terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Livros que abri, páginas que li: "O Retrato do padre Lagrange", por Jean Guitton. Diálogos sobre Deus, exegese, profecias e a Verdade.

                                                

 Livro que abri, páginas que li...

 Jean Guitton (18.8.1901-21.3.1999) foi um notável professor liceal e universitário, historiador, ensaísta e biógrafo católico, que viveu mais de noventa anos, em aprendizagens tal com Loisy, Carcopino e Lagrange e com grande produção literária, passando por uma fase mais crítica após a 2ª grande Guerra, em que esteve preso dois anos pelos alemães, ao ser considerado um pró-alemão, e por  ser um apoiante do marechal Pétain, chefe do governo de Vichy colaboracionista, vindo depois a ser limpo de tais acusações e reintegrado no ensino universitário (Filosofia, na Sorbonne, desde 1955) e desfrutando amizades literárias, políticas e religiosas importantes, entrando mesmo na Academia Francesa em 1961,

Na obra Portrait du père Lagrange, Celui qui a reconcilié la science et la fois, ou seja, Retrato do Padre Lagrange, Aquele que reconciliou a ciência e a fé, um título algo exagerado para um trabalho de exegese bíblica apenas mais fundada arqueológica e linguisticamente, Jean Guitton biografa bem o  exegeta e teólogo cristão Marie-Joseph Lagrange (7.3.1855-10.3.1938), a pedido, algo reparador, do papa Paul VI que decidira canonizá-lo. Era um erudito dominicano, famoso por ter realizado importantes investigações sobre a Bíblia e Cristianismo,  fundador  em Jerusalém em 1890 da Escola Prática de Estudos Bíblicos (depois Escola Bíblica e Arqueológica Francesa), donde sairá a prestigiada Bíblia de Jerusalém, e em 1892 da Revue biblique, em 1898 da coleccão Études bibliques. Destacará muito bem o  seu percurso eriçado de dificuldades no seio da Igreja, pelas suspeitas do seu método histórico e da sua exegese mais fundamentada serem modernistas, pelas inimizades (tal a do jesuíta alemão Leopold Fonck) mais do que polémicas, e pelas censuras a que pelo voto de obediência teve de se submeter anos a fio, tal a do Papa Pio X que o impediu de publicar qualquer trabalho durante dez anos. A sua tradução dos Quatro Evangelhos e os estudos preparatórios serão muito apreciados e como dissemos  o seu processo de beatificação está em andamento.
Num in-4º de 244 pági
nas, que foi dado à luz em Paris, em 1994, Jean Guitton,  após uma primeira parte com capítulos biográficos por vezes emocionantes pelas perseguições sofridas, insere numa segunda parte, "Encontros", extractos valiosos dos diálogos que travaram em Paris e Jerusalém, que nos permitem compreender melhor tanto o pensamento e a personalidade de Lagrange como as linhas de sabedoria e de demanda que realizavam e "conversaram", no sentido de Agostinho da Silva do convergir para a verdade, para a unidade ou mesmo converter ao mais alto em nós...

                                               

Num desses apontamentos valiosos, nas pp.162-63, o Padre Lagrande defende-se de ser um escritor para as pessoas mais simples, já que admitia a hipótese de ter sido real a vinda dos reis magos, afirmando: "esta condenação prévia duma hipótese qualquer, este direito concedido à razão de condenar uma experiência, é radicalmente contrário ao espírito científico, e no meu sentir [ou ver], é um pecado contra o espírito. Nas ciências, esta suspeita prévia não pode existir." Destaquemos esta identificação do estreitismo dogmático ao famoso e misterioso "pecado contra o Espírito santo", que segundo os Evangelhos seria o menos perdoável. Anote-se que noutro momento da sua vida (como Guitton no narra), considerou também os erros de gramática como pecados contra o Espírito Santo, provavelmente no sentido de serem contra a ordem gramatical e racional, o Logos, e a sua acção nos que escrevem...

Já na pág. 164 o Padre Lagrange contradiz-se um pouco, pois depois de justificar-se de explicar Deus como um homem barbudo aos aldeões, e interrogar-se: «fiz mal de agir assim, como o fizeram desde a origem aqueles que falavam ao povo, desde Jonas, S. Vicente de Paula, o cura d'Ars?», conta a sua charla ou prédica pela rádio na Bulgária: «Queridos amigos comunistas búlgaros, vós sois ateus, não acreditais em Deus porque vos ensinam que Deus é barbudo. Rejeitais a barba com razão, mas negais Deus sem razão. No fundo, o que é um ateu? Vou dizer-vos: um ateu é um espírito que tem uma ideia de Deus mais pura que os seus contemporâneos. O exemplo mais famoso é o de Sócrates que foi condenado pelo tribunal político ateniense porque ele era ateu e que corrompia a juventude.
Aos meus olhos, a vo
ssa ignorância é sinal da vossa pureza. Vós não quereis o Deus de barba e orelhas como está representado sobre os vossos ícones. Tendes razão em rejeitar a barba, mas errais muito ao rejeitar Deus.»  E contradiz-se porque mesmo aos aldeões devia ter explicado melhor Deus sem antropomorfismo, embora seja bem sábia a compreensão da pureza ou não contaminação de visão  presente em Sócrates ou num simples ateu, bem assinalada aliás logo por ele com uma visão intimista da Divindade, pois de facto o padre Lagrange iniciara a sua rábula do Deus barbudo, com as seguintes palavras, bem valiosas de serem mais praticadas ou sentidas: «Supõe que expões às pessoas da tua aldeia a ideia mística que Deus não cessa de falar a nossa alma e que a nossa alma não cessa de conversar com Deus. Para falar ao povo, eu faço um desenho que representa um Deus barbudo, com uma barba florida como Carlos Magno e duas orelhas. Errarei ao agir assim....» Esta fala, conversa ou oração incessante, numa linha até erasmiana, conforme partilhei no seu Modo de Orar a Deus, pode e deve ser  sentida como uma maior atenção ao nosso interior espiritual.

Valioso também, na  página 165, num subcapítulo intitulado Lagrange e Bergson, Jean Guiton contar:«Como eu era o discípulo e herdeiro espiritual de Bergson, o padre Lagrange interrogava-me sobre textos que o embaraçavam no último livro de Bergson chamado As duas Fontes da Moral e da Religião», e assim Guiton esclareceu-o quanto à fé cristã de Bergson pois este, rebatendo a hipótese crítica do cientista e investigador religioso Paul-Louis Couchoud (1879-1959, Le Mystère de Jesus), que negava até a existência histórica de Jesus (tal como tal Arthur Drews e Herman Raschake) afirmara-lhe que «a humanidade e a historicidade dos Evangelhos parecem-me um aquisição eterna».
Valioso o diálogo entre os dois ac
erca do "dramatizante dualista" Blaise Pascal e a concordância verdadeira ou fabricada entre profecias antigas do Antigo Testamento e as ocorrências da vida de Jesus nas narrativas evangélicas, e onde Jean Guitton surge bem mais próximo da verdade e não condescendendo, como em parte o P. Lagrange, com a alteração da mensagem de Jesus: «Pascal raciocinava assim: há no Antigo Testamento profecias, isto é anúncios sobre o futuro, anúncios muito precisos nos detalhes como nos momentos temporais. Ora, segundo Pascal, essas profecias, feitas muitos séculos antes de Jesus. foram verificadas na história do Jesus, nomeadamente as profecias feitas pelo profeta Isaías sobre a  morte ignominiosa de Jesus que nós chamamos a Paixão. Que pensa das profecias, ou melhor do argumento das profecias de Pascal [e que os comuns cristãos também aceitam], já que passou toda a sua vida a estudar o Antigo e o Novo Testamento e que por consequência é mais competente que qualquer pessoas para nos dizer se Pascal tinha razão [nesta aposta] ou se Pascal se enganou, em função das últimas descobertas da exegese moderna?

Responde o Padre Lagrange: «É verdade que em 1906 em Jerusalém, fiz uma conferência sobre esse assunto tão difícil e contudo capital. Dir-vos-ei em que condições tal conferência foi realizada em Santo Estevão, Jerusalém. Acabara de sair um livro de Sully Prudhomme (16.3.1839-6.9.1907), o poeta celebre que foi o primeiro prémio Nobel de Literatura e que tinha uma muito grande autoridade moral, e Sully Prudomme sugeria que os argumentos de Pascal [de quem era uma grande conhecedor] tinham sido arruinados pela exegese moderna [dos Evangelhos e do Cristianismo]. Pascal dera a maior importância à profecia, e considerava-a como o selo que Deus dá à sua obra anunciando-a antecipadamente. 

Sully Prudhomme
Jean Guitton interrompe-o então e diz-lhe: «- Permita-me, meu padre, indicar-lhe qual é a minha dificuldade quanto às profecias, seja em Pascal ou em si. E esta dificuldade surge cada vez mais à medida que se avança na exegese, e ela inquieta muitos dos nossos contemporâneos.
Se as profecias, dizem-nos, se realizam [ou realizaram], é por uma razão muito simples, é porque o Evangelho, a história evangélica tal como nós a encontramos hoje nos quatro Evangelhos, foi fabricada pelos redactores para realizarem [ou cumprirem] as profecias e a partir das profecias do Antigo Testamento. De modo que nós não nos espantamos nada que Jesus tenha ressuscitado "segundo as Escrituras" porque as Escrituras, ou seja as profecias, foram a fonte das narrativas dos Evangelhos. De modo que o argumento das profecias está arruinado, já que em vez de provar a verdade da religião, demonstra as fraudes que estão na sua origem.»
Bem apertado por Jean Guitton, o P. Lagrange admite que haja nos Evangelhos partes que foram induzidas pelas profecias do Antigo Testamento, mas realça que o mais importante foi «o anúncio que viria um Messias, rei, de qualquer nome que se chame, e que faria uma verdadeira revolução religiosa que se estenderia à humanidade inteira. O problema é então saber se este ser anunciado veio e se tal ser que anunciaram é precisamente o Nazareno», e tal é o que pensaram o apóstolos, Pascal e eu.
E passando os dois a discutirem se as profecias tem dois sentidos, um literal e outro espiritual ( e podem-se até discernir mais), um nos efeitos superficiais, o outro nas causas profundas, Jean Guitton atreve-se a citar de um comentador de Pascal um texto valioso, ou como ele chama "notável", e que bem meditado nos pode aproximar mais da verdade e do seu Campo unificado de energia consciência informação: «Não há qualquer dúvida que todas as verdades são eternas, que elas estão ligadas e dependentes umas das outras, e este encadeamento não é só para as verdades naturais e morais, mas ainda é para as verdades de facto que podemos dizer também de certo modo eternas, pois todas estando atribuídas [ou designadas] a certos pontos da eternidade e do espaço, elas compõem um corpo que subiste como um todo [tout à la fois] para Deus»

E fiquemos com esta imagem de um corpo místico da Verdade, ou do Logos, Inteligência, Amor, Razão e Ordem do mundo, e que para os cristãos tem a sua cabeça em Jesus Cristo, o mestre da hoje em genocídio Terra Santa... Que a paz e a fraternidade possam surgir o mais rápido possível...

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