terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Do nascimento, vida e morte, e dos projectos, realizações e ensinamentos em Agostinho da Silva e em nós, no seu dia de aniversário, em 2024.

O ciclo de vida e morte é inelutável na Terra; nada dura eternamente, tudo passa, tudo se transforma. Ontem nasceu-se e amanhã morre-se e nesse interim entre o não ainda e o mais não, temos nós de Ser e logo de agir o mais sábia e plenamente possível, sem nunca sabermos bem a fortuna da duração viva do fio de prata que nos liga ao corpo espiritual, e que as Moiras, Karmas e Parcas (Cloto, Láquesis e Átropos), ou ainda as Fúrias e os Diabos, podem deixar cortar, ou cortar, a qualquer momento.
Onde tal por vezes se torna mais impressionante é quando os seres morrem muito precocemente para o que poderia ter sido o seu projecto de vida natural, embora certamente seja difícil deslindarmos quanto tempo cada pessoa teria, ou então deveria ter, para cumprir seja os seus projectos de vida, seja os que a Vida quereria que ele realizasse, e Vida entenda-se aqui a Providência Divina, a Alma do Mundo, a Santa Sabedoria e suas Parcas...
Não é fácil na realidade discernirmos claramente o projecto de vida de uma pessoa, com as suas sucessivas fase, objectivos, metas e que frequentemente são atacadas, abortadas, não alcançadas pois as pessoas podem não conseguir realizar várias hipóteses criativas que lhe eram possíveis e que seriam convenientes tanto para si ou como para o Todo, face aos ambientes e circunstancialidades adversas.
Outras pessoas conseguem viver muito longamente, ultrapassarem os 80 anos, por exemplo, e realizarem os seus projectos ou missão, ou mesmo a maior parte das suas potencialidades mais valiosas e úteis aos outros, conseguindo terminar até os últimos anos de vida com sabedoria e serenidade.
Sabermos então discernir em que ponto da nossa jornada estamos, quais os objectivos, metas ou frutificações mais adequados é então fundamental mas respeitando-se de preferência sempre aquela obrigação de todo o ser  praticar o auto-conhecimento e a religação espiritual ou mesmo divina.
Os seres que conseguem isto mais plenamente são poucos e naturalmente irradiam energias dinâmicas de maior completude e além, de poderem intensificar o desenvolvimento de relações e criatividades humanas benéficas e frutuosas, são o que se chamam polos, eixos, centros de ligação entre a terra e o céu, entre o mundo dos factos e o das ideias, entre a matéria e o espírito, entre a horizontalidade humana e a verticalidade supra-humana, a imanência e a transcendência. Em algumas tradições são reconhecidos como mestres espirituais, qtubs...
É natural que tais seres ao longo da sua vida desenvolvam ora estados interiores muito elevados e que ensinam ou transmitem a alguns discípulos, ou então, no mundo ocidental, gerem inúmeros alunos, diálogos, actos, publicações, criações luminosas e que por fim sejam mais reconhecidos e acolhidos no que de mais sábio e útil à humanidade têm e podem dar.
Entre nós Agostinho da Silva foi um pensador, escritor e pedagogo  que ao longo da vida teve sempre uma boa aceitação ambiental e profissional, ou de leitura das suas publicações culturais e ensaios, e atingiu uma merecida e mais reconhecida aceitação nas últimas décadas da sua vida, atingindo uma certa notoriedade maior através da amizade com alguns governantes e sobretudo duma série de conversas televisivas, e entrevistas jornalísticas e para livros, e da sua sabedoria, espontaneidade, independência, graça e animada convivialidade... 
                                              
Todavia a sua visão de um movimento de harmonização e espiritualização das pessoas e da sociedade, num projecto de reactualização das festas e do culto do Espírito do Santo, iniciado no tempo de D. Dinis e da rainha Santa Isabel e que ele ainda encontrara sobrevivendo em alguns aspectos em núcleos de luso-descendentes ou em povos da língua portuguesa, não conseguiram ser implementados, não desabrocharam, goraram-se com o enfraquecimento da sua idade, pela dificuldade de juntar as pessoas mais afins e aderentes às suas ideias visionárias e de conseguir-se organizarem-se por assuntos ou departamentos e,  sobretudo ainda, por obstáculos dos seus amigos políticos, nomeadamente Roberto Carneiro que impediu que o dinheiro que Agostinho da Silva tinha numa conta bancária em nome do Fundo D. Dinis, chegasse aos projectos alternativos, rurais e comunitários na linha do Espírito Santo.
Mas talvez devamos reconhecer que em várias pessoas e nelas me incluo, face a esses projectos mais utópicos, o mais valioso era ainda ele, no que era, sabia e propulsionava individualmente, numa teia de relações de amizade que nascia de pessoa para pessoa, assente ora de boca a ouvido, ora em cartas, ora em conversas que eram frequentemente socráticas, maiêuticas, tanto despertantes das nossas possibilidades e confiança como clarificadoras de múltiplos aspectos do ser humano, da história, da espiritualidade, contemporaneidade e que se pragmatizavam ou enraizavam no real através das sugestões de autores e livros, de pessoas, de telefones e moradas, de relações, viagens, projectos, dinamismos... 
                             
Quando um tal ser parte da Terra (e muita luz e amor para ele, Maria Violante e Pedro Agostinho), embora fiquem os livros, as gravções e as memórias, e se comemore a data da sua morte e nascimento, como hoje estou a fazer, muito da impulsão viva, da confiança e coragem clarificadora deixam de operar a partir dele diante de nós e, ou nós a conseguimos ressuscitar bem por meditação, leitura, reflexão e escrita ou então frequentemente as palestras em que se fala (e falou-se tanto...) dele ou dos seus ensinamentos acabam por enfastiar ou tornarem-se letra algo morta, sobretudo quando o orador, escritor ou palestrante não tem a sua identidade espiritual mais assumida, desperta e irradiante, se o seu fogo interior não foi acesso ou comungou no de Agostinho, se nada de original ou de aprofundamento nos pensamentos de Agostinhos realizaram, e assim quase que acabam  por matar ou diminuir a potencialidade impactante e transformante do encontro das pessoas com as melhores ideias forças do seu magistério, amplo e tão variado, que exige ser bem investigado, para que encontramos o que nos diz mais, ou nos parece o mais certeiro e elevado e não o sintamos demasiado no ar ou contraditório...
Este último aspecto é importante de se reflectir pois Agostinho da Silva tanto foi um ser que viajou, peregrinou, amadureceu, evoluindo portanto, como também foi e muito um ser de conversa, de diálogo a dois ou em pequenos grupos, que levavam a que as suas palavras fossem muito específicas para cada pessoa, momento ou situação, ainda que certamente o núcleo das suas ideias e valores pouco mudasse, formado na base provavelmente na infância junto ao rio Douro com pais sérios e abnegados e depois desenvolvido nos anos universitários na Faculdade de Letras do Porto, com professores ou mestres como Leonardo Coimbra, Teixeira Rego, Hernâni Cidade, os quais mais de uma vez elogiou e na companhia de amigos ou condiscípulos como Sant'Anna Dionísio, José Marinho, Delfim Santos, com quem coordenou até a revista portuense A Águia, seguindo-se depois a sua passagem pela revista Seara Nova, mais racionalista, de António Sérgio, Raul Proença, Câmara Reis, Aquilino Ribeiro mas também Sant'Anna Dionísio.
A sua missão de semeador cultural, de divulgador de noções básicas ou conhecimentos mais complexos e por fim os mais abstractos, subtis e espirituais, é bem visível pela quantidade de publicações culturais divulgativas que deu à luz (por sua iniciativa e a baixo preço), para além dos ensaios ou reflexões mais históricos, filosóficos, axiológicos e éticos, onde contudo desde cedo alguns aspectos de uma revisitação da tradição cultural e espiritual portuguesa o fizeram aperceber-se de núcleos bem importantes e perenes, alguns dos quais já bem discernidos e desenvolvidos por Jaime Cortesão, seu mestre e amigo na sua longa passagem e estadia no Brasil, casando-se mesmo com a sua filha, ou outros em que foi pioneiro, tal Fernando Pessoa.
Serão estes núcleos que Agostinho potenciará com múltiplas aproximações e congregando no círculo das suas amizades e influências uma série de outros pensadores que vibravam nas mesmas linhas culturais-espirituais, mais velhos e mais novos e que entre si se encontraram, dialogaram e frutificaram e podermos falar depois da experiência longa de duas décadas no Brasil com portugueses como Dalila Pereira da Costa e Aldegice Machado de Rosa, António Quadros e Lima de Freitas, António Telmo e José Florido, Raul Traveira e muita gente nova, dos tais 500 e depois 700 que na décadas de 80 e 90 recebiam as suas cartas várias e folhinhas onde ia lançando as suas ideias e intuições, ora como reflexões, propostas, ora já como quadras aforísticas de alta condensação de sabedoria na sua linha de valorização da liberdade, da criatividade, da fraternidade, da solidariedade, e de uma espiritualidade universal que conseguisse abordar e mostrar o que de comum há entre as várias religiões e tradições com a física moderna e uma vida simples e natural.  
Antero de Quental, um dos elos importantes para Leonardo Coimbra e em certos aspectos inspirador de Agostinho da Silva
Talvez possamos dizer que a sua última floração desiderativa, expressa nos últimos anos da sua vida, foi a da criação de centros de estudo, de comunidades, e conventos de vida comum, algo na linha da Ordem dos Mateiros de Antero de Quental (sobre a qual já escrevi neste blogue), inspiradas, investigando e implementando a tradição do Espírito Santo, a qual é de certo modo a harmonia do seres com os outros e com Natureza bem como um auto-conhecimento do divino espírito, manifestado socialmente numa vida que torne imperantes a criança, a poesia, a dádiva, a criatividade, a solidariedade, o amor, e daí a sua reflexão reiterada sobre a Ilha dos Amores em Camões, e o que caracterizava as festas do Espírito Santo, considerando tais valores e realizações os que norteariam não só os povos de língua portuguesa, para os quais sempre mais trabalhou na sua missão dialogante, pacificadora e universalista, mas para o mundo inteiro, numa certa utopia impossível, evidente para os amigos mais realistas e que ele tinha também de reconhecer face à crescente absorção da tradição nacional pela burocrática e oligárquica União Europeia.
                                                  
Já passando três décadas depois da sua morte, e parece que foi há tão pouco tempo dada a magnitude do que com ele sentimos ou ouvimos, há que reconhecer que a luta continua, e que o seu ideário, enquanto veio de uma Tradição fraterna e espiritual continua vivo em numerosos seres, unidos até na lusofonia, os quais o vão ainda semeando, por diversos modos nos nossos dias, em certos casos aprofundando-o mesmo, e abrindo assim realizações vivas e mais completas, nesta incessante corrente que denominamos Tradição cultural e Espiritual não só portuguesa e da língua portuguesa, como perene e vasta, já que o nosso Graal é universal...
                                         

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