sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Pico della Mirandola e Ramakrishna Paramahamsa, dois espíritos universais, em si e nas mensagens. Nas comemorações dos 561 anos de Pico della Mirandola.

Pico della Mirandola no meio de Marsilio Ficino e Angelo Poliziano. Fresco por Cosimo Roselli, de 1488, e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio, em Florença...

Para celebrarmos os 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola, pois nasceu em Mirandola a 24 Fevereiro de 1463, um espírito pioneiro na sua universalidade filosófica e teológica, resolvemos compará-lo com Sri Ramakrishna Paramahansa, nascido em Karmapur a 18 de Fevereiro de 1836, já que ambos, embora separados por uma grande diferença temporal,  e um na Itália e outro na Índia, nas suas filosofias, teologias e visão espiritual  sintetizaram e unificaram longas tradições anteriores e brilharam e influenciaram muitos...

Pico della Mirandola não se limitou à tradição filosófica grego-romana nem a religiosidade Católica, pois aceitou tanto a Cabala e textos apócrifos judaico-cristãos como nos seus amplos estudos filosóficos, religiosos e espirituais acolheu ainda a sabedoria egípcia, caldaica, persa e árabe discernindo uma mesma tradição de Filosofia Perene em todas e considerando os diversos profetas e mestres como elos dessa mesma tradição, posição que também tinha sido investigada e defendida pioneiramente pelo seu amigo Marsilio Ficino (19.10.1433 - 1.10.1499).

Já Ramakrishna, conhecendo  desde cedo por vivência e diálogos (na sua aldeia, desde criança, ouvia os yogis e sadhus que estacionavam junto ao templo) quase toda a tradição indiana, que depois aprende mais profunda e intimamente com yogis que o vão visitar ao seu templo junto ao Ganges, vai por fim pela sua humildade, curiosidade e sensibilidade conhecer também a essência da religião cristã e islâmica, bem como ainda a jaina e budista, não por estudos nem  pelos diálogos com religiosos ou devotos delas, mas pela sua capacidade psico-espiritual de conseguir vivenciar por dentro (a islâmica impulsionada por um sufi que lhe transmitiu o dikr, ou oração-repetição sagrada adequada) e ver subtilmente os mestres fundadores dessas religiões e ter como que fusões, unificações ou samadhis com eles.

Pintura naif indiana de um discípulo de Ramakrishna, representando a fraternidade ecuménica cristã, islâmica e das diferentes tradições indianas...

Ambos viveram significativamente em épocas denominadas de de renascimento, Pico della Mirandola no do Humanismo Europeu, do culto das letras e filosofias antigas e da dignidade humana, nos séculos XV-XVI, e Ramakrishna, no Renascimento de Bengala, no séc. XIX,  das tentativas de modernização ou racionalização da sociedade indiana e do Sanatana Dharma (eterna religião ou ordem), e em que se destacaram Raja Ram Mohan Roy (22.5.1772-27.9.1833),  (Devendranath Tagore (1817-1905), e seu filho Rabindranatah Tagore (1861-1941), que receberia mesmo um prémio Nobel de Literatura em 1913, Dayananda Saraswati (1824-1883), Keshub Chandra Sen  (1838-1884) e Bepin Chandra Pal (7.11.1858-20.5.1932) que chegou a afirmar:«Ramakrishna Paramahamsa não pertencia a qualquer seita ou denominação, ou se quisemos, pertencia a todas as seitas e denominações, tanto Indianas como não-Indianas. Era um verdadeiro universalista, mas o seu universalismo não era o universalismo da abstração».

Ambos sendo muito sensíveis e místicos, ou seja, dotados de capacidades de vivência interior, clarividente e, sobretudo Ramakrishna, instática  e extática, chegaram a percepções dos mundos e seres espirituais e da Divindade por diversas tradições e modos ou metodologias.

Pico della Mirandola trilhou contudo um caminho bastante mais intelectual e filosófico, com estudos do aristotelismo averroísta em Pádua, e da escolástica de S. Tomás de Aquino e de Duns Escoto em Paris, pois dotado de alma bem sensível e devota também intuiria, ou pelo menos descreveu bem e com maior ou menor clarividência, algo dos níveis mais elevados da realidade, tal o espírito, os Anjos e demais espíritos celestiais da Hierarquia, o Amor, a Trindade, a Divindade.

Pintura quinhentista de Pico della Mirandola, que chegou a ser oferecida ao Museu de Arte Antiga, por Primula, a mulher de José V. de Pina Martins, após a partida dele para os mundos espirituais, quem sabe tornado vizinho ou confabulator de Pico.

Em muitas páginas transmite-nos os seus ensinamentos unificadores e ascensionais valiosos, embora a dado momento  se tivesse envolvido demasiado na Cabala e tentasse explicar o Génesis (tal como no começo do séc. XX o padre Lagrange, que foi impedido de publicar os seus trabalhos porque abalavam a literalidade do entendimento comum cristão) dando à luz em 1489 o Heptaplo, Exposição septiforme dos seis dias da Criação, com uma complicada hermenêutica, platónica, cristã e cabalista, ora com bom sentido espiritual, ora muito imaginativamente, esoterizando algo forçadamente a narrativa simples ou primária mosaica, que para Pico enraizava na sabedoria egípcia, e ambas ocultando alegoricamente as profundas verdades que Pico agora desvendava e partilhava...

Anote-se que em 1486-1487, a sua tentativa de discutir 900 teses de conhecimento universal não foi bem recebida pelo Papa e por alguns teólogos da comissão de inquérito, os quais, face a teses provenientes de fontes extra-católicas ou com sintomas de simpatia por doutrinas suspeitas, consideraram heréticas treze dessas proposições, porque “renovam os erros dos gentios e as perfídias dos judeus”, que contudo eram das mais estimulantes de aprofundamentos...

Giovanni Pico resolveu corajosamente replicar e escreve uma valiosa e profunda Apologia às treze proposições, condenadas (tais como: se Jesus descera aos Infernos, o que aconteceria no fim dos tempos aos condenados por pecado mortal, se a magia e a cabala certificavam a divindade de Cristo, o que devíamos pensar de Orígenes estar condenado, e outras sobre a Eucaristia, os milagres de Jesus, os Anjos, etc.),  o que irritando a Cúria romana  leva à sua condenação por  um breve pontifício em Agosto  de 1487, pedindo-se a sua prisão às autoridades. Pico foge para França, chega a ser preso por uns meses, mas Lourenço de Medicis intercede e recebe-o em Florença onde ele estabiliza e se dedica às obras seguintes, um Comentário a uma canção de Amor e GirolamoBenivieni, o Heptaplo, os Comentários ao Salmo 195 e os Argumentos contra a Astrologia Adivinhatória, defendendo fortemente o livre-arbítrio, e que teve muito cedo tradução parcial para português por Frei António de Beja (1493-1517), Contra o Juízo dos Astrólogos. Só em 18 de Junho de 1493 é que por um breve dirigido ao "dilecto filho e nobre homem Ioanni Pico  conde de Mirandola", o Papa Alexandre VI, um Borgia sábio, retira tal carga das costas e coração do genial e inocente conde da Concordia, que de facto viveu antes do tempo propício e morreu tão precocemente. Será o seu sobrinho Giovanni Francesco Pico que editará as suas obras completas em 1496, com várias cartas, que terão então grande sucesso no século XVI (com sete edições em Itália, a última de 1557, e visível na imagem) e por diante, sobretudo a sua Oração da Dignidade Humana, hoje tão necessária de ser lida e ouvida em alguns aspectos tocantes à identidade do género humano no cosmos hierárquico e das suas potencialidades de degeneração  e de elevação.

                                                 

Já Ramakrishna Paramahamsa foi um mestre vivo sem problemas quanto à ortodoxia, já que era um sacerdote, de casta imemorial brâmane, e soube, quando questionado ou investigado, brilhar tanto com a sua sabedoria,  boa disposição, simplicidade e sobretudo capacidade de entrar em contacto com o espírito e com a Divindade, que convencia, ou então tocava as pessoas que o visitaram, ou o viam a celebrar o culto da deusa, ou a ensinar, a cantar e em meditação profunda. E muitos dos  diálogos nos últimos anos da sua vida foram registados por um discípulo sábio, Mahendranath Gupta, que os veio a publicar como o Evangelho de Ramakrishna, em 1897, sem dúvida um dos mais belos registos diários de um mestre na tradição dos Vedas, do yoga, da bhakti ou devoção, do Sanatana Dharma

Com efeito a metodologia básica vivida, realizada e depois ensinada, frequentemente em parábolas, foi a tradicional da Índia, a yoguica e, numa síntese das diferentes vias, Ramakrishna privilegia e realça para a época, idade ou era em que se estava (e está, na ciclicidade das Yugas), a Kali Yuga, a sadhana bhakti, ou seja, as práticas de aproximação afectiva, devocional e de amor à Divindade, qualquer que seja a forma ou encarnação, concepção ou nome com que Ela seja adorada, invocada,  vivenciada.

Pico também exerceu um magistério porém mais irradiação da presença luminosa e graciosa nas conversas e debates, nos livros e nas cerca de setenta cartas (e a extensa, dirigida ao seu sobrinho, uns meses antes de morrer, é bem notável na vibração e nas recomendações espirituais), pois não era um sacerdote e foi mesmo condenado, e foi pois pela dimensão de filósofo e metafísico universalista, bom conhecedor da tradição grega (desde Pitágoras e Orfeu aos neo-platónicos), cristã (e em especial a patrística e Orígenes) e oriental (além dos persas chega a referir os gimnosofistas, os yogis e jainas da Índia, antepassados de Ramakrishna), que conseguiu libertar-se das malhas das concepções limitadoras judaico-cristãs.

 A sua obra mais especulativa, e em que tenta conciliar Platão e Aristótles,e chegar ao conhecimento da igualdade do Ser e do Um, título da sua obra de 1489, De Ente et Uno, representa no fundo um conhecimento muito  elevado mas teórico ou intelectual face às vivências  e realizações do Ser e do Um de Ramakrishna, que via e vibrava tanto com a Divindade una, o Brahman, transcendente e imanente e que estava por detrás da sua forma preferida pessoal, a deusa Mãe, Kali, que ele via e adorava na sua mulher Sarada Devi e nas mulheres, tanto com os fundadores das religiões que mais tinham realizado o Ser  ou Realidade primordial, e assim, em Dashineswar, no seu quarto, tinha uma estátua de Mahavira, o último Tirtankara do Jainismo, e outra de Jesus, diante das quais na aurora e no crepúsculo acendia incenso e devoção.

E tal como Ramakrishna valoriza bastante a via do amor à Divindade na época sombria (Kali Yuga) em que segundo a tradição védica estavamos, também Pico della Miranda, ao aceitar mais  a visão sombria do Renascimento que  o monge dominicano e profeta Savonarola denunciava na Florença dos Medici, sobretudo pelo paganismo e o sensualismo-luxúria,  enveredará e apelará a uma  vida simples e ascética e de entrega do coração a Jesus e à Divindade.

Ora se no caminho de realização de Ramakrisna houve iniciações, passagens de um estado limitado, o da exclusividade do seu amor à deusa Kali, a outro mais abrangente, nomeadamente ao deixar essa visão feminina da Divindade e chegar ao Primordial Brahman, e de estar em plena comunhão com o espírito e frequentemente com a Divindade, em Pico della Mirandola houve uma certa retração face à sua universalidade inicial, pois tanto sofreu a condenação papal por seis anos como se emaranhou nas infinitas complexidades da conciliação do aristotelismo e do platonismo, ou na de encontrar uma harmonia intelectual entre as diversas escolas filosóficas e tradições religiosas, pelo que, quando por fim, mais influenciado ou afim de  Savonarola desvaloriza as tradições pré-cristãs e torna-se mais um simples devoto e místico cristão, não sabemos se nessa dinâmica, por um lado de estreitamento, terá intensificado ou ampliado  a sua auto-gnose espiritual e religação divina íntima....

Giovanni Pico della Mirandola morre muito cedo, aos 31 anos, ardendo de converter as pessoas a um Cristianismo mais espiritual, e  de febre no seu corpo-alma luminoso, satvico. Ramakrishna, que passou anos a tentar iluminar e harmonizar, e até curar os que o rodeavam, sofre um cancro na garganta e em pouco  tempo parte mas já com 50 anos, o que nos yogis da Índia na época não era assim tão pouco. Serão swami Vivekananda e os outros discípulos, que formam a ordem Ramakrishna, que irão fortalecer a filosofia (sobretudo a vedântica) e a religião indiana, tomando de certa forma o facho que os homens do Renascimento bengali tinham acendido com o Brahmo Shaba, o Arya Samaj, o Brahmo Samaj e a Nova Dispensação mas que depois grupalmente se foi apagando ou extinguindo, embora sucessivos mestres em diferentes linhas  ou tradições (darshanas) e práticas (sadhanas) nunca tenham faltado ou faltem na Índia.

Se hoje as celebrações do nascimento e morte (segundo o calendário lunar) de Sri Ramakrishna e de swami Vivekananda (o seu discípulo principal, e que estivera presente com grande impacto no I Parlamento das Religiões, em Chicago, em 1893, tão pioneiro no comparativismo religioso universalista ao vivo)  juntam milhares de pessoas com grande fervor devocional, com cerimónias transmitidas online,  havendo vários centros e templos activos da Ordem, já o espírito de Pico della Mirandola é invocado  comungado por poucos (e entre nós devemos mencionar o meu amigo e mestre José V. de Pina Martins), embora a sua saga e obra continuem a gerar estudos e livros de alguns estudiosos do Renascimento e sobretudo do Hermetismo, já que vêm nele um dos pioneiros, em especial com Marsilio Ficino, da afirmação de uma Filosofia Perene, que  alguns autores foram prosseguindo e desenvolvendo até chegarmos aos últimos de mais valor, já no séc. XX, tais Ananda Coomaraswamy (1877-1947), René Guénon (1886-1951), Julio Evola (1898-1974) e Jacques de Marquette. A jovem russa Daria Dugina Platonova, filha do notável pensador russo Aleksander Dugin, estava a desenvolver-se bem nesta linha, mas extremistas cortaram-lhe a vida na Terra, tão promissora que era... Um pecado contra o Espírito Santo, imperdoável, dir-se-á...



Deve-se realçar-se que a unidade das religiões, assente ou exponenciada como religião universal, de Ramakrishna Paramahansa estava baseada nas diversas realizações espirituais e divinas que ele vivera e ensinara. Era pois de experiência e vivência psico-espiritual, enquanto que a tradição da Filosofia Perene nos últimos mencionados foi mais intelectual, mais de compreensão e não tanto de realização com os sentidos espirituais já despertos nesta vida, algo que Paramahansa Ramakrishna conseguira,  algo inatamente e algo a partir de práticas meditativas e devocionais, nas quais  a realização afectiva ou amorosa, para o ser divino no interior da alma, foi  demandada com persistente devoção até  atingir-se tal ligação, visão ou unificação.  
Ramakrishna Paramahansa ensinava isto aos seus discípulos, conseguindo mesmo despertar em alguns fortes experiências espirituais e de visão divina, algo que nem Pico della Mirandola (mas sabemos pouco dos seus encontros-diálogos-orações mais afins espirituais) nem os últimos expoentes da Filosofia Perene conseguiam tão plenamente, embora saibamos que, mesmo assim, eles impressionaram alguns, e, por exemplo, Jacques de Marquette conta esse impacto intelecto-espiritual de Ananda Coomaraswamy, em Boston, e sobretudo o efeito espiritual do seu mestre indiano, Guru Ranade (3.6.1886-6.6.1957), outro valioso pioneiro do comparativismo filosófico e da espiritualidade, e por experiência directa, e a quem já consagramos alguns artigos no blogue. 
Anote-se que dois notáveis pensadores ocidentais admiraram muito Ramakhrisna e dedicaram-lhe duas obras importantes que contextualizam a sua vida e obra e realçam a sua universalidade: Max Müller (6.12.1823 a 28.11.1900), um dos fundadores da Ciência das Religiões e do seu Comparativismo, com Ramakrishna, His Life and Sayings, de 1898, e Romain Rolland (29.1.1866 a 30.12.1944), prémio Nobel da Literatura em 1915, La Vie de Ramakhisna, de 1947, ambos já abordados no blogue. A estes, seguiram-se muitos outros estudos. Quanto a Pico della Mirandola são também inúmeros e bem valiosos...

Meditemos, para concluir luminosamente, um dos belos ensinamentos de Pico della Mirandola,  saudando-o com muito amor!

"A única coisa que nos faz receber de Deus o que lhe pedirmos é o esperarmos conseguir tal. E se respeitarmos estas duas condições, a de só pedir a Deus o que nos é salutar e a de pedir ardentemente o que queremos, com a esperança firme que Deus nos satisfará, nunca serão realizadas em vão as nossas orações".

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