sábado, 1 de junho de 2024

Ensinamentos do engenho do amor de Luís de Camões. Comemorações dos 500 anos do seu nascimento. 1º texto.

                                      

 A vasta obra de Luís de Camões (1524-1580) contém tanta sabedoria e amor, tantas ideias e sentimentos-forças que, enquanto houver ou for lida a língua portuguesa, ela será sempre  fonte inexaurível de luz e amor, não só pelo  génio poético como pela sensibilidade e vida, filosofia e labor. E em tantos níveis que, apesar de já terem sido escritos milhares senão milhões de livros e artigos sobre a sua vida e obra, será sempre valiosa trazê-la à luz pública da contemporaneidade, mormente neste ano de 2024 quando celebramos os 500 anos do seu aniversário.

O épico, o lírico, o dramaturgo, o artista, aventureiro, o geógrafo, o etnógrafo, o amante, o humanista, o religioso, o filósofo e o crítico social são alguns dos espelhos em que ele se pode refractar, mas neste  modesto trabalho, a partir da sua alma e obra  multidimensional, geraremos algumas centelhas luminosas e amorosas que nos vivifiquem, elevem e aperfeiçoem.

Como poeta do Amor, vivido e entendido na totalidade do seu ser, Camões foi entre nós supremo vate, só Bocage (1765-1805) dele podendo aproximar-se, e encontramos então na sua obra, e nomeadamente nas redondilhas, muitas flechas que manifestam a misteriosa força que move as estrelas e une e complementa os seres tão poderosamente, como ele tantas vezes sentiu e  poetizou com genialidade vivida e imaginada, utópica e perene,  como manifesta com a sua criação da ilha do Amor, dos Amores ou Namorada, e o seu alto monte, donde Vasco da Gama contempla, com a Musa ou Deusa, a providência no mundo, a harmonia das esferas e a fonte Divina.

Nos vales e rios, mares e montes do Amor andou muitas vezes, entusiasmando-se com a formosura e delicadeza das mulheres ou damas por quem sentia mais afinidade, correspondida ou não, mas   sempre esteve na montanha do Amor, pois a sua vida anímica foi uma peregrinação constante às diversas alturas criativas do Amor e à sua fonte Divina, arquétipo atractivo e elevativo de todo o coração mais ardente e profundo.

A sua familiaridade com a filosofia grega-romana antiga platónica, e com Petrarca, de quem traduziu os famosos Triomphi, permitiu-lhe ver a multidimensionalidade do Amor e como os nossos estados anímicos formam e deformam o nosso ser psicosomático nas aventuras e desventuras da sua vivência, meditação e poetização. Risos, gemidos e ais escaparam do seu peito e boca, por vezes quase se perdendo na alma por quem suspirava, outras vezes as lágrimas e desilusões abrindo regos para as correntes das graças divinas ou das musas descerem sobre a aura e o inspirarem.

Do mundo subtil dos olhos sempre viu e bebeu tanto que se pode dizer que cegou, tal era a sua sensibilidade à riqueza da alma e do Amor que os olhos contêm ou emanam. Fogo ou lume do céu, chispas que ferem e prendem, flechas ígneas, eis o Amor, cego ou clarividente, radiando do peito e dos olhos.

Guerreiro, nauta, peregrino, poeta, amante, Luís de Camões viu a alma como um castelo, tal como a sua contemporânea S. Teresa de Ávila (1515-1582) a concebera misticamente em mansões, e por tal estruturação da forma, ele podia ver do alto e resistir aos ataques, ferimentos e desânimos, alcançando firme, sob o sereno céu azulado interior, tal como S. Teresa, seja a sua missão de poeta seja a intuição da essência divina primordial ou a individual de quem  amava e se lembrava.

Este ver a alma como castelo ou torre, este contemplar do céu, da amada e da divindade, implica o olhar interior bem focado e determinado, para se irem dissipando as sombras dos pensamentos e receios, através da subtil de força de aspiração à união e à comunhão, e que são efeitos elevados (e no Oriente e seus yogis, por onde ele peregrinou 17 anos, bem trabalhados) derivados do acesso ao Amor e à Verdade que consubstancializam a Anima mundi, ou o Logos.

Na realidade, tal como os olhos reflectem os estados de alma, os sentimentos e pensamentos e, no fundo, o Amor que uma pessoa tem, ou que por uma pessoa passa, e que se manifesta por  claridade, luz, ar ou mesmo fogo que emanam, assim a capacidade de concentração  interior unitiva depende do amor que se tem ou se consegue desenvolver, abrindo-se canais para os mundos anímicos dos outros e para o espiritual e divino. 

Por isso música, cantos, mantras e jaculatórias tentam intensificar a correnteza do amor unificador nas almas místicas, tal como as enamoradas, sobretudo se entre si formosas e piedosas,  podem sentir na lembrança, esperança ou repetição do nome da amado ou amado grande felicidade, numa participação, por voo ou por telepatia,  na reciprocidade de alma, entrando-se num estado unitivo, exprimido de certo modo no dito popular "para onde for te levo, e me levas".

As  metamorfoses do coração pelas suas irradiações, nas suas relações potenciais com quem se ama, são bastante subtis e delicadas, tal como  podemos observar plasmadas na filigranas da nossa joalharia em forma do coração ou de arrecadas, e tanto  emanam levemente em redor como partem como asas e flechas para o coração de quem as merece, recebe ou vê, subtilmente...

Já a união do coração com os olhos, o pôr o coração nos olhos, que Luís de Camões bem valorizou, não é  fácil de se alcançar quando não se está  apaixonado ou em amor espiritual, ou quando não se está a vibrar intensamente com algo, pois só nessa unidade grande das potências da alma e do corpo, o fogo do Amor irradia poderosamente do peito e evola-se ardentemente pelos olhos e aura, ou então mareja-os de lágrimas, seja  de saudade ou de felicidade.

O ensinamento da tradição dos Fiéis do Amor, a que pertenceram Dante Alighieri, Luís de Camões e outros, fundamenta-se na constância da semeadura e lavoura do Amor, ou seja, da irradiação do fogo do Coração  independentemente dos frutos que venham, pois o dever é o da acção justa e não o da colheita, pois o Amor ordena não  acomodar-nos em posses e resultados, mas  avivarmos o espírito e criarmos e fazermos o bem, em unidade e multipolaridade...

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