domingo, 25 de fevereiro de 2024

Carta de Pico della Mirandola ao seu sobrinho Giovanni Francesco, de 2.6.1492, sobre o caminho espiritual. Com vídeo.

Finalizando as comemorações dos 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola (24.2.1463-1494) partilhamos a tradução de uma das suas cartas. Imagem provinda das comemorações dos 500 anos do aniversário, organizada por José V. de Pina Martins...

Giovanni Pico della Mirandola viveu bastante retirado do mundo, nos últimos anos da vida, dedicado aos estudos e à vida espiritual. Trabalhava numa obra que veio a ser publicada postumamente as Disputationes adversus Astrologos, extensa defesa da incognosbicilidade do futuro face ao livre arbítrio human e as múltiplas causalidades circunstanciais, mas foi escrevendo cartas algumas bem valiosas que deixam transparecer tanto a sua espiritualidade interna e universalista como a sua piedade religiosa e crença católica, além de serem testemunhos da sua psicologia e estado psicológico.

Pico della Mirandola, numa pintura quinhentista que pertenceu José V. de Pina Martins, sábio confabulator espiritual de Pico, Erasmo, Ficino e Thomas More... 
Das cartas que escreveu para o seu sobrinho João Francisco, duas de Maio e Junho de 1492 são valiosas. Já transcrevi partes duma delas, a mais valiosa, de Maio de 1492, e pode lê-la em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/12/carta-de-giovanni-pico-della-mirandola.html  e desta vez resolvemos ler traduzindo e gravando a de Junho, e a partir da versão francesa de Olivier Boulnois e Giusepe Tognon publicada nas P.U.F., Paris, em 1993. Posteriormente  lemo-la  em latim  e é a partir desta que vamos transcrever (sobretudo para quem não tiver paciência de ouvir os 30 minutos da tradução) as partes mais valiosas, agora numa tradução minha do latim com  alterações fortes em relação à versão do francês lida e gravada, a qual não consegue transmitir bem, ou não quer transmitir, a força espiritual do texto e do Pico, para além de que a língua portuguesa deve ser, após a italiana, a que permite traduções mais perfeitas ou fidedignas, ainda que esta minha ainda possa ser aperfeiçoada...

«(...) Feliz és, filho, quando Deus não só te atribui o que precisas para viver bem, mas porque tu vivendo bem, ouves dizer  mal de ti    pelos maus, precisamente por viveres bem. É o mesmo louvor seja os que são louváveis louvarem-te seja os que são improbos denegrirem-te.

Mas chamo-te feliz, não pela razão que tal calunia é gloriosa para ti, mas porque o S´senhor Jesus, que é verdadeiro, ou mais ainda a própria verdade, afirma que a nossa mercê [ou graça, ou ganho] será copiosa nos céus quando os homens disserem males de nós  e disserem mentirosamente todo o mal contra nós por causa dele [a Verdade, e Jesus, o verdadeiro].

(...) Finalmente, se o mundo te aplaude, é difícil que a virtude que devia estar toda erecta para o alto, e só agradar a Deus,  não se torne ela a pouco e pouco inclinada para às graças dos homens que a aplaudem; e se não perde a sua integridade perde contudo o prémio, pois este ao começar a ser pago neste mundo onde todas as coisas são exíguas,  pequeno será no céu onde todas as coisas são imensas.

Bem aventuradas as afrontas que nos protegem e impedem que a flor da juventude não estiole sob o vento pestífero da glória inane, ou que o nosso prémio na eternidade não seja diminuído pelo rumor vão popular. Abracemos filho, estas afrontas e orgulhemo-nos, na santa ambição de servidores fiéis, somente da ignominiosa  Cruz do Senhor.

(...)  Cogita  quanta seria a tua insânia, se o juízo dos insanos te demovesse da vida recta estabelecida. Pois todo o erro deve ser removido pela sua correção e não ser aumentado pela sua imitação. Que eles relinchem, ladrem, rujam. Tu avança no teu caminho intrépido. E pesa cuidadosamente quanto deves a Deus pela negligência e miséria deles. O que estava sentado à sombra da morte ele iluminou, e tirou-o das  reuniões dos que em trevas densíssimas se desviam em frenesins sem guia, e associou-o aos filhos da Luz. Soe aquela voz suavíssima do Senhor sempre nos teus ouvidos: «Deixa os mortos sepultar os mortos, tu segue-me» [Lucas IX, 59-60]. Mortos estão de facto  aqueles em quem Deus não toma lugar, e que, neste este espaço temporário de morte, adquirem para si laboriosamente  a morte eterna.

(...) Portanto fecha os ouvidos com cera, caríssimo filho, e o que quer que digam, o que quer que pensem de ti os homens, tem como nada; considera só o juízo de Deus, que dará a cada um segundo as suas obras aquando da sua revelação do céu, com os Anjos da sua virtude, libertando pela chama do fogo aqueles que não conheceram Deus e que não prestaram atenção ao seu Evangelho. A quem serão dados penas (como o diz o Apóstolo), em extinção eterna  da face do Senhor e da glória da sua potência, enquanto que todos os que acreditaram nele serão glorificados na virtude dos seus santos e na sua admirável  contemplação.

(...) Faz isso, e cogita sempre na morte, sempre iminente e ameaçando-nos. Assim vivemos em menos que um instante, e cogita  como é mau o antigo inimigo, que nos prometeu os reinos da terra para nos retirar o reino dos céus, como são falsos todos esses prazeres que por essa razão nos abraçam para estrangular, como são dolosas essas honras que nos elevam para nos precipitar em seguida, como essas riquezas alegres que ao alimentar-nos delas mais nos envenenam; cogita como é breve, incerto, vão, falso e imaginário  tudo isso que  nos poderiam oferecer se pudessem satisfazer  os nossos desejos ou votos, e como é grande o que está prometido e preparado para os que menosprezam as coisas presentes e suspiram por aquela pátria cujo rei é a Divindade, cuja lei a caridade, e cujo ritmo é a eternidade.  
 Nesta e em semelhantes cogitações ocupa o teu ânimo para que possam  despertar-te se dormes,  acender-te se estás morno, confirmar-te se vacilas, e produzir as asas do amor da Divindade tendentes ao céu , para que, quando voltares a nós,  o que todos nós aguardamos  com  desejo, e não só pois o queremos,  te vejamos como queremos ver-te. Avança bem [Vale] e ama Deus, a quem já começaste a temer.
Ferrara, 2 de Julho de 1492»
Segue-se a gravação da carta toda, embora seguindo a tradução francesa, e com um pequeno mas razoável comentário pontual:

                              

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