Comemorando-se os 188 anos do nascimento de Sri Ramakrisna Paramahansa (1836-1886) neste mês de Fevereiro, a 18, e tendo eu estado em 1995 alguns meses em Calcutá no Instituto de Cultura da Missão ou Ordem de Ramakrishna, dirigido então por Swami Lokesvarananda, a traduzir (à mão...) a narrativa da sua vida e alguns textos sagrados do Sanatana Dharma, a Tradição espiritual perene da Índia, estes com o pundit Satchitananda Dhar, resolvi partilhar alguns extractos dessa maravilhosa narrativa escrita em bengali, a Sri Sri Ramakrishna Kathamrita, por Mahendranath Gupta (1854-1932), publicada entre 1902-1932, e que traduzi a partir dum exemplar 4ª edição do Evangelho de Ramakrishna, na tradução inglesa de Swami Nikhilananda, editada em 1994, que leva até um breve mas denso e valioso prefácio do genial autor da Ilha, e do Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley (1894-1963), ou não publicara ele a famosa antologia Perennial Philosophy, com textos de quase todas as tradições, mas não portuguesa, e que o meu primeiro guru na Índia, Swami Kaivalyananda, de Rishikesh, me fez ler e cogitar como preparação à realização espiritual vedântica.
No prefácio, depois de lembrar como são raros os génios artísticos ou religiosos que têm a sorte de encontrar um narrador qualificado, Aldous Huxley congratula-se com o encontro entre Ramakrishna e Mahendranath Gupta e a fidelidade com que este preservou a profunda genuinidade, e, simultaneamente, realização espiritual de sri Ramakrishna, o que o torna universal, enaltecendo-os assim "ao ensinarem-nos sobre a vida o espírito": «Ler estas conversas nas quais a doutrina mística alterna com um tipo de humor invulgar, e em que os mais bizarros aspectos da mitologia Hindu dão lugar às mais profundas e subtis afirmações acerca da natureza da Última Realidade, é em si mesmo uma educação livre em humildade, tolerância e suspensão de julgamento».
Transcrevo hoje o diálogo que começa na página 80, quase no princípio do 1º Capítulo, intitulado Mestre e Discípulo, onde M., ou Mahendranath Gupta, relata os seus primeiros encontros e diálogos com Sri Ramakrisna, e que se tornará o seu mestre. Dialogam sobre uma questão persistente, a de pensarmos e adorarmos a Divindade como sem forma, absoluta, não dual, ou antes reconhecê-la e cultuá-la com forma, pessoal, de acordo até com a nossa afinidade de maior devoção às várias formas da Divindade ou mesmo dos seres, mestres, avatares e profetas em que Ela se manifestou, nomeadamente nos fundadores das religiões ou vias. Ramakrishna responde ainda a outra questão fudamental, como aquietar a mente, como poderemos mais religar-nos ao Espírito e à Divindade. Boas inspirações e práticas....
« (...) Mestre [Ramarishna Paramahansa]: “Bem, acreditais em Deus com forma ou sem forma?”
M., [Mahendranath Gupta] algo surpreendido, diz a si mesmo: “Como é que alguém pode acreditar em Deus sem forma quando acredita em Deus com forma? E se alguém acredita em Deus sem forma, como é que pode acreditar que Deus tenha forma? Podem estas duas ideias contraditórias serem verdadeiras simultaneamente? Pode um líquido branco como o leite, ser negro?”
M.: “Senhor, eu prefiro pensar em Deus sem forma”.
Mestre: “Muito bem. Basta ter fé em qualquer um destes dois aspectos. Acredite em Deus sem forma, está muito bem, mas nunca pense nem por um momento que só esse seja verdadeiro e todo o resto falso. Lembre-se de que Deus com forma é tão verdadeiro como Deus sem forma. Mas mantenha-se firme na sua convicção”.
A afirmação de que ambos são verdadeiros espantou M.; nunca tinha aprendido tal nos seus livros. Então o seu ego recebeu um terceiro golpe, mas como ainda não estava completamente esmagado, tornou a questionar o Mestre.
M.: “Senhor, suponhai que alguém acredite em Deus com forma. Certamente Ele não é a imagem de barro.”
Mestre (interrompendo): “Mas porquê de barro? É uma imagem do Espírito.”
M. Não conseguia compreender bem o significado da expressão “imagem do Espírito.” “Mas, senhor”, disse ao Mestre, “deve-se explicar aos que adoram a imagem de barro, que ela não é Deus e que, adorando-a, devem ter Deus em vista e não a imagem de argila. Não se deve adorar a argila.”
Mestre (incisivamente): “Trata-se de um passatempo de vocês, pessoas de Calcutá, dar palestras e trazer os outros para a luz! Ninguém se detém para pensar como conseguir obter a luz para si. Quem são vocês para ensinar os outros?
“Aquele que é o Senhor do universo ensinará cada um. Só ele, que criou esse universo, nos ensina: Aquele que fez o sol e a lua, homens, animais e todos os outros seres; Aquele que provê os meios para seu sustento; que deu filhos aos pais e dotou-os de amor para os fazerem crescer. O Senhor fez tantas coisas – não mostrará Ele às pessoas a maneira de adorá-Lo? Se precisarem de ensinamentos, Ele será o Mestre. Ele é o nosso Guia Interno.
“Suponhamos que haja um erro em adorar-se a imagem de barro. Não o saberá Deus que é o único que a está a ser invocado? Ele gostará de tal adoração. Por que tereis dor de cabeça por causa disso? Seria melhor esforçar-se por conhecimento e devoção.”
A esta altura , M. sentiu que seu ego estava completamente esmagado. E disse para si mesmo: “Sim, ele falou a verdade. Que necessidade tenho de ensinar os outros? Conheci Deus? Será que realmente O amo? ‘Não tenho espaço suficiente para mim na minha cama e estou a convidar alguém para compartilhá-la comigo! Não sei nada acerca de Deus e estou a tentar ensinar os outros. Que vergonha! Que tolo eu sou! Isto não é matemática ou história ou literatura, que uma pessoa possa ensinar aos outros. Não, isto é o mistério profundo de Deus. O que ele me diz, chama-me.”
Esta foi a primeira argumentação com o Mestre e felizmente a última.
Mestre: “Estava a falar de adorar a imagem de barro. Mesmo que ela seja de barro, há necessidade desse tipo de adoração. O Próprio Deus providenciou diversos tipos de adoração. Aquele que é o Senhor do universo arranjou todas essas formas para servirem às diferentes pessoas nos diversos estágios do conhecimento.
“A mãe cozinha diferentes pratos a fim que sejam apropriados ao estômago de seus diferentes filhos. Suponhamos que ela
tem cinco filhos. Se há peixe para cozinhar, ela prepara vários pratos a partir dela - pilau, escabeche, peixe frito e assim por diante,
para satisfazer os diferentes gostos e poderes de digestão de seus filhos.
“Compreende-me?”
M.(humildemente): “Sim, senhor. Como é que nós podemos fixar as nossas mentes em Deus?
Mestre: “Repita o nome de Deus e cante as Suas glórias, e mantenha a companhia santa; de vez em quando visite os seres devotos de Deus e os homens santos. A mente não pode estabilizar em Deus se estiver mergulhada dia e noite no mundanidade, nos deveres e responsabilidades do mundo; é muito necessário de vez em quando entrar na solidão e pensar em Deus. Fixar a mente em Deus é muito difícil no princípio, a não ser que se pratique a meditação na solidão. Quando uma árvore ainda é jovem, é necessário protegê-la com uma cerca, senão pode pode ser destruída pelo gado.
“Para se meditar, deveis recolher-vos dentro de vós ou retirar-vos para um lugar isolado ou para uma floresta. E deveis sempre discriminar entre o Real e o irreal. Só Deus é Real, a Substância Eterna, tudo o mais, irreal, ou seja, impermanente.
Discriminando assim, a pessoa deve sacudir os objetos impermanenes da mente.”
M. (humildemente): “Como devemos viver no mundo?”
Mestre: “Cumpri os vossos deveres mas mantende a vossa mente em Deus. Vivei com todos – mulher, filhos, pai e mãe - e servi-os. Tratai-os como sendo-vos muito queridos mas, sabendo no coração dos corações, que eles não vos pertencem.»
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