sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus Contemporâneos": Cardoso Júnior, Faure de Rosa, Augusto Casimiro, Francisco Torrinha, Aarão de Lacerda e Damião de Peres.

O genial e corajoso Leonardo Coimbra nos anos vinte, já depois de ter sido ministro, contestado, da Instrução Pública, em 1919 e 1923.
No 26º contributo, para o livro Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus Contemporâneos, [Francisco José] Cardoso Júnior, nascido  a 14 de Junho de 1884, de família do Tabuaço, notável professor, jornalista e escritor (que chegou a director da Escola Normal do Porto  mas com o movimento militar do 28 de Maio foi logo demitido por ser um republicano democrata), em O meu Preito transmite e, por veras afinidades muito bem, a aspiração à Verdade que impulsionava e guiava Leonardo Coimbra,  e transcreveremos quando o caracteriza como professor e mestre, e abordagem à sua faceta mais contestada: a reforma da Universidade e do Ensino religioso, já que nos iluminam quanto à dimensão bem vasta e profunda da alma de Leonardo Coimbra, filho de um médico que morreu cedo, e que quis sempre continuar essa missão do pai no plano das almas, da filosofia, da ética, da espiritualidade:
O pai, o médico António Coimbra (1848-1901). Lux!
«Evoco sempre com estremecimento a memória de Leonardo Coimbra. Formosíssimo e luminoso espírito (com os defeitos e as virtudes peculiares de tantos homens eminentes), mereceu em  vida a minha admiração humilde, merece na imortalidade o meu preito sincero. Conheci-o nos belos tempos da propaganda da República, quando mal saíamos da adolescência; acompanhei-o na sua fulgurante actividade de tribuno e de professor; tive a honra de partilhar do seu convívio, sem embargo de estar distante de tantos dos seus discípulos na cátedra e no verdadeiro Jardim de Academo [em Atenas] que era a tertúlia em que ele professava naturalmente, ainda quando não tinha a pretensão de ensinar. Tal como Sócrates - e divergindo tantas vezes de Sócrates - Leonardo Coimbra comprazia-se em ensinar e discutir, nos encontros fortuitos da rua, nas deambulações com os alunos ou com os amigos, ora contrariando-os, ara animando-os, com perfeita bonomia lhaneza, como quem cumpre o mais simples e humano dos deveres.
Ensinar, transmitir a quem o esc
utava as doutrinas apreendidas rapidamente, mercê das suas prodigiosas faculdades de assimilação, o produto das suas elucubrações constantes, as dúvidas que agitavam o seu espírito cintilante e que o abrasavam tantas vezes - eram para ele uma necessidade imperativa. Aquilo que muitos julgariam versatilidade, inconstância, contradição em matéria, política e religiosa, ou filosófica - se é lícito separar alguma dessas modalidades da sua omnímoda actividade espiritual - era apenas o anseio vivo, tenaz, persistente e procurar, se não a verdade absoluta, aquela verdade que aos humanos é dado esperar atingir».
Depois desta excelente descrição da alma em
constante aspiração de realizar e partilhar a verdade, oiçamo-lo acerca das intervenções públicas mais criticadas: «Tão vasta e variada era a sua cultura, que tratava, sem preparação especial, os temas mais díspares com igual à vontade. Sim, pude ouvi-lo em reunião pública na crítica à reforma do ensino primário de Março de 1911, reforma que denominou uma obra de instinto, e na justificação da reforma da organização o ensino filosófico na Faculdade de Letras. E vem a propósito, para confirmar asserções anteriores, dizer que Aarão de Lacerda, então estudante de Coimbra, pertenceu ao número dos que o combateram, e foi depois escolhido para o corpo docente da Faculdade de Letras do Porto. A escolha desse corpo docente, feito em hora feliz por Leonardo Coimbra, testemunha a ausência de preocupações sectárias, de partidarismo político. E podemos acrescentar que a criação dessa Faculdade, donde saiu um verdadeiro escol, representa na vida de Leonardo Coimbra alto título de glória.
Quando um dia, que oxalá não tarde, essa Faculdade ressurgir, o seu espírito pairará nas suas aulas, e no átrio deve erguer-se o busto do egrégio fundador e patrono.
Quero, a
ntes de rematar as pobres palavras que dedico à memória do grande tribuno, recordar que foi a mim que Leonardo Coimbra recorreu para justificar a sua proposta de concessão de liberdade de ensino religioso nas escolas particulares. Partidário da escola neutra, consciente de que o lugar do ensino religioso pertence à família e às confissões respectivas, não hesitei em explicar publicamente o pensamento do ministro [Leonardo Coimbra], glosando a sua afirmação:"O livre pensamento é um método e não uma doutrina". Bem haja a memória de Mayer Garção  e de Louis Derouet, que acolheram as minhas palavras modestas, dando-lhes especial relevo na Manhã, não por mim, mas pelo prestígio do ministro, independentemente de ele ter ou não razão. O que teve foi coragem moral para arrostar com a oposição que a sua proposta, aliás inconstitucional, despertou.»

O 27º contributo, do escritor neo-realista, natural de Goa, e coronel Faure de Rosa (1912-1985), é certamente importante pois intitulando-o As experiências metapsíquicas  de Leonardo Coimbra, aborda-as baseando-se em dados transmitidos por Sant'anna Dionísio e nas quarenta páginas que Leonardo lhes  dedica na sua A Luta pela Imortalidade, transcrevendo este passo: «A primeira conquista da metapsicologia - escreve ele - é que os nossos conhecimentos não têm por única porta os sentidos normais. Vemos e ouvimos dentro de certos limites e normas. Essas normas são excedidas em certos indivíduos e condições, cujo determinismo está longe da nossa apreensão. É assim que se verificam casos de transmissão dum pensamento sem a sua expressão sensível. São por vezes, de ordem experimental, as mais das vezes são espontâneos.» E dá alguns exemplos, tal o o seu filho de quatro anos «uma noite estando ao meu lado deitado no meu braço e lendo eu um livro, ele pronunciou claramente a palavra "genie".» Surpreendido, verifiquei que tinha acabado de ler mentalmente a palavra genie». Leonardo narra mais casos de telepatia, por ele praticados, ou os que o jornalista Silva Passos e o romancista Sousa Costa lhe confessaram.
Faure de Rosa, praticante e teorizado
r do espiritismo, pensa que Leonardo não teve mais respostas dos espíritos que invocava com alguns médiuns seus alunos ou amigos, «um deles era amigo íntimo de Leonardo Coimbra e seu colega no professorado: o Dr. Ângelo Ribeiro [e já lhe dedicámos um texto no blogue], a quem Leonardo Coimbra apresenta como um temperamento dramatizante», porque Leonardo «não se acomodava com as indicações do Além; em vez de se deixar dirigir pelos conselhos dos desencarnados, era ele quem pretendia a direcção das indagações»,  e por essa teimosia pouco conseguira nas suas tentativas, embora numa delas comprovara-se mesmo, por misteriosa carta enviada por um médium a pedido dum espírito, para o professor Leonardo Coimbra, no Liceu Gil Vicente, os dados apresentados numa sessão espírita anterior. Leonardo, confrontado, com as dificuldades de explicação e criticando certos aspectos das sessões espíritas, mas sempre animado pela demanda da verdade, concluiria:«é sempre bom que a certeza não nos adormeça e, em pleno mistério, uma grande emoção nos erga dramáticos, assaltantes, pugnazes conquistadores da imortalidade.»

Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e Leonardo Coimbra, nas vésperas de Augusto partir para a Flandres, na guerra contra a Alemanha imperialista, e onde corajosamente se cobriu de glória e condecorações...
O autor do 28º contributo, Para o In Memoriam de Leonardo Coimbra, Augusto Casimiro (1889-1967), natural de Amarante, foi um companheiro de Leonardo no movimento da Renascença Portuguesa, e da revista A Águia, e depois co-fundador da Seara Nova, cedo se destacando  pela sua sensibilidade e coragem, participando com Leonardo em comícios pela República e entrando nas batalhas na I grande Guerra, onde esteve com Jaime Cortesão (e foi amplamente condecorado), ambos vindo a descrever as suas vivências. Pelo seu democratismo republicano foi perseguido pelo regime de Salazar, demitido do Exército e desterrado de 1933 a 1936 para Cabo Verde, ironia do destino ele que tinha sido governador interino de Angola de 1923-1926. Mas nunca deixou de ser um opositor activo do regime salazarista e um prolífero escritor, até para sobreviver, deixando uma extensa obra histórica, literária, patriótica e memorialista. Neste contributo Augusto Casimiro descreve sumariamente a longa e fraterna amizade  de 1909 a 1926, e as múltiplas ocasiões em que colaboraram em comícios ou em revistas, narrando depois alguns episódios desses tempo agitados e emocionantes, "desse tempo de mais viva camaradagem". Começa-o assim: «Para mim, Leonardo foi, sobretudo, um grande orador. Dele evoco a lírica eloquência, a figura dominadora e bela no alor mais vivo dos seus discursos que ressoam ainda na minha memória com toda a sua música imperativa e viril. (...) Entre os seus amigos e admiradores fui talvez aquele em quem a amizade e a admiração mais frequentemente ousaram dizer-se na desassombrada confiança que discorda ou censura sem deixar de admirar e amar. O melhor prémio da minha ousadia vinha-me dele, sempre, com o silêncio confirmativo e cheio de consciência ou as palavras ricas de explicação fraterna que mais nos aproximavam, justificando-o.»

Dos dois episódios da genialidade da eloquência de Leonardo Coimbra, o último passado em 1916, quando Leonardo, Jaime Cortesão e ele propagandeavam a intervenção portuguesa na grande Guerra, numa Associação em Arroios, é quase comovente, pois depois de Augusto Casimiro ter falado e sido interpelado no fim, ainda que discretamente, por ter utilizado a palavra Deus, emocionado, sem saber ainda como responder, eis que Leonardo, tocou-lhe no braço e pediu-lhe para dar a resposta, irradiando o seu fogo espiritual numa intervenção genial, e na qual, ainda que alguns pudessem não o ter acompanhado, «nenhum deixou de aplaudi-lo com um arrebato que era um eco da sua ardente emoção.»

Anote-se que em 1916, na revista A Águia, Leonardo Coimbra escrevera umas linhas valiosas sobre A Primavera de Deus, o último livro então de Augusto Casimiro, onde a dado momento, após ter dito que «só é grande a palavra dita a sós, a conversa do homem com a própria alma», afirma:«O canto do Poeta começa no mais íntimo da própria alma, onde os amores, as aspirações, a fome de comunicar se concentram num ponto incandescente e indestrutível./ A alma do poeta é, então, um firmamento de eternos astros, um oceano de indissolúvel fundo./ Alguma coisa de certo e substancial se encontrou, e o Poeta vai subindo o canto, do Abismo à Altura. (...) O Poeta ergue o seu canto, o ar abriu-se à sua voz, o Espaço recebeu a forma do seu verbo; eis um acordo que o anima e sustenta», intuindo e exprimindo bem certas fases do processo criativo da Poesia...
                                                
O 28º contributo, de Francisco To
rrinha (1879-1955), natural de Joane, Famalicão, formado em Teologia, especialista de Latim, professor na Faculdade de Letras criada por Leonardo e ainda no liceu Rodrigues de Freitas até 1949, aí conheceu  Leonardo, que vinha com fama «de ateu, inimigo da sociedade constituída, um demolidor, a verdadeira pessoa do Anti-Cristo vindo ao mundo só para o mal» [no rodar da fortuna, o mesmo dizem hoje os milhazes  de Putin] (...) mas, depois, convivendo com ele, compreenderá que afinal «alma franca, generosa e leal, Leonardo Coimbra rejubilava com a alegria dos outros e enternecia-se com os sofrimentos e agruras alheias a tal ponto que se esquecia, por vezes, de si e dos seus para valer a amigos e até a desconhecidos não bafejados pela sorte. O seu ministro das Finanças - como ele dizia [e quem sabe se seria piada a Salazar], referindo-se à Esposa - o que o livrava de apuros, se a tempo conseguia arrecadar a receita dos seus honorários.[Pouco conhecidos estes aspectos domésticos, mas significativos].
«Perdulário do seu extraordinário talen
to, quer como professor quer como orador, o que lhe granjeou grande prestígio e renome, despendia naquele meio os frutos do seu saber, de mistura com críticas e apreciações, que lhe criaram inimizades e invejas e avolumaram o número de detractores que por todos os meios procuravam amesquinhar-lhe o mérito».
Concluirá confessando que durante
algum tempo, «por causa do espírito crítico e cáustico e da agressividade de temperamento que lhe eram atribuídas, não era sem constrangimento que eu fazia o interrogatório nos júris de exame a que ele assistia. Por fim tudo se dissipou e hoje só me resta uma saudade profunda desse grande Homem, que tão tragicamente desapareceu na pujança e fulgor do seu talento.»
                                                            
O 29º contributo é de
Aarão de Lacerda (1890-1947), escritor e professor, sobretudo de história de Arte, director da revista Dyonisios e nele, em duas breves páginas, transmite bastante do espiritual que era Leonardo, um mestre que passou fulgurante e até apedrejado entre nós. Conheceu-o no Porto dos comícios pela República, depois, «a par de Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão, na sua magnífica cruzada da Renascença Portuguesa», vindo a ser em seguida chamado para ser professor no sonho efémero mas de tanta sabedoria e alegria esfuziante da Faculdade de Letras do Porto. Eis como Aarão de Lacerda começa as Duas Palavras de Saudade: «Na admiração ninguém excederá a que lhe devotei, desde há muito, do momento em que pela primeira vez o ouvi, e fui envolvido, levado pelo arrebatamento da sua palavra ardente, ungida de uma fé apostólica, como de alguém que espalhava um evangelho e procurava convencer, não pela violência, mas pela graça, o amor, os que acorriam a escutá-lo.
Nos estrados das
assembleias populares onde se pregava a República, em conferências, em discursos e orações tribunícias, Leonardo Coimbra apareceu sempre, não como orador vulgar das turbas, mas como um raro, um excepcional espírito que nunca se confunde, tal a maneira bela e levitante como falava, num estado de inspiração que sempre me deixava abismado, ante o milagre do verbo que ele próprio encarnava [um Christos, um ungido], num fenomenal desenvolvimento de ideias, avassalador e contagioso.
Cabeleira ao vento, laço à Lavallière, sempre v
estido de preto, no olhar um ígneo fulgor, tal foi o Leonardo que conheci em plenitude romântica, no rubro, generoso e puro instante histórico, no momento extraordinariamente belo da Propaganda.»
E terminará assim o seu belo contributo, convidando-nos a medita-lo, a acomp
anhá-lo: «A sua profunda confiança na continuidade da vida moral, permitia-lhe afirmar que o verdadeiro caminho de Deus é o da bondade.
Estou a ouvi-lo no seu sublime discurso sobre a Morte:
"- O que precisamos é saber destilar a podridão em beleza e frescura, como sabem as raízes transformar o pântano em jardim, alado e balsâmico aroma."
Assim vejo Leonardo, projectado já, muito alto, na luz astral, como ele decerto quer que o ergamos
[orando, visualizando]- "afastando a inconsciente e habitual imagem da morte, feita de horrores e acusações irreflectidas"»
                                                 
No 30º contributo, intitulado
A Ideia de Pátria na Obra de Leonardo Coimbra, o notável e fecundo historiador Damião Peres (1889-1976), que veio a ser também professor na Faculdade de Letras do Porto, partilha a ligação que Leonardo tinha desde criança com o Infinito como sua Pátria, e ainda a que ele com a Pátria Portuguesa expressou constante, intensa e genialmente, num grande o seu amor, dando disso exemplos. Oiçamo-lo:«Leonardo Coimbra, filósofo e pensador, foi também um poético espírito inebriado de Infinito - inebriamento que, ou em absoluta substantivação ou adjectivamente, iluminou, avassalador as páginas dos seus livros. Antes, porém, que o Eterno e o Ilimitado nelas surgissem sob raciocinada forma, já essas noções tinham nimbado, em mimoso devaneio, a juvenilidade de Leonardo Coimbra.»
Depois de transcrever as confis
sões de Leonardo sobre os seus primeiros contactos com o Mistério do Infinito, realça do livro a Luta pela Imortalidade "as conclusões optimistas sobre o mundo como sociedade de seres espirituais imperecíveis"; e em seguida que «o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria" ou ainda que "as fronteiras dum país não são os estagnados marcos convencionais, mas sim a linha onde morre a palavra maternal". Concluirá o seu preito com bastante subtileza anímica:
«Em hor
a de mais funda emoção patriótica essa espiritualidade ditava-lhe expressões de inusitada profundidade. Assim, ao encerrar o seu primoroso discurso de 1920, comemorativo do dia de Camões, Leonardo Coimbra, enternecidamente dominado pela imagem duma Pátria agradecida aos seus leais servidores - a Pátria portuguesa [e nós diríamos, o Génio ou Arcanjo de Portugal] - rematou, exclamando: "No Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há-de sorrir!"»

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