sábado, 1 de janeiro de 2022

"Contemplação" e "Evolução", sonetos de Antero de Quental, lidos do alto do Touro, no Gerês transmontano, e comentados brevemente

 No meu diário, a entrada de 19 Julho de 2021, segunda-feira, no Gerês transmontano, regista: «São 8:45. Saímos perto das 6, ao amanhecer, eu e o amigo Nelo (filho do sábio Manuel Afonso e de Soledade), grande conhecedor da região aonde a sua família habita já há séculos, para o Touro, um pico alto (cerca de 900 m.) aqui perto. De carro uns minutos e depois a pé. Alguns momentos mais difíceis pelos desníveis ou inclinações dos penedos por onde tivemos de subir ou descer, num local usando mesmo cordas, mas fez-se bem, a descida começando às 8:00.

                                 

                                 

Já na grande fraga do alto, com os seus característicos regos que pensamos frequentemente serem de cultos antigos mais do que de chuva, expandimos a alma na ampla vista sobre os montes circunvizinhos, as neblinas matinais e os horizontes longínquos, para além do Sol já erguido e o céu azulado  palpitante de mil partículas ou esferas luminosas voltijantes, o prana dos yogis indianos.

                                       

Levara uma edição de bolso dos Sonetos de Antero de Quental  abri à sorte, o istikhara persa, e li e comentei dois poemas: Contemplação e Evolução, valiosos mas ainda assim com uma ou outra limitação, talvez merecedoras de formulação mais optimista e luminosa: nomeadamente ao chamar ao granito antiquíssimo inimigo, ainda que fosse do mar, pois porque não ver um conúbio amoroso entre água e o granito da terra, tal como sentimos aqui entre o sol-céu e os penedos graníticos ?

                                     

O melhor dos dois poemas é sem dúvida a grande aspiração à liberdade com que Antero os escreveu, ou neles a inseriu, a partir das suas concepções filosóficas: na Contemplação, que já comentei noutro artigo, muito teórica ou mais da imaginação, termina com a concepção panpsíquica que unifica a matéria e o espírito, de acordo com a sensibilidade nocturna anteriana, no caso realçando a aspiração a mais luz:

«E dentre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido...»

Já o segundo soneto Evolução é:

«Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem ‑ e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.»

Neste soneto Antero exprime uma sensibilidade panteísta, ecoando talvez até alguma poesia persa que leu, nomeadamente Rumi (que tem poemas parecidos, como pode ler neste blogue), ou mesmo um credo evolucionista, sem dúvida verdadeiro em termos do corpo animal mas que não esgota a pluridimensionalidade humana, constituída como sabemos de corpo, alma e espírito. Ora Antero não aprofundou plenamente a diferença entre o espírito e a alma e concomitantemente ora aceitou, pelo cristianismo da educação e ambiente, a descida do espírito-alma à terra e ao corpo animal, ora viu mais a evolução da substância psíquica ou alma (a que pode chamar também espiritual). desde um estado inconsciente, na pedra, ao consciente  no ser humano. É belo e bem religioso e espiritual o sentimento que sente em si, de aspiração e adoração à liberdade, que é também à Verdade, Amor, Bem e Unidade ou Divindade. Algo desta aspiração de unificação culmina alguns dos seu melhores sonetos, nomeadamente quando refere a comunhão com os amigos ou antepassados já mortos, ou quando descansa o seu coração na mão de Deus. Mas faltou a Antero uma realização maior, meditativa até, do: - Eu sou um espírito luminoso e imortal.

Mais terra a terra, mas também com a adoração, brotou-me um breve poema escrito após a subida e sobre o granito, meu grande amigo antiquíssimo, ainda que já tenha escorregado dos seus penedos em declives uma ou outra vez e até sangue derramado. Ei-lo:

«Subo ao monte íngreme e pedregoso,
Faces lisas e altaneiras deparam-se-me.
As urzes e arbustos rasgam-me a pele,
Pernas e joelhos tremem do esforço
Mas não podemos parar nem duvidar,
O caminho pode ser mesmo a ajoelhar.»

Segue-se a leitura, com algum vento, dos sonetos Contemplação e Evolução, de Antero de Quental, num alto do Gerês:

                     

2 comentários:

João Rebolo disse...

Cotemplei a magnífica paisagem do Gerês e só me apetece ir lá logo que possa!
Vou ler mais poemas de Antero também nos próximos tempos!
Um grande abraço granítico, e desejo de novo ano cheio de renovação e renascimentos interiores!!
João Rebolo

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas, João, pelos votos que retribuo, acrescentando ainda criatividade e sucesso nos teus desenhos e trabalhos. Sim, o Antero de Quental tanto nos poemas como até mais nas Cartas é um inspirador muito luminoso, com uma vida muito rica e dramática.Quanto ao Gerês, esse permanece nos seus montes e recantos mais elevados e protegidos uma paisagem ainda divina e que merece a nossa visita peregrinante e contemplativa. Abraço bem luminoso, geresiano mesmo!