Ocorrendo o aniversário de Sri Ramakrishna a 18 de Fevereiro (1836), resolvemos homenageá-lo partilhando algumas páginas do seu ensinamento, transmitido em bengali na forma dum livro em cinco volumes por M [Mahendranath Gupta, 1854-1932], onze anos depois do mestre ter morrido (a 16 de Agosto de 1886), ou seja, a partir de 1897, intitulado Sri Sri Ramakrishna Kathamrita, e que se tornou conhecida como o Evangelho de Ramakrishna. Em 1995 estive alguns meses em aprendizagens, traduções, diálogos e palestras no Instituto de Cultura da Missão Ramakrisnna em Calcutá, dirigido então pelo sábio e simpático Swami Loskesvarananda, e onde traduzi bastantes páginas e palestrei até, além de visitas e diálogos valiosos. A tradução deste texto em inglês, e de outros em sânscrito com o querido e sábio professor Satchitanandadhar, foram realizados em cadernos e só agora tenho mais tempo para os passar para o computador.
Sri Ramakrishna foi um dos últimos grandes mestres da Índia, praticamente analfabeto, mas com uma precoce sensibilidade espiritual e uma aspiração muito grande à Divindade, que o levaram por um percurso em valioso dados os múltiplos encontros com yogis e yoginis, filósofos e religiosos (os ocorridos entre 1882-1886 foram registados por Mahendranath Gupta), que foram alargando a sua realização espiritual de tal modo que conseguiu sentir ou realizar a Divindade através das diferentes sadhanas, ou linhas de prática indianas, mas também através dos ensinos dos diferentes mestres fundadores das religiões, algo que o seu contemporâneo e amigo Keshav Chandra Sen também tentou, como já descrevemos no blogue. A pintura naif representa a unidade das religiões, pioneirizada por eles, ainda que já antes Akbar (1542-1605) e sobretudo Dara Shikok (1615-16599, dois príncipes e mestres mogóis, tivessem brilhado nessa junção de oceanos ou tradições.
Consciente da época cíclica histórica em que estava, a Kali Yuga, em que a influência do mundo e da mundanidade nas pessoas era cada vez maior, impossibilitando ou dificultando a realização da Divindade de modo não dual, ou seja só se vendo a Unidade divina em tudo, recomendou, como o método mais acessível, a devoção à Divindade, seja sob que forma a adoremos, valorizando a repetição do nome de Deus (japa mantra) que mais gostarmos.
Durante cerca de quinze anos exerceu um magistério intenso com os visitantes do templo da deusa Kali junto ao sagrado Ganges onde vivia e oficiava e, a partir de dado momento, com um grupo de fiéis amigos, dialogantes, admiradores, discípulos, que irão após a sua a morte formar a Missão ou Ordem de Ramakrisna e espalhar-se pelo mundo, embora bastante mais na Índia, onde se dedicaram tanto à transmissão dos ensinamentos do mestre, como do seu discípulo principal, Swami Vivekananda, e de vários outros monges ou swamis, como também ao serviço (seva) educativo e humanitário. Estive em alguns dos centros e dialoguei com vários monges sábios em diferentes locais ao longo dos dois anos e meio que estive na Índia.
Hamsa, o cisne do discernimento no emblema da Ordem de Ramakrishna |
A conversa de Ramakrishna passou então para o conhecimento de Brahman.
Mestre [Ramakrishna]: Brahman, a Divindade, está para além do conhecimento (vidya) e da ignorância (avidya). Está para além de maya, a ilusão da realidade.
O mundo consiste da dualidade ilusória do conhecimento e da ignorância. Contém conhecimento e amor devocional, e também o desejo ou apego à sensualidade e ao dinheiro; rectidão e justiça, bom e mau. Mas Brahman está desapegado [ou acima] destes. Bem e mal aplicam-se ao jiva, à alma individual, tal como a justiça e a injustiça, mas Brahman, a Divindade, não é de modo algum afectado por eles.
Uma pessoa pode ler a Bhagavad Gita através da luz de uma lâmpada, e outra pessoa pode cometer uma fraude através dessa mesma luz, mas a lâmpada não é afectada. O sol derrama a sua luz tanto nos malvados como nos virtuosos.
Perguntareis: Como se pode então explicar a miséria, o pecado, a infelicidade? A resposta é que eles só se aplicam ao jiva, à alma individual. Brahman [o Absoluto, a Divindade] não é afectado por eles. Há veneno numa serpente, mas apesar de outros poderem morrer se forem mordidos por ela, a serpente em si não é afectada pelo veneno.
O que é Brahman é indescritível. Todos as Escrituras - os Vedas, as Puranas, os Tantras, as seis Darshanas (sistemas de filosofia) - foram profanadas, como a comida tocada pela língua, pois foram lidos e pronunciados pela língua. Apenas algo não foi desta forma profanada e tal é Brahman. Nunca ninguém conseguiu estar apto a dizer o que é a Divindade infinita.
Vidyasagar: (para os amigos que assistiam): “Oh! Isto é uma afirmação notável. Aprendi algo novo hoje.”
Mestre: "Um homem tem dois filhos e envia-os a um perceptor ou mestre para aprenderem o Conhecimento de Brahman. Após alguns anos regressam a casa e inclinam-se diante do pai. Querendo medir a profundidade do conhecimento que detinham de Brahman, interroga o mais velho:- Meu filho, estudastes todas as Escrituras, diz-me agora qual é a natureza da Divindade? O rapaz começou a explicar Brahman pela recitação de vários textos védicos. O pai não se pronunciou e fez a mesma pergunta ao outro filho. Mas o rapaz silencioso, pôs os olhos no chão, e palavra alguma escapou dos seus lábios. O pai ficou contente e disse-lhe: Meu filho, compreendeste um pouco do Brahman. O que é, não pode ser expresso por palavras."
Os seres humanos pensam que compreenderam plenamente Brahman. Uma vez uma formiga encontrou um montão de açúcar. Um grão encheu o seu estômago. Pegando noutro grão com a boca pôs-se a caminho da casa. A certa altura pensou, na próxima vez trarei para casa todo o monte."
Isto é o modo como as mentes estreitas pensam. Não sabem que Brahman está para além das palavras e pensamentos. Por muito grande que seja um homem, quanto é que ele pode conhecer de Brahman? Sukadeva [filho de Vyasa, o autor do Bhagavat Purana e seu narrador] e outros sábios podem ter sido grandes formigas, mas mesmo eles apenas poderiam levar oito ou dez grãos de açúcar.
Quanto ao que foi dito nos Vedas e Puranas, sabeis a que se assemelha? Suponde que uma pessoa viu o oceano e alguém lhe pergunta: "Então, como é o oceano?" Ele abre a boca tanto quanto pode exclama:" Que vista imensa! Que ondas e sons" A descrição de Deus nos livros sagrados é como tal. Diz-se nos Vedas que Brahman é de natureza da beatitude - É Satchidananda. [Sat-Ser, Chit-Consciência, Ananda-Felicidade, palavra muito usada para meditação.]
Suka e outros sábios estiveram na margem deste oceano da Divindade. Viram-no e tocaram a água. Mas de acordo com uma escola de pensamento nunca mergulharam nele. Aqueles que o fazem não podem voltar ao mundo de novo.
Em samadhi [estado de intensificação energético-espiritual] uma pessoa atinge o Conhecimento de Brahman - uma pessoa realiza Brahman. Nesse estado o raciocínio pára completamente e a pessoa torna-se muda. Ele não tem o poder de descrever a natureza da Divindade.
Uma vez uma boneca de sal foi medir a profundidade do oceano (riem-se todo os que escutam Ramakrisna na satsanga). Queria contar às outras quão profunda era a água. Mas isso ela nunca poderia fazer, pois assim que entrou na água dissolveu-se. Portanto, quem estava lá para relatar depois a profundidade do Oceano?
(...)
Os rishis (sábios videntes) de antigamente atingiram o Conhecimento de Brahman. Não se pode alcançar esse estado enquanto houver o menor traço de mundanidade. Quão arduamente os rishis trabalhavam! De manhã cedo saíam do eremitério e passavam o dia inteiro na solidão, meditando em Deus [Brahman]. À noite voltavam ao eremitério e comiam algumas frutas e raízes. Mantinham as mentes isoladas dos objetos da visão, audição e tacto e das outras coisas do mundo material. Só assim eles realizaram Brahman como a sua própria consciência interna.
“Mas no Kaliyuga [a época actual segundo a ciclicidade tradicional indiana], o homem estando totalmente dependente da comida para viver, não pode libertar-se completamente da ideia de que é o corpo. Nesse estado mental, não é apropriado ele dizer: ‘Eu sou Ele’, Aham Asmi, [uma das grandes afirmações (mahavakyas) da realização espiritual]. Quando uma pessoa faz todo o tipo de trabalho mundano, não deve dizer ‘Eu sou Brahman’ [Aham Brahmasmi, outra das grandes afirmações, em que se medita]. Os que não podem desapegar-se das coisas do mundo, que não podem libertar-se do sentimento do ‘eu’, deveriam dizer: “Sou um servidor de Deus; Sou um seu devoto’. Pode-se também realizar Deus seguindo o caminho da devoção. [Bhakti, que Ramakrishna seguiu fortemente, além do caminho (marga) do conhecimento-visão, Vijnana]».
Que Sri Ramakrisna Paramahamsa nos inspire na realização espiritual e divina! |
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