segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Antero de Quental, nos sutras de Joaquim Correia da Costa, em crítica a um livro de Mário Beirão, no "Diário de Lisboa", de 14-3-1929.

                                     

Arrumando gavetas, papéis, manuscritos, jornais, deparei-me com um artigo de crítica literária do diplomata e escritor  Joaquim Correia da Costa, no Diário de Lisboa (onde escreveu bastante desde 1922), de 14-3-1929, acerca do Último Lusíada, acabado de dar à luz pelo poeta Mário Beirão (1890-1965) e onde, no meio do elogioso texto, de uma página a quatro colunas,  vislumbrei um parágrafo dedicado a Antero de Quental,  com o qual inicia a menção da linhagem dos poetas líricos em que Mário Beirão se inseria e que passaria então por Antero de Quental, António Nobre, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e João de Deus, concluída por ele com a esperança nos novos poetas. 

 O que discerniu muito sinteticamente sobre Antero de Quental merece ser salvo da tumba do esquecimento dos frágeis jornais no decorrer do Tempo e receber alguma hermenêutica mais luminosa, pois Joaquim Correia da Costa era um pensador crítico, inteligente e sensível, apreciador das literatura e artes plásticas, do integralismo e tradições portuguesas, com muitos amigos, tal Fernando Pessoa, Carlos Parreira, João Ameal e outros,  pelo que vamos então ressuscitá-lo, saudando-o no esplendor do espírito e das coisas, para o seguirmos no seu livro de valiosos ensaios de crítica literária,   apontamentos de viagem no estrangeiro e descrições de Portugal e seus costumes, -  campinas e cavadores, mercados e feiras, excelentes ou não fosse ele natural de Moita do Ribatejo - , dedicado  a Alberto da Rocha Brito, a António de Cértima e a Lino António, com capa de Almada Negreiros, dado à luz na Lumem, editora conimbricense, em 1926.

Eis o que nos transmite, como que em quatro sutras: - "Antero viveu a interrogar-se numa rebeldia dolorosa, onde surgiu a morte e com ela o seu sacrifício sobrehumano. O mais alto desejo sensível cabe todo dentro de alguns sonetos de Antero. O Poeta atingiu em sua obra o credo na humana condição, tão vizinha da morte. Atingiu num sonho todo o mundo e depois de o atingir disse à vida o seu Nirvana.»

Aproximemo-nos então do começo: "Antero viveu a interrogar-se numa rebeldia dolorosa, onde surgiu a morte e com ela o seu sacrifício sobrehumano."

Esta afirmação não é exagerada, pois Antero interrogou muito a vida e seus sentidos e mistérios, suas instituições e agentes, e fê-lo com audácia, coragem, independência e logo rebeldia não só mental mas também física e factual, como na sua vida de estudante, de polemista ou de revolucionário socialista exemplarmente manifestou.

Podemos dizer "interrogou", como talvez melhor ainda "questionou. investigou, demandou" e, nesse processo de estudo, exame, experimentação, descoberta, tese, antítese e síntese, Antero foi avançando e amadurecendo seja religiosa, política,  filosófica ou psiquicamente, todavia com a doença a surgir-lhe algo cedo, diminuindo-o na sua irradiação e obra e predispondo-o para a morte precoce. Assim, as unificações com o mundo das ideias e dos seres pela laboração afectiva e psíquica, poética e filosófica que Antero realizara e partilhara, através da edição final dos Sonetos e a publicação das Tendências Gerais do Pensamento Filosófico, ficaram como o seu testamento, final, ainda que reconhecesse nele limitações de não ter conseguido gerar a sua poesia espiritual e luminosa perfeita, nem escrever a sua visão filosófico-espiritual plenamente.

Foi um "sacrifício sobre-humano", o seu suicídio? É uma boa denominação ou  classificação do acto fatal: Antero mata-se, sacrifica-se na ara ou altar dos seus ideais, das suas aspirações e do inconseguimento deles pessoal e provavemente até nacional. 

Era uma parte - quem sabe, um dos seus corações - de Portugal que se suicidava, vencida na incapacidade  da Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero, de conseguir em 1891 dinamizar a reacção voluntariosa dos partidos e do governo ao Ultimato do imperialismo britânico.  

No anoitecer de 11 de Setembro de 1891, olhando para trás, nesse alto monte escarpado final, Antero de Quental deve ter visto a sua vida fabulosa de criança açoriana, de estudante, de literato, de poeta apaixonado, de orador, de revolucionário idealista, político e socialista, de epistológrafo e filósofo, mas em que não conseguira assentar na realidade da profissão e trabalho,  casa e  terra, mulher certa ou amada (a sua Beatriz  sentida idealizadamente na Beatrice e nas Primaveras Românticas)  ou ainda  grupo, cenáculo ou meio receptivo e frutuoso, mesmo que fosse só a Ordem dos Mateiros, sonhada para uns poucos, em modo agro-florestal e contemplativo, resistentes à degeneração do Ocidente, como hoje mais acentuadamente observamos, com alguns montados mateiros a sobreviverem.

Assim, a não-vivência harmoniosa ou plena como desejaria, a má situação do corpo, dos nervos e da esperança na alma de Portugal e na possibilidade de cooperar com ela e, por fim, a frustração do seu projecto de retorno à ilha natal com as duas pupilas - ao não se poder realizar na proximidade com elas desejada - levaram-no a cortar os laços que o prendiam à humanidade da terra. E nestes sentidos Antero foi sobre-humano, arrancou ou exigiu algo mais do que o humano nele.......

Estava desiludido, cansado de quê? Da terra mesmo, da vida humana, da sociedade, e em especial da sociedade portuguesa e açoriana, ou estava sobretudo já desinteressado da vida da Terra, por não ter mais esperanças quanto a ela e, pelo  desgaste e enfraquecimento nervoso e psíquico e a sua difícil readaptação à vida parda em Lisboa (para onde teria de regressar), só e com escassos amigos, algo já uma sombra do Antero deslumbrante que Eça de Queirós viria a debuxar uns anos depois magnificamente no seu In Memoriam?

Assim a palavra sacrifício sobre-humano pode interpretar-se em vários sentidos, tal o de desiludido, sacrificar de novo a sua vida, e agora diante da morte, face aos altos ideais supra-humanos: - "Já que não os consigo mais realizar, nem nós portugueses, que haja quem faça o seppuku ou hara-kiri, o mea culpa, o não sou digno de Ti, Vida, partindo sem medo para a libertadora irmã Morte."

E foi um "sacrifício sobre-humano", difícil, como são a maioria dos suicídios - e que longo filme ou livro trágico se realizaria de últimos  pensamentos dos que enveredaram por tal prática e caminho -, porque provavelmente se debateu dolorosamente entre o ir e o ficar, entre o tentar  realizar ainda algo (talvez obra filosófica e espiritual, ou apenas a educação das duas pupilas Albertina e Beatriz) ou o baixar os braços e desistir. E, finalmente, porque  no fim dos dois tiros disparados  esteve algum tempo ainda em forte sofrimento, numa crucificação sobre-humana, só suportável porque a um "sobre-humano nível" se referia e aspirava...

Entremos agora nas ideias-forças da 2ª afirmação sutrica: "O mais alto desejo sensível cabe todo em alguns sonetos de Antero."

Nesta frase, afirmativa da poderosa força (quase atómica) dos sonetos de Antero,  discernimos a sua compreensão dele ter conseguido atingir em poemas o máximo de amor, de aspiração, de idealismo, isto é, de alto desejo, seja de amor,  justiça,  gnose,  fraternidade ou verdade, e ter condensado tal em palavras, rimas, ritmos, imagens, sentimentos, sonetos poderosamente perenes.  

E são realmente muitos  os poemas e sonetos plenos de tal fogo e demanda, que infelizmente não foi tão plenamente realizada em certos níveis internos e gnósticos, embora noutros sim e que ele sabia: a perfeição poética estava reconhecida, e o seu pensamento filosófico foi partilhado no fim da vida na Revista de Portugal e por alguns bem recebido, e durante muitos anos em cartas fora derramando a sua palavra ou verbo encantatório, idealista, libertador, fraterno, sábio....


A frase seguinte, "O poeta atingiu em sua obra o credo na humana condição, tão vizinha da morte, " é também bastante desafiadora, e poderemos lê-la, entre outras hermenêuticas, assim: A obra poética de Antero é um credo, uma afirmação de crença nos valores e potencialidades do ser humano, imensos  e enormes, mas que sabemos serem sempre frágeis pela sua sujeição à sempre vizinha morte e a tantas adversidades.

Joaquim Correia da Costa demonstra uma boa afinidade com o pensamento de Antero de Quental, na valorização da morte sempre ao lado da vida e, nesta equiparação, nesta visão da dualidade, pode haver até uma crença na vida depois da morte, pois se a vida gera tantas maravilhas, mas está sempre colada à morte, porque não admitir que esta tenha também muitas maravilhas em reserva para os que as merecerem?  Não sabemos porém o posicionamento espírita, ou espiritual, ou de crente ou descrente na imortalidade da alma, que Joaquim Correia da Costa tinha. Contudo, o últim0 sutra permite vasta hermenêutica:  "Atingiu num sonho todo o mundo e depois de o atingir disse à vida o seu Nirvana."

Esta tão bela quão misteriosa frase  poderemos interpretá-la pluridimensionalmente: Antero de Quental alcançou na sua obra poética e de ensaio literário, político, filosófico, ético e espiritual uma expansão consciencial muito grande, quase uma unidade com o universo e, atingida tal infinitização, Antero despediu-se da Vida fazendo por si próprio a sua extinção ou Nirvana, no banco do jardim ou campo de S. Francisco, sob a palavra Esperança, na sua terra natal de Ponta Delgada, fechando o anel duplo do espaço tempo de Ouroboros, rumo ao seu além nirvânico, certamente não de extinção total mas antes, vislumbramos, de lenta ressurreição psico-mórfica...

 A expressão sutrica "disse à sua vida o seu nirvana" é bastante original e profunda e assinala tanto o poder persistente e coerente de rebeldia indomável de Antero, pois tal como se rebelara contra as praxes e autoridades académicas, ou  o patriarcalismo conservador da escola de Lisboa e de António Feliciano Castilho, e depois lutara por um socialismo humano e por fim contra o imperialismo britânico, confrontado com o aproximar irremediável da Morte, com quem tanto dialogara e poetizara no seu percurso ardente, preferiu ser ele dizer ou fazer a sua própria morte, ou fim, ou extinção ou nirvana, num acto portanto de rebeldia máxima à normalidade, provavelmente mais dolorosa que jubilosa ou nirvanica, pelo menos enquanto não morreu cerebralmente, embora não saibamos que forças de desprendimento libertador emanou em tal acto e momentos pelo éter eterno...

Resta intuir ainda com que força e luz ele despertou consciencialmente no além, já sem corpo físico mas num corpo poético-espiritual, e quanto tempo, as suas melhores ou mais causais tonalidades vibratórias, intensificadas com entretecimento com as dos por ele têm orado, levaram a ressuscitá-lo mais...

Muito luz e amor para os três: Antero de Quental, Mário Beirão e Joaquim Correia da Costa! Demos graças Lux, Aum, Amen, Iao, Hum.

Sem comentários: