segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

"Funken", "Centelhas", por Bô Yin Râ. Resumo das XXII centelhas, orações ou mantras. E com duas das suas belas pinturas espirituais.

Funken, Centelhas, é uma valiosa obrazinha, publicada em 1922, na Talisverlag de Leipzig,  num in-12º de 31 páginas, seguido duma 2ª edição em 1924, com os mantras ou pequenas orações em alemão criados por Bô Yin Râ : poemas -  orações, que pela  leitura e sensação ressoante,  meditação e realização, são adequados aos que prosseguem o elevado caminho espiritual ensinado por ele. Uns meses depois, um artista expressionista e espiritual, amigo de Bô Yin Râ e grande estudioso de Jacob Böehme, Fritz Neumann-Hegenberg (1884-1924), publicava na revista Magische Blätter uma transcrição dos mantras, com leve contextualização e comentários, estes mais pessoais e artísticos, os quais foram dados à luz numa pequena brochura na mesma editora de Leipzig em 1922. 
                                                                 

Em 4.12.2020 publiquei no blogue um texto sobre este livro e o II mantra, apresentando-o trilingue, e comentando-o levemente, e está intitulado: "Uma Abóbada de Cristal envolvendo-nos", um mantra de Bô Yin Râ, actual. E com pintura de Anna Zappa;  e a ligação será: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/12/uma-abobada-de-cristal-envolvendo-nos.html

                                        

Funken contém XXII mantras, e o I é uma invocação da realidade espiritual e divina, para que ela envolva o orante e lhe permita afirmar como experiência que ele é um santuário do espírito divino, e que o espírito divino é também santuário dele.

Não há uma distinção clara de quem é adorado, se o Espírito, se a Divindade ou Deus vivo, mas apenas a afirmação: - Eu sou um teu templo, santuário ou sacrário (schrein). É o primeiro mantra a ser apresentado e deixa em aberto  o destinatário, se o espírito se a Divindade.

O II mantra  ajuda-nos a fortificar o templo, pois invoca-se  um muro de cristal erguido a toda à volta de quem ora ou medita, e que o protege e o inclui dentro de si. O orante pede que na Luz seja transformado e nada senão a Luz possa estar no seu interior.

É um exercício de protecção mágica que encontramos noutras tradições,  e Bô Yin Râ criou-o em alemão com versos rimados, bem valiosos, sobretudo para quem consegue sentir tais palavras em si bem ressoantes.

O III mantra é muito pequeno e põe-nos diante de um portal fechado, que é saltado e permite a sensação complementar ou simultânea de se estar de fora e  dentro. Talvez uma das funções dele seja mentalizar-nos para que nos mundos invisíveis não fiquemos estagnados ou especados perante as barreiras e portas fechadas, se por entre elas merecermos entrar.

O IV mantra tem rimas muito conseguidas e de novo somos projectados para os mundos subtis espirituais onde entre montanhas elevadas e profundezas do Caminho tomamos consciência de que cada um de nós é um degrau no Caminho.

O V mantra é talvez o mais flamejante e fácil de ser decorado e meditado pois  é uma invocação simples do fogo em nós, nos outros ou em todos e  em si mesmo, para nos tornarmos mais flamejantes. Insere-se na linha típica do fogo espiritual, tão desenvolvido por Bô Yin Râ ou ainda por outros mestres e místicos, como por exemplo na tradição russa, S. Serafim Sarov e Nicholai Roerich, no fundo apelando a realizarmos e a irradiarmos mais a centelha ou chispa do Fogo Cósmico de que somos portadores...

O VI mantra  é uma invocação, em que se nomeia expressamente o destinatário, o espírito, para que ele paire, voa e nos entreteça, e para que possamos vê-lo tanto no mais íntimo do interior como no do exterior  e sê-lo. É um apelo à meditação e à possível vivência da unidade espiritual dos seres e coisas.

O VII  mantra levanta duas das questões mais frequentes  na demanda da desvendação ou presentificação do espírito: "Onde? Quando?"  E a resposta é o "aqui e agora", o saber-se que podemos realizar-nos no estar-se plenamente no presente.  Um "aqui e agora" visível em muitas tradições, tal em Portugal vindo de Roma antiga no hic et nunc, ou mesmo no É a hora. É um chamamento, um convocação da força, da qual o dito querer é poder é outra perspectiva da mesma realidade.

O VIII é um dos mantras em que Bô Yin Râ procura estimular a não localização da consciência, a ultrapassagem das dualidades, tentando fazer-nos meditar as ideias-forças contidas na oração e sentir que embora sejamos um só, somos também todos, e tanto no interior como no exterior.

Levanta certamente alguns problemas o  admitirmos ou reconhecermos que interiormente somos todos, pois é permitir que eles estejam mais presentes no nosso interior. Resta saber se admitindo-se ou não, eles estão sempre dentro de nós nos planos subtis e portanto que o mantra apenas nos desperta para estarmos mais conscientes de tal entretecimento ou emaranhamento de todas as mentes e almas e que devemos necessariamente desenvolver a nossa unificação interna com o espírito ou eu espiritual, para conseguirmos lidar bem e serenamente com todas estas interacções possíveis.

                           

O IX mantra é um dos mais conhecidos dos ocidentais nas suas três vogais vindo da Antiguidade, IAO, e que teve particular uso nos grupos  gnósticos pois considerava-se ser o nome de um regente ou arconte dos sete que correspondem a cada planeta. Outros viram nele um nome grego para evocar certos deuses. Mas é claramente antes de mais um mantra sonoro divino, influenciado possivelmente pelo AUM indiano.

Bô Yin Râ apresenta-o  como a movimentação dum ponto inicial, que fende o espaço como linha, alarga-se ao ser traçado como compasso e arredonda-se por fim como esfera,  e nesta o Um inicial está em Todos. É um mantra operativo directamente pela sua sonoridade. Bô Yin Râ concluirá no XXII mantra com nova exploração dos sentidos e poderes incluíveis ou desabrocháveis na meditação no IAO.

O X mantra é outro caso de afirmação da unidade universal dos seres e portanto um exercício de alargamento de consciência, ao sugerir e tentar que o ser individual sinta que está ligado ao Mundo, aos outros, à Humanidade, e que tudo isso cada ser é.

 O XI mantra tenta apresentar por várias perspectivas o Ser Original não fundado mas que é o fundamento único e de tudo, apontando ou afirmando como conclusão final que o "Eu sou" é Ele. É dos mais complexos e profundos, e  dito em alemão por quem dominar bem o sentir das palavras empregadas, tem bons efeitos de aprofundamento e alargamento da consciência... 

O mantra XII é dos mais simples mas também mais valiosos ao chamar-nos à realidade do presente, com todas as suas potencialidades: não estarmos presos ou influenciados pelo passado ou futuro, mas antes focar-nos plenamente no presente, ou no entre ser, confiantes nas fronteiras e horizontes novos que se abrem dele. É uma lembrança de acalmia, perante as nossas impaciências.

O mantra XIII é um apelo e semeadura da aceitação da vida, do amar, o do que temos de vivenciar e de que no perder-nos podemos encontrar-nos e que  em ambos somos, ou estamos serenos perante tal oscilação dialéctica, face tanto ao que se perde como ao que se encontra e que tal oscilação externa é frequentemente necessária para ultrapassarmos o ego e vivermos mais o espírito que está acima dele.  

O mantra XIV apela ao sentirmos e irmos para além do que conhecemos ou não conhecemos, pois  há uma dimensão da realidade da sabedoria omnisciente a que podemos ter acesso pela meditação sentida e a cuja identificação Bô Yin Râ indica ao concluir a oração-centelha com uma das grandes afirmações, as mahavakyas, da tradição indiana, Tat Twam Asi, que surge originalmente na Chandogya Upanishad 6.8.7 ao ser transmitida pelo pai e guru Uddalaka Aruni ao seu filho e discípulo Svetaketo: «essa realidade suprema tu és (ou tu és tal Realidade», «sa ya eso nima aitadâtmyam idam sarvam, tat satyam, sa âtmâ. tat tvam asi».

 O mantra XV é dos mais elevados e misteriosos, pois nomeia os Pais, os espíritos mestres mais elevados, como sendo os  que ajudam a descobrir o nosso verdadeiro nome, a nossa essência vibratória, e sabemos bem como tal é muito difícil e trabalhoso, os nomes de baptismo ou mesmo de iniciação sendo apenas sucedâneos mais ou menos apropriados a ligarem-nos interiormente com o nosso verdadeiro Eu e seu nome, ou apenas a representarem-no. Este mistério é trabalhado por Bô Yin Râ em alguns passos na sua opera omnia, o Hortus Conclusus, de 32 livros. 

O mantra XVI, um dos mais longos, tenta fazer-nos tomar consciência da unidade do Único eterno, do outro e do relacionamento de ambos, nessa tríade que substancia a unidade e  a vida e que devemos procurar sentir e realizar, chamando-nos, inspirando-nos e descobrindo-nos interiormente como Eu, e exteriormente como AUM, a omnipresença da vida divina.

O mantra XVII retoma  a realização da unidade do presente e a eternidade: sermos peregrinos ou caminhantes, sempre subindo por degraus da vida, e em que somos na realidade o degrau em que estamos, ou a consciência da eternidade do movimento espiritual ascensional  consciencializado no presente.

O mantra XVIII é dos que trabalha a dialética de sabermos desprender-nos ou  perdermos o pequeno eu para nos reencontrarmos expirando e inspirando-nos na dimensões invisíveis e descobrindo o nosso verdadeiro ser, o Espírito individual, o Jivatman, e que vive em unidade com o Aum, a vibração ou vida divina no Universo.

O XIX mantra é  algo misterioso, pois ao contrário do que Bô Yin Râ ensina como regra geral de vida - o de não haver necessidade de reincarnação -, neste mantra afirma  ter vivido e morrido muitas vezes, e que esse que foi morto renasceu para a unidade com o Ser inicial, a unidade com a Divindade. E sentindo perpassar em si a corrente de vida eterna, apresenta em eco ou fonte uma outra das quatro  grandes afirmações (ou mantras) indianos, as mahavakyas, Aham Brahma Asmi, "Eu sou (um com) a Divindade", a qual surge como conclusão do processo iniciático iluminativo, possível de passar-se numa só vida, ou em geral prosseguida mais lentamente no além, ou não...

O XX mantra é bem forte no apelo à vontade que indica ou impulsiona o caminho, para que se manifeste na nossa vida, e que estando sobre nós nos ilumine e guie e se torne acção, se torne a nossa própria vontade.

 «Vontade impulsionadora!
Quer em mim!
Torna-te efectiva!!

Ó supra-Eu!
Convence-me!
Ilumina-me!
Torna-te efectivo!
Torna-te
–  Eu!! »

No XXI mantra, um dos muito rítmicos e simples, encontramos uma palavra utilizada simbolicamente, e que remete tanto para a tradição alquímica como maçónica, mas também cristã: a "pedra", a pedra de fundação. Nele apela à luz do espírito para que intensifique a sua chama em nós em todo o corpo, para que ilumine o santuário da alma ainda pouco claro, e intensifique a luminosidade da pedra, alquímica, que nós somos, ou que está na nossa base.

                          

O XXII é dos mais difíceis de se compreender, e logo o senti-lo ressente-se pois apresenta uma hierarquia numérica, de difícil hermenêutica em alguns dos seus níveis ou concretizações, pois brota de uma tríade inicial, passa pelo quaternário, talvez das 4 estações e seus arcanos, nomeia o 10, a década pitagórica, e logo o 12, talvez dos signos do Zodíaco e, por fim, chega aos muitos mestres e discípulos que com a régua e o compasso constroem e descobrem-se como IAO, um em todos.

Eis uma obra bem valiosa, com centelhas ou orações simples e profundas, uma  ou outra mais difícil e que nos estimulam a gerarmos as nossas próprias e aprofundá-las. Anote-se que as edições modernas de Bô Yin Râ juntaram o Funken e o Mantra Praxis num só volume. E que no livro Das Gebet, A Oração, de 1926, que eu traduzi e editei [e ainda tenho alguns exemplares], Bô Yin Râ explica muito bem a arte da oração e dá outros exemplos, menos mântricos ou concentrados como estes XXII mantras.  No Youtube encontra uma gravação do I e II mantras:  https://youtu.be/kUXIulIPYTQ

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