terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Marcos Algarve: Antero de Quental, tolstoiano, e a transição do Romantismo para o Naturalismo. Nos "Mistérios da Praia de Rocha", 1926.

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Marcos Algarve é hoje um escritor quase esquecido mas que deixou obra valiosa. O seu nome era  Francisco Marques da Luz e nascera em Olhão, em 7 de Outubro de 1875 e viveu até 8 de Setembro de 1960, Sintra, e destacou-se como jornalista, escritor e político, já que fora sempre republicano,  chegando mesmo a Presidente da Câmara de Portimão.

Na sua bibliografia encontramos  Canções d' alguém,1903; Entre um berço e um túmulo:desgraça íntima,1904;  Amor à Francesa, 1924; Mistérios da Praia da Rocha, 1926; e, finalmente, Calvário Bendito,1935. 
Além da colaboração em jornais republicanos, tal  A Luta e O Mundo, onde se destacou no ataque a João Franco, por vezes com retumbante sucesso, e em jornais algarvios, editou O Xul e o Almanach do Algarve e colaborou na revista Alma Nova, publicada entre 1915 e 1930.

Ora Mistérios da Praia de Rocha, dado à luz em Famalicão, Tipografia Minerva, em 1926, in-4º de 331 páginas, numa edição  cuidada e bela, mostra bem a grande cultura e sensibilidade de Marcos Algarve, pois sob a forma dum livro de novelas e crónicas, ensaios e memórias, deparamos com boas caracterizações da vida literária e cultural portuguesa e seus agentes, desde o século XVI ao XX, referindo e abordando Antero Quental várias vezes.  A descrição da passagem do Romantismo para o Naturalismo e Realismo e a caracterização enaltecedora Antero destacam-se na sua visão culta e sincera, instrutiva e valiosa. 
 
 Os doze capítulos servem para introduzir histórias, contos, dissertações,  ensaios, críticas, passados sempre no ambiente da Praia da Rocha e da sua sociedade, beleza, vida, história. O 1º, intitulado Poetas, e em resposta a sua interrogação:«quanto poetas terão ficado extasiados na Praia da Rocha?», Marcos Algarve aprecia, dos cerca de vinte e cinco escritores e poetas que viveram ou estiveram na Rocha, - os com quem mais privou, descrevendo mais detalhadamente seus modos de ser e características literárias, tal Luís Botelho, Paulino de Oliveira, João Lúcio, Pedro Escarlate (este estudando-o por indicação de Bruno), Manuel da Silva Gaio e sobretudo Sampaio Bruno, com quem teve muito boas relações, dedicando-lhe algumas páginas. Há duas menções a Antero, e uma delas valiosa e que transparece bem a sua empatia com ele: «O assombroso Antero de Quental, o santo Antero da Bondade e da Revolta, não chegou a visitar Rocha, embora fosse num patacho algarvio em lugar de João de Deus, à América-do Norte [em 1867] com Joaquim de Almeida Negrão, capitão de navios, possuidor de vasta cultura e ao tempo paladino da filosofia de Augusto Comte», que sabemos de positivista teve muito pouco, sendo mesmo criticado por alguns deles. 
Há ainda outras menções a Antero com interesse nos capítulos seguintes, nomeadamente comparando-o com João de Deus, e onde Marcos trai um certo indiferentismo religioso, mas a maior emerge no capítulo final Serões da Rocha, que começa castiçamente assim: «Coimbra é o coração de Portugal - disse-o algures uma alma suspirosa de artista.
Coimbra, terra amada dos doutores e das tricanas, vive no espírito das gerações académicas com o seu intenso perfume de poesia e graça.
As gerações, que ali desbravaram a leiva mental da sua personalidade, conservam através das vicissitudes da existência uma grata recordação do tempo em que a mocidade só vê flores e sorrisos, mulheres e serenatas. (...).
Após esta abertura bela na página 209, e em traços largos referir alguns estudantes e personagens da história de Coimbra, entramos então, na 211 página, na transição: «Coimbra manteve durante séculos o monopólio do ensino universitário, cujas origens se esbatem na fundação da sua gloriosa escola superior, laboratório de humanidades onde se adestraram os melhores talentos da literatura e jurisprudência nacionais
Almeida Garret e Alexandre Herculano, regressados do exílio, foram os iniciadores do Romantismo em Portugal. A escola clássica envelhecera e os seus moldes artísticos definharam-se.
Da Alemanha soprava então a brisa fecundante duma nova arte, que a legião audaz de Novalis, Scheling, Schlegel, Tieck, Uhland e os irmãos Grimm desenvolveu bizarramente no vasto campo da Filosofia, da Estética, da Literatura e da História.
Com a cooperação analítica de Lessing e Wieland, esse renascimento literário encontrou a sua mais poderosa expressão em Goethe e Schiller.
Galgando as fronteiras germânicas, penetrou na Inglaterra, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal.
Na poesia e na prosa, como na pintura e na música, a nova arte aliciou intérpretes duma sublimidade helénica ou duma grandeza romana.
De Henri Heine a Walter Scott, de Mazoni a Chateaubriand, de José Zorilla a Mendes Leal, que de teorias e sistemas, ideias e horizontes, emoções e ritmos modernos.
Os intelectuais de Coimbra fundaram então O Trovador, revista dirigida pelo fulgurante poeta João de Lemos e colaborada por Xavier Cordeiro, Costa Pereira, Couto Monteiro, Gonçalves Lima e José Freire de Serpa.
O Trovador foi o arauto da nova escola literária em que sobressaíram, além dos dois mestres que a estudaram no desterro, Soares de Passos, Xavier Novais, Pereira da Cunha, Tomás Ribeiro, Bulhão Pato e Gomes de Amorim.
O cego António Feliciano de Castilho, com a sua linguagem duma pureza e harmonia impecáveis, foi o guia vidente dessa mocidade sonhadora.
João de Lemos, poeta fogoso e escultural do Romantismo, legou-nos sentidas visões de amor e patriotismo no Cancioneiro, Canções da Tarde e Lua Londres.
Decorridos anos, o romantismo exauria-se na suas normas amaneiradas e sediças. O caruncho do tempo apressara-lhe os sintomas de tédio, de esterilidade, de fraqueza.
A escola romântica, igualmente como sucedera à escola clássica, estava contaminada, pelos anos e abusos, da gangrena senil.
Manuel Pinheiro Chagas, com a publicação do Poema da Mocidade, dera aso a que o mestre Castilho, sob a forma dum prefácio, estimulasse a reacção literária que, em surdina, já lavrava no espírito rebelde da academia coimbrã.
 Foi Antero do Quental, com o seu folheto Bom senso e bom gosto, [1865] quem iniciou a derrocada. Alma de iluminado temperamento, duma violência e duma sensibilidade tolstoianas, reuniu em volta da sua bandeira de guerra uma falange de proletários do pensamento.
Antero era um combatente indomável, sisudo e impulsivo, apaixonado e possante.

A polémica foi demorada, tumultuosa e remoçadora, e o Romantismo baqueou para dar lugar ao Naturalismo.
Na esteira de Antero, insuflados saudavelmente pelas modernas concepções da Arte e da Ciência, foram chegando Eça de Queirós, Guilherme Azevedo, Simões Dias, Alexandre da Conceição, Guilherme Braga, Cesário Verde, Macedo Papança, José Augusto Vieira, António Enes, Barros Lobos, Fialho de Almeida, Teixeira de Queirós e outros.
João de Deus, pela ternura da arte espontânea, não se ligou a nenhuma escola ou grupo.
Teófilo Braga, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Gomes Leal e Cândido Figueiredo também marcaram brilhantemente o seu auxílio ao Naturalismo.
Individualidades superiores, desempoeiradas e livres, seguiram mais tarde, na crítica, no romance, na história, na filosofia e na poesia, orientações diferentes.
E dessa manifesta supremacia intelectual, mantida até às proximidades de 1885, apareceu um dia A Folha, jornal de João Penha, o estranho parnasiano do Vinho e Fel.
Em um quarto da Couraça dos Apóstolos, na lendária Coimbra, viviam na sua intimidade Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo, formando os três estudantes de direito um esotérico triângulo de bardos, cáusticos e sentimentais, de qualidades antagónicas frequentes de vezes, mas sempre distintas. (...)»
E após desenvolver bastante a apreciação de Gonçalves Crespo, continuará a sua visão da história da literatura e sobretudo da poesia portuguesa do século XIX e XX, passando pelos parnasianos, simbolistas, os decadentes, a hoste revolucionária de 1890, ou a geração do Ultimato, e Francisco Bastos, Alexandre Braga, Cesário Verde,  Augusto. Gil e Fausto Guedes Teixeira, etc.
 
 A obra merece ser bem lida, e a longa transcrição contextualiza fidedignamente  Antero de Quental, ou não fosse Marcos Algarve também um idealista, preparado na luta pela República, e dando sempre provas de grande dedicação à luta pela verdade, a justiça e o bem, e por isso no espelho da sua alma intuiu bem certos aspectos da alma prometaica de Antero de Quental.  
Talvez tivesse lido o livro Cidades e Paisagens, de 1889, de Jaime de Magalhães Lima, esse sim um tolstoiano mais pleno, obra onde descreve as impressões da visita que lhe fez em Isnaia Poliana, tendo entregado a Tolstoi os Sonetos completos de Antero e que Tolstoi apreciou, registando tal no seu diário, publicado postumamente. Mas já desconhecia as apreciações que Antero fez em duas cartas de 1889 a Jaime de Magalhães de Lima, nas quais elogiando em Tolstoi a sua individualidade, a sua santidade ascética e o desprendimento do mundo,  põe em causa que as pessoas possam chegar a tal facilmente, sem terem passado pela vida natural e seus prazeres, como ele passara. Antero não aprova a sua veemência evangélica, a "renovação do Evangelismo",  e demarca-se de tal erupção, facilitada pelos "entusiastas e visionários, já que considerava, na sua visão madura e idealística, que "o período sentimental da humanidade passou", talvez como o escrever-se poesia, «pois só a razão consciente e a virtude racional podem resolver os problemas duma idade adulta da humanidade». É pois um Antero já no final sua da vida, em 1889, que conhecemos a apreciar Tolstoi dum modo já não juvenil e entusiasta, como Marcos Algarve, mas um ser que vê a necessária evolução  humana como a passagem gradual da vida natural "dos sentidos, dos instintos e da imaginação" para um estado de desprendimento interno, ligação ao ser espiritual e acção impessoal pelo Bem.    
No entanto releiamos a visão de Marcos Algarve: «Antero de Quental, alma de iluminado temperamento, duma violência e duma sensibilidade tolstoianas, reuniu em volta da sua bandeira de guerra uma falange de proletários do pensamento.
Antero era um combatente indomável, sisudo e impulsivo, apaixonado e possante.»
Muita Luz e Amor nas almas de Antero de Quental e de Marcos Algarve (ou Francisco Marques da Luz), e possamos nós desenvolver as qualidades e acções propícias à realização do nosso dharma, missão ou dever, para o Bem da Humanidade

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