segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Uma biografia de Anton Rubinstein por Higino da Costa Paulino, na "Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes", com a sua Sinfonia No. 2 in C major Op. 42 'Ocean'.

Apesar de já ter mais de uma centena de anos a biografia do grande compositor e pianista do final do século XIX António Rubinstein, escrita pelo artista, comediógrafo e musicólogo Higino Augusto Mascarenhas da Costa Paulino para a Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes e dada à luz a 15 de Abril de 1884, resolvi ressuscitá-la das páginas já esquecidas e  transcrevê-la tanto para se conhecer a vida de um  génio musical como o que o seu contemporâneo e meu bisavô materno Higino, Gino conforme assinava, que o ouviu tocar no S. Carlos em Lisboa, a 14 de Março de 1881,  nos transmitiu na sua sensibilidade e linguagem artística portuguesa de final do século XIX.
                                  
Higino da Costa Paulino irá posteriormente viver e trabalhar para a Índia Portuguesa, onde casou com Maria Helena de Noronha e educou sábia e artisticamente os seus filhos e filhas e, em récitas e representações teatrais, várias outras crianças de Panjim durante trinta anos, até regressar de novo à urbe lisboeta, a Campo de Ourique. Oiçamo-lo segundo a sua anímica captação e descrição do mundo,  do ser humano e de Rubinstein...

                         

«Passados são três anos depois que o notável artista, de relance, se apresentou ao público de Lisboa. Quase nem tempo houve para admirar aquele engenho excepcional, que a Europa proclama, e que uma vez, por distração, se lembrou de poisar no palco do nosso primeiro teatro [S. Carlos], para quase de improviso erguer o voo a tão eminente altura, que por longas horas lhe aguardamos a descida, como se possível nos fora domesticar os génios, quando a eles se alia a mais requintada excentricidade.
Para António Rubinstein não existe no mundo ideal que o atraia, subjugue e convença, senão a arte! É a sua mãe estremecida, a sua esposa devotada, a sua filha carinhosa, numa palavra é a sua família dilecta! Fora daqui figura simplesmente um homem, cuja vitalidade se denuncia pelo pulsar das artérias, pelo movimento dum corpo que se agita, muitas vezes em desarmonia com os preceitos que a sociedade impõe.
Poucos indivíduos haverá cuja excentricidade ultrapassa aquela de que se reveste o espírito do genial artista que hoje tentamos biografar.
Em Espanha recusou fazer-se ouvir numa peça a quatro mãos com a rainha D. Cristina, alegando, com a maior sem cerimónia, que nunca tocara com amadores; em Dinamarca, convidado a tomar parte num concerto, no palácio real, saiu precipitadamente, pela simples razão de que, tendo chegado à hora aprazada, lhe disseram que sua majestade se demorava ainda o tempo preciso de concluir uma partida de whist; em Colónia, executou o programa de costas voltadas para cinco ou seis mil pessoas, pelo facto de que, entre esse número avultado de espectadores se achava o insigne o insigne professor Hiller, com quem ele tivera uma pequena discussão; de Portugal só levou recordações de Sintra, adivinhando no nosso público um temperamento anti-musical de tal ordem, que esteve para terminar a meio do concerto.
À semelhança destes, muitos casos se têm dado na carreira artística deste homem notável, e que são o cunho evidente do seu génio particular, que não é exactamente aquele que nos cumpre descrever. 
Desenho de Bordalo Pinheiro, amigo de Higino, para este número da Gazeta.

António Rubinstein, [Anton Grigoryevich Rubinstein, Антон Григорьевич Рубинштейн, ]filho de um negociante de lápis, estabelecido em Moscovo, nasceu em Wechwotynez [Vikhvatinets, Baltsky Uyezd], povoação da Moldávia, nas fronteiras russas, aos 28 de Novembro de 1829.
Foi inquestionavelmente devido a sua mãe, uma boa pianista, a quem o filho não desamparava um momento sequer, que António Rubinstein deveu a sua educação musical, e tanto assim que em 1835 começou a instruí-lo nos rudimentos desta arte. Foram de tal ordem os progressos patenteados por essa criança, que a mãe, reconhecendo-se insuficiente para mais amplamente os dilatar, chamou em seu auxílio Viloing, primeiro professor de piano em Moscovo, o único a quem Rubinstein deve a sua perfeita ciência neste instrumento. Logo aos nove anos se fez ouvir em um concerto, causando geral impressão o seu talento precoce. Motivos imperiosos obrigaram Villoing a ausentar-se para Paris e, renitente em não ceder o seu discípulo à vigilância de outro professor, resolveu levá-lo consigo para a capital da França. Aí, em 1840, instigado por grande número de notabilidades, Rubinstein deu um concerto, executando um reportório composto dos mais difíceis trechos de Bach, Beethoven, Chopin, Hummel e Liszt. Foi por conselho deste último que professor e discípulo se decidiram a visitar a Alemanha, percorrendo em seguida Holanda, Inglaterra, Suíça e Dinamarca, promovendo por toda a parte a mais justificada admiração. De volta à Rússia em 1843, aí se demorou pelo espaço de um ano, não descansando de promover concertos, onde sempre foi ouvido com inúmeras provas de simpatia. Por esta época já seu irmão Nicolau, uma criança de seis anos, denotava extraordinária propensão para a música, e tanto assim que Madame Rubinstein, em face de mais um nome glorioso na sua família, resolveu partir para Berlim acompanhada de seus dois filhos, tomando a prévia resolução de consultar em primeiro lugar o célebre Meyerbeer, o que levou a efeito, e que teve por complemento, a entrega de António e Nicolau aos cuidados do professor Dehn, que, durante dois anos, os instruiu, com o máximo desvelo, em harmonia e contraponto. Achando-se gravemente enfermo em Moscovo o pai dos jovens artistas, sua esposa teve de voltar à Rússia em 1846, assistindo ainda aos derradeiros momentos desse honrado homem, que baixava à sepultura sem que a Providência lhe permitisse ser testemunho da forma gloriosa com o que o seu descendente lhe engrandeceria o nome.

Obrigado a dedicar-se ao comércio, Nicolau Rubinstein não teve ocasião de desenvolver-se na arte para a qual tão vivas tendências demonstrara, finalizando por consequência nessa época os seus estudos. António permaneceu em Viena, conseguindo com extrema felicidade prosseguir na sua auspiciosa carreira. Decorrido um ano mais empreendeu uma viagem à Hungria, acompanhado do flautista Heindl, formando em seguida projecto de se transportar à América, pensamento este não realizado, pela intervenção dos numerosos admiradores do seu talento, que obstaram à partida. Em vista pois desta prova do elevado apreço em que era reputada a inteligência de Rubinstein, o artista decidiu-se a permanecer na capital da Prússia, dando lições de piano, ao mesmo tempo que se entregava ao estudo da composição. Em pouco tempo esta nova fase da sua vasta capacidade lhes alcançou os foros de nomeada, e tanto assim que pôs de parte o piano, no qual já não encontrava segredos de espécie alguma. As revoluções de 1848 obrigaram-no a passar de novo à Rússia, fixando então a sua residência em S. Petersburgo.
Foi em 1849, que escreveu a primeira ópera o Dimitri, três actos representados em 1852. Teve esta composição um êxito tão satisfatório, que a Grã-duqueza Helena, dotada de uma alma extremamente artística, fixou as suas atenções sobre o autor, e favoráveis de tal maneira, que António Rubinstein passou a viver no sumptuoso palácio de Kamenoiostrow, trabalhando ali
desafogadamente e rodeado dos mais apetecíveis confortos.

                                   

Durante essa época escreveu A Vingança, Os Caçadores da Sibéria e O Louco da Aldeia que, conquanto perfeitas  no estilo, na instrumentação e no colorido, cópia dos costumes da Rússia, não tiveram êxito fora do vulgar.
Em 1854, os conde de Wielhorski, generosos protectores dos
artistas, e ainda hoje dos primeiros  amigos de Anton Rubinstein, aconselharam o compositor a visitar os melhores países estrangeiros, profundar as suas escolas, consultar os melhores mestres, afim de tornar mais evidente a fama desse nome que prometia honrar a sua pátria. À grã-duqueza Helena deveu ainda a Rubinstein o favor de obter os meios para a realização dessa viagem que teve começo em Maio do mesmo ano, e na qual o artista, depois da sua apresentação em Mayence, percorreu toda a Alemanha, sempre vitorioso em brilhantes recepções. Em 1855 foi a Paris, organizando na sala Herz alguns concertos a grande orquestra, causando viva impressão o desenvolvimento desse talento que os parisienses tanto haviam festejado no seu despontar. De Paris seguiu para Londres, onde os seus sucessos promoveram um ruído tal, que lhe alcançaram o diploma de pianista na corte da Rússia. De 1856 a 1857 não descansou de percorrer  as principais cidades da França e da Inglaterra coroado sempre pela profusão dos aplausos e lucros. Era então de uma rapidez vertiginosa nas composições, e como prova, basta citar-se que de 1848 a 1857  escreveu nada menos de 80 obras, cuja maior parte nada têm de pequenas. Nos começos de 1859 deu concertos em Viena, depois em Pesth, excitando transportes de admiração. Voltando a Paris em abril do mesmo ano, fez-se ouvir de novo na sala Herz com uma orquestra que executou a maioria das suas mais difíceis composições. Feita a saison na capital da França, partiu para Londres, atravessou a Rússia, sempre em tournée artística, e parou em Moscovo, nessa cidade tão risonha às suas recordações de infância, e onde viviam ainda os poucos membros da sua família.
Em 1859 efectuou novas viagens a Viena, Londres, S. Petersburgo, e em 23 de fevereiro de 1861, Antonio Rubinstein fazia representar no teatro da Porta Corinthia, em Viena, a opera em 3 actos As crianças de Landes que não aumentaram a nomeada do autor.
Alguns outros trabalhos de suma importância se seguiram a este e
que classificariam o maestro no mundo da arte, como uma organização musical da mais elevada essência; as suas obras eram até então repassadas de um sentimento de melodia não vulgar, e o ser harmónico, abundante de interesse, adquiria sucessos inesperados.
Rubinstein escrevia nessa época com extrema ligeireza, facto que deteriorava um pouco o plano das suas produções.

                              

Hoje o afamado maestro, verdadeiramente correcto, à custa de um estudo profundo e aturado, das pequenas faltas que algumas vezes tentaram afastá-lo do melhor caminho, coagindo-o a buscar nas modulações repetidas e na exageração dos processos os efeitos imaginados, é um artista célebre que a Europa inteira admira, e que no Daemon e no Nero alcançou triunfantemente a glória imorredoira
a que o seu talento tinha jus.
Foi em 1875, no teatro da opera em S. Petersburgo que o Daemon subiu à cena pela primeira vez. A ovação feita nessa ocasião ao maestro foi enorme, e mais grandiosa se tornou quando em 1881 no Convent Garden em Londres esta ópera foi interpretada pelos notáveis artistas Albani, Trebelli e Lassale.
O característico, o colorido e a forma rítmica, melodiosa e interessante, ornamentos essenciais do Daemon, conquistaram a António Rubinstein um lugar proeminente entre os primeiros compositores.
Neste mesmo ano, quando a celebridade parecia sorrir-lhe a cada
passo, quando o íntimo se lhe replectava de incomparável ventura, quando alfim a recompensa a tantos anos de um trabalho pertinaz, consecutivo, surgia lisonjeira, um golpe cruel, impiedoso, veio roubá-la à realidade dos prismas encantadores, para o abismar na realidade dos transes dolorosos. Nicolau Rubinstein, o irmão que ele tanto adorava, e por quem nutria uma dedicação excessiva, finava-se, vítima de uma tuberculose pulmonar. António ainda correu junto do leito do moribundo, porém, apenas abraçou um cadáver.
O desgosto magoou-o de tal forma, que o artista, de então para cá, mais reservou o seu carácter já triste e melancólico.

                                        

A arte, no seu majestoso poderio não sofreu que a violência de um
golpe prostrasse aquele, que os louros da glória não conseguiram adormecer. E tanto assim que há pouco mais de um mês a ópera italiana de S. Petersburgo engrinaldava de novo o seu templo para prestar ao talento de António Rubinstein a maior das ovações de que há memória na capital da Rússia. O Nero confirmava mais uma vez a pujança dessa concepção grandiosa que, desde tenros anos labuta em proveito  da mais sublime das artes - a música. Desde o czar a toda a corte, até ao mais humilde dos espectadores todos de pé aplaudiam essa obra maravilhosa, acenando com os lenços, e festejando o autor, que debaixo da profusa chuva de oiro e flores, agradecia comovido. Durand, Repetto, Stahl, Cotogni, Silva, intérpretes do spartito, e os demais artistas da companhia ofereceram ao maestro uma riquíssima coroa de prata, proferindo nesse momento o empresário frases de louvor, que decerto servirão de eterna memória a António Rubinstein.
Há quarenta e dois anos, uma das opiniões mais autorizadas da
Alemanha, ouvindo num pequeno concerto o pequeno artista, profetizava que o seu futuro havia de associar-se à arte como o mais sublime, puro e nobre que a natureza criou. O sábio doutor Bechar há vinte e quatro anos que morreu, mas o seu vaticínio atinge a eminência do alvo a que se dirigia.
Eis pois os traços biográficos que podemos coligir para descrever a existência artística de uma das primeiras notabilidades da época.
Como pianista teve o público português ocasião de adivinhar, ainda
que em pouca horas, quanto é poderosa essa inteligência musical, que não produz somente a bravura, a agilidade, a expressão estudada, as quais receberam  umas nuances artificiais, mas também o sentimento vivo, próprio, brotando do íntimo do coração, que se envolve nos sons, aprofunda-os e, inspirando-se, torna-se com eles um organismo incomparável, sublime! Esta foi sem dúvida a impressão legada aos portugueses pelo talento do célebre virtuose António Rubinstein.»
Gino. 

Anote-se que há outra biografia de Rubinstein e a reconstituição do seu concerto pelo insigne musicólogo Michel'Angelo Lambertini, na revista Arte Musical, nº 25, de 1900, online em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/ArteMusical/1900/N25/N25_master /ArteMusical_A2_N25_15Jan1900.pdf 

*** Muita Luz e Amor Divinos em Anton Rubinstein, Higino da Costa Paulino e Michel'Angelo Lambertini, e que nos possam inspirar...

                      

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