Comemorando-se hoje 24 de Fevereiro de 2024 o 561º aniversário do nascimento de Giovanni Pico della Mirandola, resolvemos homenageá-lo com dois artigos, um comparando-o com Sri Ramakrishna Paramahansa, o grande místico bengali do séc. XIX, e já publicado no blogue, e outro, este, a transcrição dum Esboço Biográfico que José Vitorino de Pina Martins realizou em 1963, no V Centenário do seu nascimento, editado então pelo Instituto Português da Sociedade Científica de Goerres, num pequeno folheto de oito páginas, hoje bastante raro, e que era distribuído a quem visitasse a exposição bibliográfica na sede do referido instituto, na rua Visconde de Seabra.
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José V. de Pina Martins, na sua veste doutoral sorbónica, sob as bênçãos de Pico, na sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje já flutuando no akasa ou éter da memória nossa, ou sabedoria de cor de quem a viu e amou. Demos graças. |
«Giovanni Pico della Mirandola, um dos maiores humanistas do Quattrocento, nasceu no castelo de Mirandola a 24 de Feverero de 1463 e morreu em 17 de Novembro de 1494, com 32 anos incompletos. No breve ciclo da sua vida, realizou uma obra verdadeiramente singular, mais única do que raro, quer pelo ardor com que se entregou à sua missão de conciliador entre as mais diversas e antitéticas doutrinas quer pela universalidadde de interesses culturais que definiram e caracterizaram a sua forma mentis. [a sua vera fisionomia ou forma psíquica.]
Aos 14 anos incompletos frequenta já a Universidade de Bolonha, onde estuda Direito canónico. Um ano após, livre das suas decisões por via da morte da mãe, abandona a carreira de legista, que o não fascinava, e dedica-se às Letras, tendo sido discípulo em Ferrara, de Giovanni-Battista Guarino. Em 1480, encontramo-lo na metrópole do aristotelismo averroísta, em Pádua, onde Elia del Medigo o dirige nos primeiros estudos da especulação oriental. A estada paduana é interrompida por uma visita a Paris durante o inverno de 1482-1483, e na capital francesa toma um primeiro contacto com a orientação escolástica parisiense.
Em 1483-1484 Marsilio Ficino acabara de compor e dar à luz a sua versão e comentários do corpus platónico. Giovanni Pico. que então visita Florença convence o amigo a que decida verter em latim a obra de Plotino. O Conde de Concórdia encontra-se, portanto, na origem dos estudos neoplatónicos de Florença e especialmente dos estudos plotinianos.
Em 1485, com vinte e dois anos, o humanista volta a Paris, desta feita para aprofundar os seus estudos sobre a Escolástica tomista e escotista, que encarava o pensamento aristotélico de maneira diversa. Pico, todavia, procura eliminar todas as diversidades, para só pôr em realce os pontos de concordância. É em Paris que concebe o grandioso plano de reduzir o scibile a 900 teses, que redige, auxiliado pelo seu mestre Elia del Medigo [judeu cretense,1458-1493]. Essas conclusiones deviam ser defendidas em Roma perante um público formado por estudiosos que aceitassem o desafio da disputa, fixado para depois da Epifania de 1487. O objectivo essencial deste plano, que não agradou a muitas amigas de Pico entre eles Ermolau Barbaro, era o de estabelecer uma apologética audaz da verdade universal do Cristianismo, a cujos princípios fundamentais seria possível, segundo o proponente, reduzir todas as filosofias e doutrinas, ainda as mais aberrantes e contraditórias. [Uma utopia de universalidade, condicionada pela supremacia do Cristianismo, mas que mesmo assim não foi aceite pelas autoridades cristãs.]
A Cúria romana, contudo, não aprova a realização da disputa e condena mesma, como heréticas, treze das teses a apresentar. O humanista defende-se com energia das acusações da comissão inquisitorial, nomeada por Inocêncio VIII, considerando os seus membros como ignorantes, mas de nada lhe vale um tal juízo, pois vê-se obrigado a uma retratação em Março de 1487. Não renuncia, todavia, à sua defesa, e redige a Apologia das suas proposições, obra que, como é natural, mais exacerbou as cóleras romanas. Em Agosto o Papa condena, em bloco, todas as teses e o jovem sábio, perseguido por um breve pontifício que recomenda, aos príncipes cristãos, a detenção do Conde Mirandolano, foge para França e é preso em Janeiro de 1488, perto do Lyon. A Universidade de Paris, por seu lado, proíbe a Apologia do seu antigo aluno, mas junto do Papa sucedem-se as diligências a favor do ardoroso «herético». Na primavera desse ano, o nobre humanista vê-se restituído à liberdade e aceita a hospitalidade de Lourenço o Magnífico, que o presenteia com uma vila nos arredores de Florença, nas doces colinas fiesolanas.
O desco de parto, prato de mesa de nascimento oferecido à mãe de Lorenzo, Lucrezia Tornabuoni, quando este nasce, fadando-o para a Fama. |
O período 1488-1492 é, talvez, o mais fecundo deste «excomungado» tão religioso e pio. Em Novembro de 1488 Pico completara os vinte e cinco anos, e as teses, assim como o discurso De Hominis dignitate e a Apologia, tinham-no tornado conhecido e admirado pela sua ciência universal. A oratio em louvor do homem constitui mesmo, na verdade, o autêntico manifesto do humanismo quatrocentista. Da mesma época ou pouco depois é o seu Commento alla Canzone d'Amore, escrita por Girolamo Benivieni segundo o estilo dos platónicos, isto é, segundo a orientação das ideias de Ficino no comentário ao Simpósio [de Platão]. A atitude de Pico não é de aceitação sem reserva das ideias de grande autor da Teologia Platónica, e chega ao ponto de verberar a superficialidade de Marsilio Ficino e algumas das suas inexactidões, ou por ele tidas como tal.
O Heptaplus, composto segundo o início do Génesis, é de 1489: nesta obra, que é um verdadeiro tratado de opificio [do italiano, fábrica ou obra] mundi e de opificio hominis, alia o humanista toda a ciência bíblica e patrística aos preceitos mais arrojados do hermetismo hebraico e alexandrino. Não era livro que pudesse conciliar-lhe o beneplácito da Cúria romana...
As suas relações com Frei Jerónimo de Ferrara, o famoso Savonarola, intensificam-se. Num grande sábio e tratado sobre a astrologia judiciária, Pico della Mirandola retomava a dialéctica anti-astrológica da tradição cristã e patrística, para pôr em evidência, contra a opinião de alguns humanistas como Pontano, por exemplo, a liberdade suprema do homem. Savonarola redige, por esta altura, uma súmula destas ideias, aceitando como seu mestre aquele que, na ordem espiritual, o seguia docilmente pela senda de uma espiritualidade eleita.
Da mesma época é o tratado De Ente et Uno, formoso e inacabado capítulo de uma inacabada suma sobre a concórdia universal, tentativa audaz de conciliação do aristotelismo com o platonismo. O discípulo das escolas de Pádua e de Paris sabe muito bem harmonizar os princípios da escolásticas arabizante e da glosa tomista com uma interpretação platónica do mundo e da vida. Era a visão plotiniana do homem que lhe permitia poder efectivar essa concórdia. Mas, de 1491 a 1494, o filósofo fica silencioso. Em 1493, o Papa Borgia Alexandre VI que, no ano anterior, ascendera à cátedra romana, absolve Pico e declara-o livre de qualquer heresia formal, enquanto o vibrante autor da Apologia leva agora, mansamente, uma vida de exemplar austeridade, na contemplação que uma pia philosophia lhe facultava e nas serenas reflexões para cujo mundo excelso uma docta religio o conduzia progressivamente.
[E agora um tão belo quão evocador fim por Pina Martins:] Aquele 17 de Novembro de 1494, dia outonal que, nas colinas de Florença, encerra o ciclo de vida do Mirandulano, condena o pensamento europeu a ficar para sempre privado do estudo que seria, porventura [ou muito provavelmente não, pois o que escreveu já tem muito para muitos século], a sua obra-prima: a «Concórdia» do Conde Mirandolano, príncipe dos humanistas, o mais puro espírito do pensamento quatrocentista. Envenenado, talvez, por um dos seus fâmulos. Pico segue de perto para o túmulo aquele que o protegera, Lorenzo de Medici, morto em 1492, Ermolao Barbaro em 1493 e Poliziano em 1494 [os seus principais amigos]; segui-lo-ão naquela década, para mundo ultra-terreno, Frei Jerónimo de Ferrara [Savonarola], tragicamente sacrificado em 1498, e Marsilio Ficino desaparecido em 1499.» Muita Luz e Amor Divinos religando-nos a todos!
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