segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Dos místicos persas. Homenagem da tradição espiritual iraniana e da portuguesa aos comandantes Qasem Soleimani e Madhi Muhandis, no 2º aniversário do seu martírio e ungimento.

 Quando, convidado a conferenciar sobre o misticismo islâmico em Portugal e os diálogos ecuménicos desde o tempo dos Descobrimentos, numa universidade da cidade santa de Qom, perto de Teerão, afirmei a meio do semi-improvisado discurso, diante dos estudantes e professores de teologia e literatura, que considerava os místicos persas dos melhores do mundo, terei surpreendido os ouvintes iranianos, mas expliquei-lhes como tinham sabido desenvolver bem a ascese interiorizante, o desprendimento do mundo e os sentidos espirituais e assim atingir níveis muito profundos de auto-conhecimento espiritual e da relação com o cosmos subtil e a Divindade, transmitindo tal excelentemente para discípulos ou por escrito. Já na parte final das perguntas fui questionado quanto à razão de ter referido além de Shorawardi, Maulana Rumi, Ruzbehan, Najm Al-Din Kubra e o mestre Nur Ali Shah (1748-1798), sendo este um mestre tão pouco conhecido no Ocidente  e, curiosamente, como viria a saber finda a sessão,  eram discípulos dessa linhagem ainda hoje viva no Irão que me interpelavam e com quem me viria encontrar alguns dias depois.
Na realidade os místicos persas têm atrás de si uma longa tradição espiritual, tal como também os indo-europeus da Índia, pois recuam as suas raízes ao Zoroastrismo, a Mani  e às sucessivas transformações do Mazdeísmo, a que a se juntará a passagem dos sábios gregos, aquando do encerramento em 529 d. C. da Academia Platónica em Atenas pelo imperador Justiniano, bem como de gnósticos e, por fim, a entrada dos árabes seguidores do Islão, em meados do séc. VII.
Ora o Zoroastrismo tinha adoptado uma concepção ou cosmovisão pela qual Deus não podia ser a origem do mal, pelo que assumia o mundo como uma luta entre dois princípios do Bem e do Mal, estando o Espírito do Bem, Hormuzd (ou Mazda Ahura) acima do espírito do Mal Ahriman. E só com a vitória final de Ahura Mazda (Hormudz)  se iniciaria a era plena do Bem, tão desejada e esperada. 

Com esse desejado retorno do Divino à terra, profetizado ou imaginado com a entrada em acção dum último grande mestre, Saoshyant, de que o avatar Kalki no Sanatana Dharma da Índia é uma mesma concretização de arquétipo, tal como o são ainda as crenças ou expectativas do retorno de Jesus ou as do Décimo Imam escondido dos Shiaa persas, não se excluía, antes pelo contrário, era bem reafirmada, a importância do nosso trabalho interior e a vivência virtuosa quotidiana, tal como podemos ler já numa das preces zoroástricas ou mazdeístas: 

                                       
                           Zoroastro (ou Zardocht), Yasna 48, 12:

«Os salvadores (Saoshyants) a virem dos povos
são aqueles que, pelo Bom Pensamento (Vohuman)
se comprometem pelos seus actos a realizar
os deveres que vós, Mazda, o Sábio,
transmitistes enquanto justiça verdadeira. »

Esta sobreposição ou síntese no Irão do melhor ou do essencial das tradições religiosas indo-europeias e da semita islâmica deu uma simbiose potencialmente rica de universalismo e de amor, de tal modo que no Irão se desenvolveu mais fortemente a religião de Amor, tendo como seus profetas ou mestres principais os poetas Hafiz e Saadi, sobre os quais conferenciei em Teerão e Shiraz,  quando estive no Irão, em 2012. Pude nessa ocasião aperceber-me quão real era tal asserção, nomeadamente quando peregrinei aos túmulos destes dois grandes poetas e místicos de Shiraz, observando muita gente e jovem a acercar-se dos belos mausoléus e a recitar de cor, ou então a ler, poemas com sinais de grande devoção e felicidade.

Nur Ali Shah, em jovem mas já mestre. Fotografia tirada num museu de Teerão.

Foram muitos os escritores, mestres, filósofos e grandes poetas persas que aprofundaram os mistérios e belezas do Universo, do espírito e da Divindade e na palestra referi Rumi, Nur Ali Shah, Ruzbehan, Shorawardi, Najm Al-Din Kubra, ou ainda os indirectos da Índia mogol, Akbar e seu bisneto Dara Shikoh, e os seus sheiks ou mestres, e que em animados diálogos na Ibadat Khana, a casa de Adoração, com os missionários portugueses e ocidentais e representantes de outras religiões, estiveram em busca dos melhores princípios e práticas espirituais, os quais por Akbar em 1582 foram enunciados na fundada por ele Religião Divina, Din i -Ilahi.

Esta longa introdução serve para contextualizar alguns poemas dos grandes místicos persas que contêm em si sinais da religião de Amor, fagulhas da comunhão na essência espiritual comum dos seres e das diversas religiões e tradições, neste dia 3 de Janeiro, em que, comemorando-se o aniversário do assassinato cobarde pelos norte-americanos, liderados pelo tão manipulado e estouvado Donald Trump, dos heroicos comandantes da resistência ao terrorismo, o general Qassem Soleimani e o comandante Abu al Madhi Muhandis, quis de algum modo homenagear o passado, presente e futuro desse fabuloso povo e civilização do Irão e curvar-me sob o sangue sacrificial ou santo derramado e que certamente dará os seus frutos tanto de justiça na terra como na vida subtil espiritual...

Os Mestres, e sobretudo quando morrem assassinados cobardemente por Estados opressores, tornam-se mais dinâmicos em muitas mais almas, ou mesmo em povos inteiros... Longa vida anímica e espiritual aos corajosos opositores ao terrorismo anglo-americano, Nato, saudita, qatarico, israelita e turco. Longa vida aos heroicos comandantes da resistência Qassem Soleimani e Abu Mahdi al-Muhandis que são, tal como Julian Assange, Cristos ou ungidos e mártires dos nossos opressivos tempos... Lux Dei!

Oiçamos então algumas sementes da grande agricultura mística e ecuménica persa, tão actual para os nossos dias de pouco respeito pelas religiões dos outros, extraídas e traduzidas da obra Farah, L'Univers Paradisiaque des Soufis Persans, do Emir Nosrateddine Ghaffary, 1965, Tehéran, comprada num alfarrabista em Teerão. 

Ferdousi (940-1019), o Camões persa, a propósito dos zoroastrianos, mazdeístas, ou magos, e que chegaram ao conhecimento Ocidente de certo modo na lenda dos três Reis Magos,  eis uma quadra tão bela: 

                               

«Permanecem uma semana toda na comunhão de Deus.
Não creias que eles adoram o fogo.
O fogo é só o Oriente da sua oração
E os seus olhos estão cheios de lágrimas puras...»

                               Nizami Ganjavi  (1141-1209).

«A Deus sobem todos os pensamentos
E Dele descem todas as palavras.
Que o Seu Nome coroe toda a tua fala, recitação ou oração.»

                              

Farid al-Din 'Attar  (620-1223), já evocado neste blogue a propósito da sua Conferência dos Pássaros, que foi ilustrada entre nós por José Pinto Antunes, numa exposição de curadoria do Hélder Alfaiate (ambos já partidos para o além e logo muita luz e amor para eles) e para a qual escrevi o texto de apresentação, que encontra neste blogue. Oiçamos Attar:

«Nós somos os eternos mazdeístas
Nós não somos muçulmanos
Nós somos a honra da infidelidade
E a vergonha da fé oficial.

Muçulmano, eu sou esse mazdeísta
 Que constrói o templo do ídolo,
Sim, eu estou na fundação de tal templo.»


                      Molana Jalal ad-Din Rumi (1207-1273)

 «Que devo eu fazer, ò crentes
Se não me reconheço a mim mesmo
nem como cristão nem judeu
nem mazdeísta nem muçulmano
nem do Oriente nem do Ocidente,
nem do mar nem da terra
nem dos céus em rotação,
nem das minas da natureza.
Não possuindo alma nem corpo,
pertencendo ao Espírito supremo.
banindo a dualidade,
Não vejo senão um no universo, Ele.
E se me for dado um dia qualquer,
de estar um instante ao pé dele,
terei o mundo sobre os meus pés ...
e, então, dando-me todo, dançarei.»

                                Rahi Mo'ayyeri (1909-1968)

«Se tu podes ver o nosso brilho pelo olhar do coração
Verás no fundo do coração resplandecer o brilho de Deus.
Então poderás ler nos nossos olhos, o segredo dos céus
e veres sobre a tua fronte desenhar-se a aurora luminosa.

 A flauta separada dos lábios não tem som.
Pobre de ti se o teu coração está separado de Deus.»

 Saibamos vencer a forças do medo e do mal, tão visíveis  e preponderantes na violência, manipulação e opressão actual, e neste texto mencionadas e, mais despertos e determinados, ardamos  corajosamente no Amor da Divindade e pela Harmonia e Felicidade da Humanidade e dos que nos estão próximos...

Arco-íris da Paz justa, por Bô Yin Râ.

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