domingo, 11 de fevereiro de 2024

Um conto espiritual: O sopro do vento e do espírito impulsiona-nos montanha acima.

                                    

Admirava pela janela o vento forte a abanar o grande carvalho na linha do pôr do sol mas foi a porta que se abriu subitamente, fazendo-me sentir algo surpreendido um vento mensageiro e animado a entrar.
Quedei espantado e interiormente interroguei-me: O que quererá, o que será?
E intuí ser um convite a sair de casa e a caminhar.
Soprava forte lá fora, mas gostava de desafios, de caminhar de noite sob as estrelas, e decidi-me a sair do abrigo da casa. 

                                              
Uma calma grande parecia cair do céu estrelado e pairar, enquanto o caminho íngreme para a montanha parecia cintilar no meio do lusco-fusco do crepúsculo.
As folhas eram arrastadas pelo vento junto ao chão e empurravam-me e fui embrenhando-me pelos carvalhos e castanheiros e os penedos graníticos. Parecia uma estranha marcha aquela em que me encontrava, guiado pelo vento invisível e as folhas do chão que volteavam, e pensei mesmo numa marcha entre o fúnebre e o nupcial. Senti porém que tudo dependia da minha alma, da sua visão e por isso procurava só descortinar vultos simpáticos enquanto avançava para a clareira.

Ao chegar a ela, observei destacar-se num dos topos um grupo de  carvalhos e castanheiros maiores e com mais idade, com os troncos muito esculpidos, carregados de mistérios. Saudei-os psiquicamente, sem saber se eram habitados por espíritos da natureza, se por devas ou anjos das árvores mais individualizados e dispostos a comunicarem connosco.
O vento criara um remoinho com as folhas numa zona da clareira e para aí senti que me devia dirigir por ser o sítio de maior poder e, ao entrar nele, senti-o como um círculo mágico, intensificando por conjunções subtis, telúricas e celestiais as minhas energias interiores e gerando um calor forte sentido pelo meu corpo e ser, talvez correspondente à minha aspiração ao sagrado e ao divino intensificada naquele momento.
Subitamente senti a clareira tornar-se um cimo, uma rampa de lançamento ou aterragem e tudo à volta parecia arder numa cintilação vibratória especial. Os meus braços lentamente abriram-se, esticaram-se e o coração e os pulmões começaram a respirar em comunicação com todos os seres subtis que eu pressentia encontrarem-se naquele local e momento. Era o aqui e agora.
Uma estrela cadente sulcou o céu, vinda das proximidades do brilhante planeta Júpiter e, repentinamente, o meu corpo espiritual começou a alargar-se pela clareira e a expandir-se para o céu estrelado,  que estremecia num cintilar
sincopado ou sincrónico do cântico das cigarras. A minha consciência sentia-a já pouco limitada ao corpo e o coração subtil estava mais quente, como  um sol espiritual.
Os meus ouvidos desentupiram-se num estalido e percepcionei uma espécie de acorde sinfónico provindo das estrelas e planetas misturando-se
com o das cigarras e com os sons conhecidos do arvoredo soprado pelo vento.
Quando desci de novo à consciência de clareira e do corpo na Terra, pareceu-me que passos misteriosos se acercavam de vários lados, e logo os meus sentidos se intensificaram, como se fosse um solitário na noite imensa, qual lobo sem alcateia nas faldas da serra.
Rajadas de vento batiam na minha face e nas carvalhos e castanheiros à volta e por momentos o animal em mim, selvagem e solitário, sentiu todos os medos e desejos possíveis da sua natureza.
Uma ave piou na clareira, i
nesperadamente, e fez-me abrir de novo as janelas do olhar para a copa das árvores e o céu. Eram duas corujas grandes que pareciam troçar de mim, ou apenas brincar e enriquecer a musicalidade do momento.
O anoitecer estava a tornar-se ricamente povoada de sons, pois de repente uma voz humana chegou até ao meu ser e ouvidos, e tocou-me com uma tal qualidade interior que houve como que um embargar da garganta ou o começo dum choro de alegria, de criança.
Intuía quem vinha lá, em resposta a tantas orações e meditações, e vi então um ser, com o sorriso que emanava e que como um braço do rio da Via Láctea me envolvia.
 O Mestre
desvendou-se então numa das entradas da clareira. Era mesmo ele. Vinha só e os seus olhos eram duas estrelas faiscantes, misericordiosas, amorosas, capazes de limpar qualquer negatividade da alma em que tocassem, e pareciam as contrapartes órbicas dum coração tão cheio de amor e amplo como o infinito, que o meu ser foi rapidamente arrancado para fora do seu estado normal e tornou-se uma cana verde ao vento, um fogo a ser soprado com mestria.
- Mestre, Mestre, exclamei, com a voz a ajoelhar-se na garganta e a deixar-me inclinado, reverente, emudecido, mil vezes grato.
- Vem, disse-me ele, e os seus braços abertos eram um convite maravilhoso a entrar na sua consciência e felicidade.
Ao avançar senti as pernas como que de chumbo e, olhando-as, vi subtilmente nelas todos os medos da minha vida aferrados como um cão a morder-me, ou uma bruxa a fazer-me mover lentamente, ou os inimigos a quererem imobilizar-me.
Tive de olhar intensamente, até à medula dos ossos, e gritar-lhes: - Ide-vos, liberto-vos, dissolvo-vos, na felicidade e liberdade que também é vossa. E subitamente vi como que sombras negras a dissolverem-se pelo chão abaixo, lestas até por  irem ser transmutadas e depois absorvidas pelas raízes dos harmoniosos e poderosos carvalhos, que cintilavam como cristais de quartzo, crucificados há muito, entre o menosprezo e a incompreensão dos homens quanto aos seres subtis que os animam ou às energias cósmicas que os alimentam de luz vital e amor.
Senti isto profunda e claramente porque a minha imobilidade, postura e transmutação me ligavam com os carvalhos e porque a minha árvore interior subitamente despertava e crescia, limpa e desafogada dos medos e limitações.
Um calor suave subia pela minha coluna e o cimo da minha cabeça parecia crepitar. O coração espiritual desabrochava plenamente e sentia-me a abraçar e a incluir no amor os carvalhos e todas as árvores e seres do planeta, enquanto o mestre sorria e dizia-me telepaticamente: - Avança agora, eis o Homem.
E ao avançar para ele, vi-o como o Cristo transfigurado, como um portador do espírito e religado à Divindade, que me acolhia e nele subtilmente entrei, despertando mais à minha consciência espiritual . E se hoje,  como qualquer ser na Terra,
vou ora curvado pelos sofrimentos, ora apressado com os olhos no chão ou no céu, ora irradiando verdade e amor, a verdade é que no meu peito, visão e sentir posso comungar e intensificar mais esta realização espiritual e divina, perene.

Pintura de Bô Yin Râ.

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