quinta-feira, 9 de maio de 2024

A conversão e morte de Leonardo Coimbra, vista por Teixeira Pascoaes, segundo Sant'Anna Dionísio, em "O Poeta, essa ave metafísica"

                                                  

O princípio do 4º capítulo do livro O Poeta, essa ave metafísica, (Lisboa, Seara Nova, 1953), consagrado a uma visita de Sant'Anna Dionísio a Teixeira de Pascoaes na sua casa em Gatão, Amarante, intitulado Fim de tarde, é verdadeiramente de antologia pois Sant'Anna Dionísio consegue fazer-nos quase sentir que estamos na Grécia ou no Mediterrâneo nos tempo antigos, ao mesmo tempo que nos aproxima do mistério do fatum anímico-espiritual de Leonardo Coimbra e de Teixeira Pascoaes:
«Depois de uma pequena volta pelo jardim, sentamo-nos junto de uma antiga fonte sob um dossel de velhas videiras ainda com alguns cachos de uvas brancas e lilases, de Corinto. Por momentos afasto-me para provar alguns bagos de um belo cacho doirado.»...

Estamos bem preparados, aguçados mesmo no sorver o néctar, para entrar no diálogo mais dramático que  os dois vão travar nesse memorável dia outonal de 1949 e talvez  sobretudo para Sant'Anna Dionísio, o discípulo mais fiel e pleno de Leonardo Coimbra, constantemente envolto em polémicas em sua defesa,  quer no valor de sua personalidade, vida e obra como também acerca da sua conversão ao catolicismo e súbita morte em acidente de automóvel numa curva da estrada da Lixa.  

Sant'Anna Dionísio

Vejamos como Sant'Anna Dionísio narra o diálogo e as ideias que Teixeira de Pascoaes concebia quanto à conversão e morte de Leonardo Coimbra:
«E voltamos ao assunto do Leonardo Coimbra. Pascoaes, como sempre, em dois traços define o desaparecido companheiro: 
-  Era uma alma forte e alegre... Mas foi pena aquele passo final... aquela conversão... Foi o Diabo....
S. Dionísio.- Na verdade..., respondo. Mas Leonardo viveu sempre em estado de perigo diante do catolicismo. Era uma espécie de vertigem a chamá-lo.
T. Pascoaes. - Pois sim. Mas foi pena que se convertesse na ocasião em que o fez. Se estivesse um governo anti-religioso, duro, avermelhado, - está bem; a sua atitude seria justificada e heróica. Assim, - foi o diabo.»
Falam depois de outros assuntos mas de repente Pascoaes, certamente sabendo da grande devoção de Sant'anna Dionísio a Leonardo Coimbra, e consciente de ser misteriosa a sua afirmação, contra-ataca: «E não julgue que digo que foi o diabo, como quem diz merecia uma surra. Digo foi o diabo porque estou em crer que foi o próprio Satanás quem esmagou o pobre Leonardo naquela noite de breu, no fundo de uma horta, - foi o filho das Trevas... A não ser que tenha sido outra a força invisível que o moveu. E essa razão pode ser ainda mais trágica que a caprichosa vontade do Diabo. Pode ter sido a força do Desespero. A queda na descrença ou na crença religiosa é sempre o mesmo acto desesperado»

Esta última afirmação parece desvendar-nos Pascoaes na sua velha linha anarquista, libertária, mas muito dualista de Deus Jehova e do Diabo,  pois equipara a descrença, do agnosticismo, com a crença religiosa, considerando-as ambas como actos de desesperados, e talvez possamos aceitar tal se ele se refere a certo tipo de crença cega num corpo de dogmas, doutrina e ritos, ou a concepção de Deus violenta e absurda que é a de Jehova. Mas que haja uma força do desespero que pode matar quem se converte, só se pensarmos que o Diabo ou as forças do Mal desesperadas pela conversão de Leonardo decidiram matá-lo, apoiando ou causando invisivelmente as circunstâncias geradoras do acidente fatal.

Na realidade, a frase de Pascoaes é profundamente contestária da adesão religiosa, pois considera-a um acto de desespero, e poderemos equipará-lo mais luminosamente, para não ser o desesperado-perdido-atemorizado e sem mais recursos, que não assenta em Leonardo Coimbra,  como o não se ter conseguido esperar por um conhecimento, por uma gnose individidual, auto-conquistada. Ou seja, Leonardo teria renunciado à sua autonomia, subsumindo-se na tradição cristã, pela conversão, que não seria tanto  conversão como mais a aceitação dessa tradição religiosa portuguesa e que contém tantos grandes seres e ensinamentos, como igualmente aspectos mais de crença infantil ou no absurdo, recomendada por alguns teólogos mais conservadores ou conformistas.

Teixeira Pascoaes parece apresentar uma visão quase política da morte de Leonardo Coimbra. Num momento em que o salazarismo e a igreja do cardeal Gonçalves  Cerejeira cresciam, triunfavam Leonardo não deveria ter aceitado a conversa do sábio e santo padre Cruz, que o converteu ou conduziu à conversão, ocorrida a 23 de Dezembro de 1935, ainda que se diga que ele reentrara no seio da Igreja  apenas para se poder casar e legitimar o filho. E assim, tendo errado, deixando de estar no seu caminho de Luz, Leonardo ficou exposto a que dez dias depois de tal reingresso no Catolicsmo, se desse o acidente de automóvel e, após dois dias no hospital, a desencarnação.

Leonardo Coimbra nos seus últimos anos

Se admitirmos, como queria Teixeira de Pascoaes que a conversão foi errada, seja por não ser a hora-época, seja por em si mesma ser algo de desesperado, então poderemos facilmente pensar também que Pico della Mirandola, que estivera semi-excomungado alguns anos pelo carácter esotérico ou mesmo herético de algumas das suas teses religiosas,  morreria tão precocemente com 32 anos já que abandonara parte do seu independente universalismo esotérico e, sob a influência austera de Jerónimo Savonarola, se entregara ao cristianismo mais simples ou de ser mesmo um missionário de uma crença religiosa.

Eram indubitavelmente dois seres de grande coração e amor e abertura intelectual e espiritual e que cederam às influências de dois seres, Padre Cruz e Frei Savonarola, que no Cristanismo se tinham elevado animicamente poderosamente e os encantaram e os convenceram a confessarem os seus pecados e a aceitarem essa intermediarização deles, sacerdotes, e da Igreja e seu corpo doutrinal, para com Deus, abdicando humildemente de o realizarem independente  e talvez como que preparando-se para a morte e para um progresso na vida no além menos desconhecido de direcionament, e mais acompanhado pela Igreja e o seu corpo místico a que se tinham entregue mais formalmente ou oficialmente.

 Poderemos contudo pensar ainda que Leonardo Coimbra aceitou a adesão à Igreja Católica porque sentiu que a sua afinidade religiosa com o Cristo era tão grande que podia aceitar os males menores da instituição Católica e que acreditava tanto nos ensinamentos e na pessoa de Jesus Cristo, que podia bem manifestar essa aceitação do Cristianismo, sem se importar com os seus antigos companheiro, ou os portugueses em geral, que eram anti-religiosos, ateus ou anti-católicos. 

Na hermenêutica de Pascoaes da morte de Leonardo ressalta porém que teria sido mesmo Satanáz o príncipe da trevas, quem estivera por detrás do acidente talvez por odiar que um dos melhores pensadores e oradores de Portugal, sem necessidade de estar a lutar contra perseguições anti-religiosas e ateísmo, aderisse à Igreja, à Religião.

Não é fácil pronunciar-nos com um mínimo de probabilidades quanto à ingerência de forças negativas, satânicas nas mortes súbitas e inesperadas de pessoas e no caso do grande professor e orador, como certamente não conseguiremos adivinhar o que poderia ainda resultar de grande espiritualidade fecundante do catolicismo pela conversão à instituição católica do malogrado Leonardo, que dera já com fundo teor espiritual cristão obras como Jesus e S. Francisco de Assis.

Uma das últimas fotografias de um dos génios de Portugal, como Fernando Pessoa reconheceu.

Nestes vários sentidos cabe-nos orar e vigiar, isto é meditar e estar de plena atenção ou com mil olhos para não nos deixarmos abater precocemente seja pela febre piciana seja pelo acidente de automóvel na Lixa que propulsionou Leonardo de Coimbra para os planos espirituais com passaporte cristão.

Vigiai e orai, pois nunca sabereis quando vem o filho de Deus ou o Diabo...

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