Espiral, ele estava consciente de que «de qualquer modo, pouco se fez quanto à teologia do Espírito Santo, em si própria, e nas ligações que parecem existir com atitudes como as do Tao ou as do Zen; talvez neste ponto o estudo teológico levasse a entender melhor a facilidade e a fecundidade das ligações dos portugueses dos Descobrimentos com as civilizações do Oriente e desse base de partida para que realmente se unissem as duas formas de comportamento no mundo. Por outro lado, se afastariam muitas das incompreensões de [o Concílio de] Trento, muitos dos irmãos separados se poderiam reunir, muita hostil catequese se poderia pôr de parte».
A actualidade destes escritos de Agostinho da Silva é tão evidente que custa vermos festividades do Espírito Santo demasiado marcadas pelo álcool ou a comida desregrada, ou as exteriorizações cerimoniais e sentimentais, o que manifesta a ausência ainda dos tais estudos teológicos ou sobretudo da sua divulgação e assimilação pelo público geral, como a dos encontros de aprofundamento espiritual que ele sonhava (e para o qual escreveu tantas cartinhas aos amigos), dinamizados por «uma só ordem de todas as religiões, uma ordem fundada nas três liberdades tradicionais e essenciais de não possuir coisas, de não possuir pessoas e de não possuir a si próprio. Os três votos como diríamos. Esta Ordem nova para o mundo terá que tomar a si os três grandes jogos do universo: 1º criar beleza. 2º servir. 3º rezar, o que significa que todo o melhor do pensamento se concentrará na meditação do Espírito e na instauração do seu Reino (...) Nenhum instrumento de Quinto Império o dará sem oração. Só por ela virá esse império estendido a todas as nações do mundo, a todas elas revelando o espírito».
Anotemos a sintonia dupla com Antero de Quental, tanto na sua crítica ao redutor e opressivo Concilio de Trento, como também na ideação dum Ordem de contemplativos, por Antero de Quental, denominada de Mateiros, em cuja prática estão os sempre actuais ou necessários desprendimento, desapego e simplicidade face à crise de desorientação e reorientação económica e monetária, ética e espiritual em que a humanidade entrou nos últimos anos, e cada vez mais desde que o império oligárquico do dólar e do Ocidente entrou em guerra com os Estados que preferem a multipolaridade à Nova Ordem Mundial globalista liderada pelo anglo-americanos e seus alinhados e vendidos coligados.
Apontados assim alguns dos materiais de construção (para que não seja só de sonho e letras…) da ponte que muitos desejam ou anseiam ver construída e cruzada não só por ousados peregrinos ou heterodoxos místicos, ou religiosos já universalistas mas também por povos livres nas suas tradições e escolhas, e famílias alegres e despreocupadas ou curiosas, ou os respeitadores viajantes ou peregrinos, como é cada ser nesta vida, resta-nos relançar o apelo a que cada vez mais se compreenda, estude e aprofunde a comparatividade de religiões e das práticas espirituais, das compreensões ambientalistas e dos preceitos éticos, de forma a que surjam livros adoptados nas escolas, talvez até sob a égide da UNESCO e das Nações Unidas, cujo título poderia ser Manual da Unidade das Religiões, Manual da Religião (ou religiosidade) Planetária, Manuel da Educação Religiosa, Manual da religiosidade da Terra, ou o que vier a ser...
Eis um convite interior e exterior aos mais conscientes da Unidade do Espírito ou com asas ou penas (e corações…) mais flamejantes em direcção à Unicidade Divina e da Verdade.
Realização espiritual. Pintura de Bô Yin Râ. |
5 comentários:
Bem Haja!!!
Muitas graças, alma discreta!
Grata por contribuir para esta oportunidade de aprofundamento espiritual.
❤
Graças muitas, unknown e anónimo, pelas vossas apreciações e desejos de boas inspirações e realizações!
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