No Diário de Lisboa, de 7 de Abril de 1925, numa homenagem a Antero de Quental, deu-se à luz a transcrição de uma carta até então inédita enviada pelo vate ao seu amigo e publicista Oliveira Martins, de 17 Dezembro [de 1872] e não de 1873 como o jornalista identificara, conforme Ana Maria Almeida Martins veio a esclarecer na sua edição de Antero de Quental. Cartas. Houve ainda outros erros na transcrição da carta para o jornal e que corrigimos (a negro), aproveitando para transcrever outras linhas pelo valor das ideias e imagens expressas, algumas delas que sublinhamos. Anote-se que a valiosa revista Bipolar, da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares (ADEB) no seu nº 51, por ocasião do seu 25º aniversário, em 2015, partilhou igualmente esta carta incorrendo também em alguns erros ou gralhas.
«17 de Dezembro
Caro amigo.
Deve ter estranhado não ter recebido ainda os números do Popular com os meus folhetins a respeito do seu livro. Encarecidamente lhe peço me desculpe. Sei que é uma obrigação que tenho a cumprir, não só por termos ficado nisso, mas sobretudo, independentemente da nossa amizade, pela minha posição de publicista-socialista a respeito de um qualquer livro que se intitule Teoria do Socialismo. Mas, se eu tenho o sentimento imperioso dos meus deveres, o que não tenho infelizmente (por ora; espero vir a tê-la) é a escolha do momento em que os cumpra: não é quando eu quero, mas quando não sei quê quer. É deplorável isto, mas tenho notado ultimamente que não é opondo-me de frente ao meu desgraçado temperamento que hei-de vencer, mas sim ladeando-o, transigindo razoavelmente com ele e como que por meio de mútuos compromissos entre a natureza e a razão: só assim me transformarei com o tempo, até fazer do meu quero subjectivo inerte, uma vontade objectiva real.»
Como vemos ou lemos Antero tece considerações valiosas sobre o drama psico-somático de sofrer momentos de grande falta de vontade, por vezes duradouros, e como os ia ladeando, diminuindo e preenchendo com actividades que evitavam eles tornarem-se mais entranhados e enfraquecedores, nomeadamente pensando e estudando, tentando que a parte racional se animasse nele e agisse até no seu somatismo e tónus energético e sentimental.
Na parágrafo final da carta há um outro pequeno erro na transcrição jornalística e vamos passá-lo todo, até com o anterior, pelo seu valor de compreensão do inconsciente e pela visão das folhas brancas como tristes à espera que ele se inspire ou seja inspirado e as encha do seu Logos ou Palavra, o Sermo, como lhe chamava Erasmo:
«Aqui está, amigo, a razão porque tenho há bons 20 dias em cima da mesa o seu livro, e ao pé algumas folhas de papel branco, que esperam melancólicas o momento em que me volte a inspiração e a vontade, e que todos os dias me lembram o cumprimento dos meus deveres, sem que eu lhes possa responder senão com um desalentado amanhã, talvez! Desculpe-me pois: deixemos passar esta crise, e volveremos depois ao trabalho com mais ânimo e força. Não me esquecem as minhas obrigações; o que porém não está na minha mão é marcar o dia e a hora em que as cumpra. Paciência!
Depois disto, escusado será dizer-lhe que o meu Programa [dos Trabalhos para a Geração Nova, que não chegou a concluir] dorme há mais de mês com o sono pesado dum animal que hiberna. Mas nesse sono não haverá sonho, alguma forma de vida latente, e uma concentração de força que se armazena para rebentar depois com energia? Sinto, com efeito, que o meu espírito, apesar do sonambulismo actual, vai sempre ruminando e dispondo insensivelmente certas ideias, alargando certos pontos de vista, obscuramente é verdade, e quase sem consciência (passivamente e como que hanté) mas com uma surda continuidade que não pode ser de todo infecunda – que até seja talvez uma fase necessária da evolução do pensamento.
Adeus,
seu do Coração,
Anthero »
Destaque-se nesta parte final uma certa gnose optimista do inconsciente, do sono, do sonho e da fermentação que ocorre por si mesmo, e ainda de que o seu espírito possa ir trabalhando as ideias e melhorando os pontos de vista do seu ensaio, uma questão ainda hoje, pesem os trabalhos das psicologias das profundezas, ainda pouco clarificada objectivamente.
Muita luz e amor divinos na alma espiritual de Antero de Quental! |
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